Código da Vida



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Minha vida na Consultoria Geral da República fervia. Todos os mem­bros do Governo Sarney levaram a sério a advertência geral feita por mim: é proibido cometer erros jurídicos! Dei instruções aos ministérios para ouvi­rem sempre os advogados antes de baixar qualquer ato. Enfatizando a orientação, salientei: até para assinar cartão de Natal, consultem antes o advogado. Em caso de dúvida, mandem o problema para a Consultoria Geral.

E mandavam todos os dias. Isso demonstra que estávamos diante de um recorde mundial de dúvidas.

A providência tinha sua razão de ser. No lançamento do Plano Cruza­do, vimos minutas de atos inteiramente ilegais e muitos inconstitucionais. Alguns conseguimos evitar, os assistentes jurídicos dos ministérios, os mem­bros da Consultoria Geral e eu. Quase morremos afogados naquele oceano de papéis.

Durante a discussão dos Planos Cruzados, ouvi algo espantoso dos fun­cionários do Ministério da Fazenda, a turma da casa, que estava lá há séculos. Quando nós, os juristas, advertíamos que determinada medida era inconsti­tucional ou ilegal, eles respondiam com a demonstração de uma estatística fantástica:

— Contra atos da Fazenda Nacional, apenas ingressam em juízo cerca de 30% dos prejudicados. A maioria, portanto, não reclama. Pode haver alte­ração para mais ou para menos, dependendo de dois fatores principais: 1) se a imprensa der destaque à ilegalidade, o que não acontece sempre, porque os jornalistas, em determinadas questões, passam batido; 2) se as quantias en­volvidas não forem individualmente expressivas. E os que entram com ações contra a União levam cerca de dez anos para receber, o que adia o problema para os governos posteriores.

Meninos, eu vi! E várias vezes. Não é preciso registrar que, em muitas ocasiões, houve quebra-paus fortes. Algumas vezes, consegui demovê-los; em outras, fiquei vencido, porque existe no governo, em todos os governos, a mentalidade de que a ilegalidade em favor do Tesouro Nacional é eticamente legítima.

Assim aconteceu com os empréstimos compulsórios na compra de carros e na compra de gasolina durante o Governo de que participei. E em outros casos. Até hoje, a Fazenda Nacional tem o costume desonesto de co­brar dívidas fiscais já pagas. De preferência, de quatro a cinco anos atrás, jogando com a hipótese de o contribuinte não haver guardado os compro­vantes do pagamento. Como o beneficiário é o Tesouro Nacional, não consi­deram o roubo imoral. E mais: tem por hábito enfiar textos de normas legais em medidas provisórias ou projetos de lei que tratam de coisas diferentes. Pratica deslavadamente o contrabando legislativo. Se houver um texto legal que regule a colheita do bacabaçu, cuidado, pode haver lá um artigo aumen­tando um imposto federal qualquer.

Quando se descobrem as maroteiras, vêm as demagógicas explicações: maior justiça fiscal, combate à sonegação, moralidade na arrecadação, que a própria Receita administra. Como dizem os hispânicos: siempre de lo mismo Recentemente o Governo criou a Super-Receita, unificando a da Fazenda com a da Previdência. E deu poderes aos fiscais para desconsiderarem atos jurídicos sem interferência do Poder Judiciário. A disregard doctrine67 apli­cada em multa trabalhista. Que fim levou Kelsen, o filósofo da doutrina pura do Direito?

A Receita Federal, no Brasil, é o centro mundial do cinismo, especiali­zada em agressão ao patrimônio de empresas e cidadãos. Inegavelmente, há os funcionários honestos, competentes, dedicados, mas uma ostensiva mino­ria não resiste ao confronto entre o que recebem de vencimentos e o patri­mônio acumulado, por um motivo simples: não são fiscalizados pelo impos­to de renda.

Tudo isso funciona na permanentemente tensa relação com grandes em­presas e trabalhadores. A legislação e a burocracia empurram os pequenos empresários para a clandestinidade, situação que piorou muito no Governo Lula. Seria o caso até de recordar, para o gosto do PT, de Joseph Stalin, que mesmo no governo comunista desabafou: de dez em dez anos é preciso fuzi­lar a burocracia e substituí-la.

Lembro do meu avô dizendo que “ou o Brasil acabava com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. Hoje temos que trocar a saúva pela burocracia e manter a mesma frase como advertência até que alguém faça alguma coisa antes que se apague a luz do aeroporto.

Além dos absurdos contra os empresários honestos, a Receita Federal exige desconto do imposto de renda na fonte dos trabalhadores em geral quando recebem horas extras ou férias. Cobra-se imposto sobre verba clara­mente indenizatória. E de gente pobre.

Ives Gandra Martins observou em uma de suas obras:

“Em função da teoria da participação desmedida do Estado no fato econômico, a imposição tributária ganha a formulação de norma de re­jeição social, pois os que a ela estão sujeitos sabem que devem pagar não só o que é necessário objetivamente ao Estado, mas também o que constitui desperdício estatal, na identificação dos objetivos daquele com os objetivos pessoais dos que detêm o poder.

Os formuladores do sistema jurídico-tributário brasileiro, intencio­nal ou intuitivamente, apreenderam toda a característica própria da fenomenologia impositiva tributária, cuja relação, em face da interfe­rência crescente do Estado, tem natureza de rejeição social, elegendo, como o gênero fundamental da imposição, a obrigação tributária.”68

Quando se trata, porém, de gente ligada ao Governo, tal como Duda Mendonça ou um Marcos Valério, as maiores negociatas passam sem a me­nor ingerência do fisco, que, nesses casos, nunca viu nada e não sabe de nada, a não ser quando estoura o escândalo.69 E as empresas de Marcos Valério se utilizaram de cerca de 80 mil notas frias. Anotaram? Oitenta mil notas frias. Ainda bem que os contribuintes brasileiros, os honestos, contam com exce­lentes tributaristas, como Ives Gandra Martins, Léo Krakowiac e outros para defender-se daqueles diabólicos devoradores de suor e completos deficientes diante de bandidos.

Os economistas não conseguiam explicar se o fato de o Brasil ser o vice-campeão mundial em concentração de rendas (0,625), perdendo apenas, e por muito pouco, para Serra Leoa (0,629), país africano, era resultado da in­flação, ou da política fiscal, ou da falta de estímulo a atividades produtoras e geradoras de emprego.70

E hoje não explicam por que nosso crescimento é o menor em toda a América Latina, ganhando apenas do Haiti.

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No primeiro Plano Cruzado, foi bom trabalhar com Pérsio Arida e com o Lara Rezende. Eles entendiam bem os fundamentos jurídicos e concorda­vam em alterar ou cancelar os pontos legais mais polêmicos.

Fui falar com Sarney:

— A parte jurídica do plano está pronta. Eu não entendo de economia Aliás, nem chego a entender os termos que os economistas usam quando conversam. Parecem de outro planeta. Mas vim lhe perguntar: você vai de­cretar o congelamento de preços?

— Vou. O Dílson Funaro me convenceu ser necessário. É uma medida de misto político. Dá-se o choque inicial, e depois, aos poucos, liberam-se os preços, até voltarmos à normalidade do mercado. E o João Sayad concordou. A decisão é o resultado de longa conferência entre nós.

Saí. Fui embora. Não tinha jeito, e a matéria não era da minha com­petência. Mas confesso que fiquei preocupado por pura intuição. Congela­mento é medida artificial e contrária às regras do mercado. Pode complicar. Naquele dia, Fernando Henrique Cardoso havia feito um discurso desan­cando o Governo, seguido de uma longa entrevista ao Jornal do Brasil, cha­mando João Sayad de enfeite de bolo. O ambiente estava nervoso. Anunciado o Plano Cruzado, Fernando Henrique ficou com a cara quebrada. Ele não tem sorte nessas coisas. Quando concorreu com Jânio à Prefeitura de São Paulo, sentou-se na cadeira de prefeito para uma foto antes das eleições. Jânio ganhou. Resultado: quando tomou posse, Jânio foi fotografado desinfetando a cadeira.

Com o Plano Cruzado, Sarney virou herói. Surgiram os famosos “fis­cais”, pessoas do povo que foram tomar conta dos preços em nome do Presi­dente da República. Se ele quisesse, poderia ter implantado a monarquia e te­ria sido proclamado rei.

Vieram as eleições. O partido do governo, o PMDB, ganhou tudo. De­pois, já no fim do ano, surgiram os problemas. Os preços explodiram. Pare­ciam rolhas de garrafas de vinho estragado. Escutei por lá entre eles: onde foi o erro? No congelamento!

Desde então, observo algo interessante em relação aos economistas: eles passam a metade do tempo prevendo os acontecimentos futuros, e a outra metade explicando por que não aconteceu nada do que previram. As explica­ções são mais dolorosas do que as frustradas previsões.

O mais célebre deles, nesse esporte de chutar bola de cristal, é um famo­so especialista norte-americano chamado Stephen Roach, economista-chefe da firma financeira Morgan Stanley, que se notabilizou por prever todos os anos, em congressos nacionais e internacionais, uma grande crise a ser defla­grada no ano seguinte. E com centenas de estatísticas verdadeiras demonstra a veracidade de suas trágicas previsões. Vai a todos os encontros econômicos e não se corrige: é o meteorologista das crises mundiais. Em Davos, foi alvo de chacotas.71 Mas em todas as reuniões aparece por lá. E continua anun­ciando o começo do fim do mundo.

Tenho muitos amigos economistas; gosto deles, mas não entendo nada do que falam e muito menos do que fazem. No fim, sempre alguma coisa acaba errada. Creio que apenas Keynes, no século passado, andou acertando, quando advertiu não haver salvação fora do pleno emprego. E o Prêmio Nobel Robert Mundell, que previu a criação do euro. Homem de muita cora­gem, posto que a Itália faz parte da Comunidade Européia. E certamente não abrirá mão da tarantela inflacionária. Creio ter sido Mussolini o autor da observação: “Governar a Itália é fácil, mas é inútil”.

Outro economista notável é Jeffrey Sachs, autor de O fim da pobreza, li­vro que os políticos deviam ler até porque tem o prefácio redigido por Bono Vox, o vocalista do U2. Se Lula não se gabasse tanto de ser iletrado, eu tenta­ria fazer José Sarney convencê-lo a ler o livro. Afinal, ler um livro, ainda que seja um só, não fará mal algum. Parece, contudo, que os áulicos do Presidente do Brasil, apesar de se dizerem defensores da justiça social, estão prestigiando as teorias de Friederich Hayek,72 o que é uma pena.



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Em um desses dias do início do primeiro Plano Cruzado, esmagado de trabalho, minha secretária veio comunicar-me que estava na portaria um amigo meu, vindo de São Paulo. Chamava-se Gervásio. Mandei entrar.

— O que você veio fazer em Brasília? Não acredito que tenha deixado a paulicéia desvairada, para vir ao sossego do planalto goiano.

— Alguma coisa me fez vir aqui. Eu ia para o hotel e de lá pensava em telefonar e convidá-lo para jantar à noite. Mas, de repente, mandei o táxi vir direto. Minha mala está aí na sala de sua secretária. Como se chama?

— Eunice.

— Quando a vi, fiquei sabendo o porquê do impulso de vir aqui. Bati um papo com ela, enquanto esperei você me receber.

— Como está repercutindo em São Paulo o Plano Cruzado?

— É ela!


— Ela é o que, homem de Deus? Você nem sequer presta atenção à mi­nha pergunta. Quero saber do Plano Cruzado!

— O plano não interessa. É coisa para o povo e para os políticos. O que interessa é sua secretária. Você vai se casar com essa moça.

— Eu? Você endoidou de vez! Dona Eunice é casada, tem uma filha, é de boa família, segundo me informou o ex-Consultor Geral, hoje Ministro da Justiça, Paulo Brossard. Eu venho de uma separação e, enquanto estiver no Governo, nem penso em casar de novo. Muito menos com a minha secretária daqui, do serviço público.

— Pois vai casar. É ela. Pode escrever. Ela tem um problema com o ma­rido, não é grave, apenas de convivência. Aconteceu entre eles aquele fenô­meno do desamor. Eles vão se separar amigavelmente. Aí entra você. Ela se apaixona, você se comove, e bingo! Casamento.

Eu sabia que Gervásio era um paranormal. Mas, claro, tinha muitas re­servas às suas previsões, a maioria delas não concretizadas. E as que acertara no passado eram mais ou menos óbvias. Nossos amigos comuns acreditavam nele mais do que eu, sempre cético com essas coisas. Ele previu a renúncia do Jânio, fundado na renúncia anterior da candidatura. Deixou no ar qualquer coisa sobre o assassinato de Kennedy. Previu os vinte anos de governo militar. Antecipou o tricampeonato do mundo para o Brasil em 1970. Tinha a seu crédito esses acertos. Se bem que a Copa de 1970 era mais ou menos moleza para os futurólogos, sobretudo com o Pelé jogando tudo o que sabia. Mas ele apostou.

— Deixa de bobagem, Gervásio — disse eu, já incomodado. — Você viu a moça, deve ter se convencido de que, por sua simplicidade, poderia agradar-me, já que eu sou um inveterado caipira. E criou essa fantasia toda. Fora de cogitação!

— Pede para ela nos servir um café.

— Quem serve o café é o garçom.

— Então, chame-a aqui. Dê-lhe alguma instrução, qualquer coisa. Que­ro vê-la na sua frente.

Chamei. Dona Eunice entrou, e eu, meio sugestionado, olhei-a com um pouco mais de curiosidade. Claro que sempre a tratei, como a todos os que trabalhavam comigo, com atenção. Olhei-a de forma diferente, quero dizer. Mas cortei. Era indução psicológica do Gervásio. Dei-lhe um manuscrito para ser datilografado. Ela era exímia datilógrafa. Professora.

— A senhora trabalha em Brasília há muito tempo? — perguntou Gervásio.

— Há alguns anos. Comecei na Eletronorte e fui convocada pelo Mi­nistro Brossard para vir trabalhar no Planalto. Pretendia voltar para lá, mas o Dr. Saulo pediu para eu ficar, dizendo que teríamos muito trabalho. E foi ver­dade. Essa Consultoria nunca teve tanto movimento como na preparação do Plano Cruzado. E, depois de sua edição, o trabalho aumentou.

— Pois a senhora se prepare, porque o movimento vai aumentar muito mais, quando for instalada a Constituinte. Vocês vão ficar loucos.

— Mas Constituinte é no Congresso. O senhor acha que vai interferir nos trabalhos da Consultoria?

— Vai, e muito. A senhora é de onde?

— De Goiás, uma cidade chamada Iporá.

Interrompi a conversa e pedi para Dona Eunice levar o manuscrito, pois queria o trabalho datilografado antes do fim do expediente. Era um longo parecer. Naquele tempo, eu escrevia à mão e usava lápis. Somente voltei a ba­ter em teclado quando aderi ao computador.

Gervásio, depois que a secretária saiu, voltou-se para mim e, com a expressão triunfante, reafirmou:

— É ela! Você vai casar com ela.

— Está bem. Vamos jantar hoje. Mandarei um carro levar você agora para o hotel e passo por lá logo mais. Então você me explica as razões de sua profecia.

Ele se foi. Atendi outras pessoas, para cumprir a agenda do dia. Dona Eunice trouxe o trabalho datilografado, e dessa vez nem olhei para ela. Já es­tava fora da influência do Gervásio. E precisava trabalhar.

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No jantar, tomamos aperitivos, e ele não tocou no assunto. Ao contrário, Pediu-me para contar com calma o episódio entre Celso da Rocha Miranda e mim, no dia em que estourou o golpe militar, chamado à época, 1964, de revolução.

— Você me contou pela metade.

— E por que você quer saber agora daquele caso?

— Tenho minhas razões. Desembuche!

Tive que lhe contar mais uma vez. No fim do Governo Jango, estáva­mos conduzindo um acordo com as autoridades monetárias, para um acerto de contas entre o Grupo Simonsen e a Fazenda Nacional. As empresas tinham crédito pela compra da safra de café na intervenção no Estado do Paraná e débito no Banco do Brasil, que fornecera os respectivos recursos. Foi cele­brada uma compensação entre débito e crédito e concedido prazo para pagar o saldo. Carvalho Pinto, Ministro da Fazenda do Governo Jango, conhecia bem o assunto, e aprovou as negociações. Mas saiu do Ministério no final do ano. João Goulart nomeou Ney Galvão, que ninguém conhecia, mas que con­cordou em continuar com os entendimentos. Celso da Rocha Miranda achou um jeito de aproximar-se dele. E conseguiu o objetivo. O acordo estava redi­gido. Faltavam as assinaturas.

Eu tinha ido para o Rio e estava hospedado no Hotel Glória, pois naquela semana o acordo seria celebrado na Sumoc — Superintendência da Moeda e do Crédito —, autarquia que, mais tarde, foi transformada no Ban­co Central do Brasil. O contrato foi lavrado em livro próprio da Sumoc e se­ria assinado por todos: os representantes das empresas do Grupo Simonsen, o Ministro da Fazenda, os diretores do IBC e os diretores daquela Superin­tendência. Segundo Celso da Rocha Miranda, o livro estava no gabinete do Ministro da Fazenda, Ney Galvão, e a maioria das assinaturas já havia sido colhida. Faltavam as dos nossos clientes e as de alguns diretores da Sumoc.

Estourou a chamada revolução. Era primeiro de abril. O General Mourão Filho marchava com suas forças para o Rio de Janeiro, vindo de Minas Gerais. Confusão geral no país. O noticiário das rádios era confuso, contradi­tório, mas algumas informações asseguravam que Jango preparava-se para fugir de Brasília e que a fuga estava sendo negociada com os militares. So­mente no Brasil essas coisas e a jabuticaba acontecem. Os líderes esquerdistas debandaram. Os direitistas proclamavam vitória sobre os “comunistas”.

Celso da Rocha Miranda chegou ao Hotel Glória para me buscar. Eu es­tava embaixo, na portaria, ouvindo rádio. Dezenas de hóspedes se amontoa­vam no salão, em busca de notícias.

— Vamos aproveitar esta confusão — disse Celso — para ir ao Ministé­rio da Fazenda.

— Como? — perguntei. — O ministério deve estar fechado com essa balbúrdia toda. O que vamos fazer lá?

— Pegar o livro da Sumoc. O Ministro disse-me que estava com ele e que me entregaria para as assinaturas dos diretores do Grupo Simonsen. Va­mos embora! O carro está aí fora.

Saímos, e levei um susto. O carro era um senhor Rolls Royce, lindo, não muito novo, mas impecável, brilhante, digno de um lorde inglês. O Celso, aliás, parecia um lorde inglês pela elegância e pela educação. Essa observação é por ouvir dizer, porque eu mesmo nunca vi um lorde inglês. E perguntei:

— Não é perigoso a gente andar num carro grã-fino como este?

— É o carro que vai nos permitir entrar no ministério. As notícias de rádio estão clamando que os capitalistas venceram os comunistas, e não ha­verá ninguém na garagem do prédio que terá coragem de barrar um Rolls Royce. Veja o motorista. Ele está de luvas brancas.

Não deu outra. Entramos com facilidade e fomos tratados com o maior respeito. Subimos direto ao gabinete do ministro. Ninguém. Um cemitério. Entramos na sala do Ney Galvão, que ainda era o ministro nomi­nal. Ninguém. Depois de alguns minutos, apareceu um contínuo. Informou que o ministro havia saído às pressas. Olhou para a elegância do Celso e ofereceu café. Aceitamos. Lá foi ele buscar o café na copa. Fuçamos tudo no gabinete.

E, sobre uma mesinha, bem ao lado da poltrona do ministro, lá estava o nosso tesouro: o livro da Sumoc. Abrimos na última página e lemos o texto do acordo com algumas assinaturas, faltando outras. Celso agarrou o livro e o enfiou na pasta. Voltou a sentar-se. Foi o tempo exato. O contínuo chegou com o café.

— Que confusão, doutor! — disse, servindo o café. — O senhor acha que o Governo caiu?

— Caiu, não há a menor dúvida. Jango já deixou Brasília, e as forças militares todas estão unidas contra o Governo. Há apenas uma resistência no Rio Grande do Sul.

— É, eu ouvi no rádio — respondeu o contínuo. — E os senhores vie­ram aqui para tomar o Ministério da Fazenda?

A pergunta era espantosa e, durante anos, demos risadas ao lembrar­mos dela.

— Não — disse Celso, com a maior tranqüilidade. — Estamos aqui para oferecer proteção ao ministro. Mas creio que ele não vai voltar. Agrade­cemos o seu café e vamos embora.

Celso levou o livro. Lutou para colher as assinaturas que faltavam. Con­seguiu. O governo Castelo Branco já se havia constituído. O Ministro da Fazenda era o Dr. Gouveia de Bulhões, meu amigo, pois havíamos trabalhado no Governo do Jânio, quando, juntos, elaboramos as resoluções 204 e 205 a da reforma cambial e a que acabou com o confisco do café na exportação resoluções da Sumoc, da qual ele era o presidente.

Pedi audiência, e ele nos recebeu. Depois de contar toda a história do acordo, expliquei:

— Estávamos com o livro da Sumoc para colher as assinaturas dos em­presários, pois as autoridades monetárias todas já haviam assinado. O acordo está formalmente perfeito.

— Eles entregaram o livro para os particulares? Que falta de respon­sabilidade! E o sigilo de outras decisões? O certo é convocar as pessoas para assinar na sede da Sumoc. Esses membros do Governo do Jango eram uns doidivanas!

Ficou com o livro, nada prometeu, lembrou fatos do Governo do Jânio, acabou por concluir que a renúncia tinha sido a causa de tudo. E não estava muito errado.

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— Por que você queria saber dos detalhes? — perguntei ao Gervásio.

— Aquele acordo, que fim levou?

— Fim algum. Os militares o ignoraram. Nós não tínhamos cópia. O livro sumiu. E acabaram com o Grupo Simonsen. Ponto final.

— E o Bulhões?

— Nada pôde fazer. Era um homem excelente. Devolveu o livro para a Sumoc, e ali o documento desapareceu.

— Minha idéia é a seguinte — disse Gervásio. — Você hoje está no Governo. Podia fazer algo para reparar aquela injustiça. Sobretudo quanto à Panair. Agora é moda reparar as pessoas físicas vítimas da repressão. Por que não as pessoas jurídicas que sofreram as mesmas arbitrariedades?

— Não me crie caso! — respondi. — Você sugere que se edite uma lei de anistia também para as empresas que sofreram repressão?

— Por que não?

— Você não é advogado, e por isso o perdôo. Ademais, o caso da Panair está na Justiça. Nem conheço os atuais advogados dos herdeiros do Celso da Rocha Miranda. O governo tem outras prioridades: além dessa tentativa de estabilização econômica, haverá uma Constituinte. Sabe lá o que é isso? To­das as atenções têm que se concentrar no processo de configuração constitu­cional do Estado de Direito. Não vai dar para fazer mais nada.

— E aquele general que se infiltrou no Grupo Simonsen, sob o pretexto de defendê-lo?

— O General Ayrton Salgueiro de Freitas?

— É esse mesmo.

— Era um vigarista. Antes da ditadura, tinha um escritório de “deteti­ves”. Depois do golpe, chegou a ser Superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro. Na época, havia uma camuflada necessidade de que grupos em­presariais contratassem oficiais militares reformados para “contactos” com o Governo. Faziam os “contactos” na ida e na volta, isto é, forneciam informa­ções policialescas aos serviços de espionagem do Governo e, em troca, obtinham alguns favores para mostrar prestígio.

— E esse Ayrton. Ajudou no quê?

— Em nada. Andou usando o nome da Comal para efetuar vendas falsas de câmbio. Foi descoberto por um diretor do Grupo Simonsen, o mais efi­ciente: Max Rechulsky, que era da Wasin. Resultado: numa lista de nomes a serem cassados pelo Governo, pessoal da Petrobrás, o general incluiu o nome daquele diretor da Wasin. Rechulsky, profissional competente em negociações internacionais, nunca mais voltou para o Brasil. Vive na Suíça até hoje.

— Você conhece detalhes do caso — voltou a insistir Gervásio. — E pode, muito bem, fazer alguma coisa para apurar as responsabilidades desses picaretas todos.

— Desculpe-me, Gervásio, mas não tenho a menor vocação para poli­cial e, sobretudo, para ficar remexendo o passado político do Brasil. Temos uma Constituinte pela frente. Nessa matéria, sim, vou trabalhar tempo inte­gral. Olhar para frente, meu caro. O futuro espera um Estado de Direito. Por que perder tempo com a ditadura? Quando foi preciso, eu a enfrentei em al­guns processos difíceis. Mas, agora, é matéria para os historiadores.

— Quando você voltar a dizer que o Brasil não tem jeito, lembre-se de que grande parte da culpa é sua. A Panair foi espoliada, violentada, roubada, assaltada. Você sabe disso e não quer fazer nada?

— Está bem. Assumo a parte da culpa que me toca. Mas quero saber: por que vou casar com minha secretária?



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