Código da Vida



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— É simples, mano velho! — Gervásio tomou ares de maior solenidade — Tive um sonho em que me foi dito que você precisa casar de novo.

— Mas isso todo mundo me diz sem sonho algum. Desde meu irmão até o Itamaraty, que anda me convidando para festas e me apresentando mo­ças prendadas. Basta existir um homem solteiro ou divorciado, para que to­dos o aconselhem a casar. No Governo é a mesma coisa. Com relação a mim, somente minha mãe não me pressiona.

— Exatamente aí as coisas passam a ter lógica. Você precisa encontrar a mulher certa para o seu resto de vida, ou o resto da sua vida...

— ...essa última forma de dizer é mais simpática...

— ...até para cuidar de sua mãe viúva, que jamais mereceu de sua parte uma nora digna do imenso amor que ela lhe dedica e precisa ver em torno de si uma família que participe desse tipo de privilégio. O amor, para quem ama, é problemático, quando se trata de sentir a felicidade que ele proporciona. Amar apenas não basta. É preciso ver a pessoa amada feliz por receber o amor que lhe é dirigido, perceber que produziu o efeito da ternura, saber que a irradiação emanada vai acender luzes no coração do filho, quando se trata do amor de mãe.

— Gervásio, ótima filosofia! — ponderei. — Mas você está falando de minha mãe, e não da minha secretária. É uma bruta confusão essa sua para-normalidade, se é que é paranormalidade.

— Deixe essa história de paranormalidade. Sou absolutamente normal. O caso é o seguinte: você precisa de uma mulher simples, que ame você, que queira realmente fazer você feliz e ser feliz com você. E sua mãe precisa ver isso e com urgência, pois somente assim ela mesma poderá ser feliz por intei­ro. Foi pensando nisso que tive a idéia de vir a Brasília, porque, mesmo de longe, senti que você tinha conhecido uma mulher capaz de realizar esse pro­dígio. Eu esperava ficar alguns dias, conviver com seus amigos e amigas, fre­qüentar seus ambientes, porque tinha certeza clara de que eu iria identificar a mulher, ou que talvez você já a estivesse namorando. Pensei que levaria al­guns dias para fazer, digamos, o diagnóstico.

— E por que você se preocupou com isso? Se encontrar essa mulher-maravilha, eu mesmo resolvo o que devo fazer ou não, partindo do principio de que ela concorde.

— Quando vinha do aeroporto e ia para o hotel, alguma coisa me fez ir direto para sua Consultoria.

— A Consultoria não é minha. É da República — insistia eu em des­contrair a conversa, que estava descambando para coisas misteriosas.

— E, quando entrei e me deparei com Dona Eunice, tive a sensação ple­na de que não precisava conhecer mais ninguém dentre suas relações em Brasília. É ela, meu mano velho! É ela! Tanto é ela, que vou embora amanhã. Missão cumprida. Não preciso conhecer mais ninguém.

— Calma, Gervásio! Eu tenho muitas amigas, algumas até merecendo maior atenção e que posso apresentar-lhe. Assim, você deixa sua intuição es­tender-se para um círculo mais amplo e, creia, aceitarei suas observações e conselhos. Pelo menos os levarei em conta para uma questão como esta, ine­gavelmente séria. Mas minha secretária está fora de cogitação. Ela é casada, e tudo indica que vive bem.

Gervásio encerrou o assunto:

— É Dona Eunice, e não se fala mais nisso! Vai separar-se. Talvez ela mesma ainda não saiba, mas vai. Lembre-se apenas de que lhe avisei. Não a perca. Você já tem experiência. Do Governo, pode-se sair a qualquer momento. Se você voltar para São Paulo sem se casar com ela, fique certo: perdeu a única oportunidade que o destino lhe deu. Você pode voltar a ter muitos casos, via­jar pelo mundo afora, viver aquela vida boa de Paris, ir para o Nordeste, usu­fruir as praias de Pernambuco, Maranhão, curtir os seus violeiros e repentistas; mas a única oportunidade é esta. Não terá outra. Lembre-se de que você não sabe escolher mulher para casar. Dois fracassos são provas suficientes.

E Gervásio foi embora no dia seguinte. Fiquei intrigado. O velho amigo se deslocou de São Paulo, em plena agitação nacional com a implantação do Plano Cruzado, eu no meio da fogueira dos debates, das contestações, das explicações, e ele aparece para dizer que devia me casar com a secretária.

Enlouqueceu de vez!

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Cerca de um ano depois, já havia me esquecido da conversa com o Ger­vásio. A Constituinte absorvia a totalidade dos trabalhos da Consultoria Ge­ral da República. Estava pronto o projeto de Constituição. Ia começar o segundo turno, quando inventaram que, nessa segunda fase, somente seriam admitidas emendas supressivas. Mais nada, salvo as de redação. Outra en­crenca. Arrumei nova briga com a soberana.

A convocação da Assembléia Constituinte, emenda nº 26, era clara: os dois turnos tinham que ser de discussão e votação, isto é, o segundo igualzi­nho ao primeiro. Logo, havia mandamento constitucional de força cogente:73 no segundo turno, era assegurada aos constituintes a apresentação de todos os tipos de emendas: supressivas, supletivas, aglutinativas, substitutivas. Tan­to que eles próprios, os constituintes, haviam apresentado cerca de duzentas emendas para serem apreciadas no segundo turno. O debate foi longe.

Fui convidado a participar de um programa de televisão, Roda Viva, na TV Cultura, onde tudo isso acabou sendo discutido. Alguém chamou a aten­ção para um artigo no projeto, que autorizava aos estados e municípios a emissão de títulos para o pagamento de precatórios judiciais em parcelas iguais durante oito anos. Perguntado sobre aquela disposição, respondi que era uma, dentre muitas, que desmoralizava o projeto e, com certeza, iria des­moralizar o Brasil. Causaria escândalos. Estados e municípios abusariam da­quela permissão de emitir títulos fora dos limites constitucionais impostos pelo Senado e iriam se esbaldar. Não era futurologia. Quem conhece o Brasil pode prever essas coisas: acabam em maroteira.

Não deu outra: o escândalo dos precatórios, que acabou na CPI dos tí­tulos públicos, outro escândalo (uma coisa chama a outra), porque o relator, o então Senador Roberto Requião, resolveu fazer palco para si mesmo, bara­lhou tudo, acusou inocentes, inocentou culpados, e o único resultado real que obteve foi acabar com a credibilidade do mercado de títulos públicos es­taduais e municipais neste país. Estados e municípios não conseguem mais vender títulos. E a CPI acabou em pizza.

Minha entrevista à TV, prevendo o desastre, está gravada. Tenho uma cópia, que eu mesmo converti para DVD. A entrevista ocorreu era 18 de outu­bro de 1987. Única prova de que em algum momento fui bom profeta. Pelo menos uma vez. A pizza de Requião, servida fria, deu-se mais de uma década depois de promulgada a Constituição.

Vários estados emitiram letras de seus tesouros, receberam o dinheiro e não pagaram os investidores.

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A coisa funcionou assim: o estado ou o município que tivesse conde­nações judiciais poderia emitir títulos no exato montante de tais dívidas, vendê-los no mercado financeiro e pagar aos credores dos precatórios. Al­guns, porém, que tinham, por exemplo, cinqüenta milhões a pagar, emitiram quinhentos milhões. Fraudaram o permissivo constitucional. Endividaram-se fora dos limites. Houve, no meio do caminho, negociatas, comissões, o diabo.

No final, os investidores, isto é, os desavisados, que compraram os títu­los acreditando na segurança do sistema, foram acusados de facilitar as ven­das, porque compraram. Só no Brasil isso acontece. E a jabuticaba. Os títulos foram lançados mediante prévia autorização do Banco Central e por intermé­dio da Cetip — Central de Custódia e Liquidação Financeira de Títulos —, depois de resolução do Senado Federal autorizando a emissão e o lançamento. O investidor que acreditou nisso danou-se.

No final, a União teve que arcar com os custos e assumiu a dívida dos estados e municípios.

Mas os fatos encheram o prato dos espetáculos políticos. Na CPI dos Títulos Públicos, apelidada de CPI dos Precatórios, o Senador Roberto Requião esbaldou-se. Ficou sob holofotes durante meses. E uma de suas pre­diletas cambalhotas era acusar o Banco Bradesco, que chamava de Bancão. O Bradesco era culpado de tudo. Se não tivesse comprado os títulos, os es­tados não os teriam vendido. E, sem comprador, não se endividariam. Ló­gica de gênio!

O Bradesco me procurou para defendê-lo no caso, e, entre as medidas cogitadas, estava processar o Senador pelo Paraná. Ele já havia sido “meu” réu em outro processo, quando fui advogado do Tribunal de Justiça daquele estado contra ato dele, então Governador, que determinou o não pagamento da correção monetária aos vencimentos do Judiciário, porque era muito moroso. Levou cacete do Supremo Tribunal Federal e teve que pagar tudo. Foi eleito e reeleito governador mais uma vez. O Estado do Paraná persiste no erro.

O processo, que, naquela época, planejei contra ele, seria mais compli­cado, porque Senador pode falar o que quiser e tem absoluta imunidade por suas palavras, desde que pronunciadas no exercício da função. Atuação na Comissão Parlamentar de Inquérito é exercício de função parlamentar. Pode caluniar, injuriar, difamar. Não responde a processo. Imunidade absoluta. Torna-se inviolável, como diz a Constituição, art. 53.74

Tive uma idéia. A Constituição original, de 1988, não continha a ex­pressão civil e penalmente, o que permitia ao ofendido processar o parla­mentar pelo direito civil. A nova redação, malandra, foi dada em 2001, pela Ementa Constitucional nº 35.

Minha idéia era propor contra o Senador pelo Paraná uma ação previs­ta no art. 287 do Código de Processo Civil.75 Uma ação ótima, por cujo inter­médio se pode obrigar as pessoas deseducadas a agir com educação. Por exemplo: se alguém atira lixo no seu quintal, você pode pedir ao juiz para im­pedi-lo de fazer e condená-lo a pagar multa pesada toda vez que o fizer. Por que não poderia processar alguém que atirasse lixo sobre a moral da vítima?

Claro! A idéia era excelente, pois Pontes de Miranda entendia que até para impedir a prática de crime aquele tipo de ação poderia ser usado. Ação de abstenção da prática de ato.

Ora, nada mais útil do que usar contra um político a ação de abstenção contra a mentira. Não pode mentir! Cada vez que acusar a vítima com uma mentira será multado. Mentiu? Multa nele! A lei chama de pena pecuniária. Dá na mesma. Sanção cominatória.

Redigi a petição inicial. Citei todas as mentiras que o então Senador Requião havia desferido contra o Bradesco, demonstrando a falsidade das acu­sações, e pedi que o réu fosse condenado a abster-se de mentir e, se o fizesse de novo, pagaria a pena pecuniária.

Caprichei. Tinha a certeza de que o Poder Judiciário iria aproveitar a oportunidade e criar uma fantástica jurisprudência para impedir políticos de mentir. Era só levantar a bola.

Mas não deu. Lázaro Brandão, presidente do Bradesco, homem de for­mação pacífica, calmo, tranqüilo, não gosta de processar ninguém. Limita-se a defender sua instituição, quando atacada. Está permanentemente mergu­lhado em estudar problemas e encontrar soluções para assuntos de interesse do Brasil, embora na minha opinião calar um político mentiroso seria algo de alto interesse público. A administração do Bradesco é voltada para aquele objetivo permanente. Foi Amador Aguiar quem decretou a configuração dessa filosofia empresarial. A solidez e eficiência da instituição financeira de nada valerão, se não forem para beneficiar o país em todos os aspectos.

Para isso, escolheu Lázaro Brandão como seu sucessor. Sérgio Bermudes escreveu sobre o fato:

“Consciente da necessidade de escolher sem erro o seu sucessor, Ama­dor Aguiar procurou, demoradamente, entre os seus companheiros, pela meticulosa observação de cada um, quem fosse a incandescência dos valores que ele entendia indispensáveis ao prosseguimento da sua obra. Distinguiu Lázaro Brandão, temperamento semelhante ao dele, de idêntica obsessão pelo trabalho, mesma visão dos negócios do gru­po, modéstia e despojamento, descortino e discrição, indiferença à lisonja, paciência e capacidade de dedicar-se a cada problema como se fosse o único, incomparável no hábito de deliberar perguntando, para deixar no interlocutor a sensação de paternidade da decisão, nervos de aço para enfrentar as vicissitudes, compreensão das fraquezas e possibi­lidades humanas. Por certo, apreciava um dos aspectos dominantes da personalidade do escolhido: aquela impavidez, do tipo que levou Horácio a dizer do próprio pai que, se o mundo se estilhaçasse, as ruínas o feririam impávido.”



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Lázaro Brandão demonstrou que Amador Aguiar estava certo.

Não é comum encontrar banqueiro com essa convicção obstinadamen­te desenvolvida todas as horas do dia, durante anos e anos e anos. Contagiou sua equipe. Desconfio de que ele use cueca verde e amarela. O normal em ho­mens nesse ramo do mercado é, primeiro, pensar no lucro e, depois, se der para ajudar o país, vamos ver.76

O Bradesco, sob a direção de Lázaro Brandão, além de incontáveis esco­las em todo o país, mantém centro de desenvolvimentos científicos e, por incrível que pareça, ajuda no desesperado esforço de conservação do que resta da Mata Atlântica.

Encurtando a história, não ingressei com a ação. Na trapalhada dos pre­catórios, em dezenas de complicações, consegui ganhar a maioria das causas.

Mas Roberto Requião livrou-se de uma ação judicial que seria uma delícia: a obrigação de abster-se de mentir. Parece que continua no mesmo estilo antigo, porém com uma novidade: passou a comer sementes de ma­mona. Elegeu-se Governador do Paraná, mais uma vez, e um de seus auxi­liares instalou no seu Governo uma quadrilha especializada em escutas tele­fônicas de empresários e adversários.

Pego pela polícia e preso, o assessor de Requião, Décio Augusto Rasera, contou com a proteção dos advogados da campanha de reeleição do Gover­nador paranaense para uma suprema ousadia: tentaram impedir a publica­ção de reportagem na Folha de S. Paulo, o que foi negado pela Justiça. E mais: pediram a escuta telefônica de vários jornalistas e de membros do Ministério Público. Quanto à tentativa de censura, a gravidade da pretensão provocou um pronunciamento da ANJ (Associação Nacional de Jornais), atribuindo ao próprio Requião a absurda iniciativa que demonstra vocação autoritária e falta de espírito democrático.

Reeleito finalmente, Requião desabafou xingando a imprensa. Mereceu da Folha de S. Paulo, em editorial, a seguinte qualificação: o governador Ro­berto Requião, conhecido pela sua boçalidade.77

Mas não se emenda. No seu último governo, não se sabe por que, fez graves acusações contra José Richa, que já morreu há muito tempo. José Richa era uma alma pura. Foi Governador do Paraná. Acontece que o Prefeito de Curitiba, Beto Richa, filho do bom José, defendeu a memória do pai e cha­mou Requião de covarde, leviano, histérico, caluniador e ensandecido. Cabe­riam outros adjetivos. Requião está sempre metido em rixas.

Pontes de Miranda tinha razão: a ação de abstenção da prática de ato pode prevenir a prática de crime.

Creio (ah! O verbo crer!) que são igualmente boçais os petistas ou lulistas (pode haver distinção) que, depois da reeleição de Luiz Inácio, amea­çaram com desaforos e palavrões os jornalistas Clovis Rossi, Dora Kramer, Eliane Cantanhêde, Merval Pereira, Elio Gaspari, Janio de Freitas entre outros. A truculência tem a pretensão de intimidar a crítica, isto é, de assassinar a li­berdade de imprensa.

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Na Consultoria Geral da República, minha sala era quase toda de vidro. Muitas cortinas foram necessárias para impedir a visão do lado de fora, so­bretudo dos jornalistas, que ficavam por lá, vigiando as notícias que entra­vam e saíam. As notícias eram os ministros. Pegaram a mania de consultas pessoais, o que era mais trabalhoso, porque exigia um esforço didático para traduzir em linguagem simples os assuntos que podiam ser tratados em “juridiquês”, se mandassem os advogados do ministério deles.

Numa dessas ocasiões, dois ministros, depois de longa reunião, deixa­ram uma enorme papelada para eu estudar. Quando ia me concentrar na lei­tura, minha secretária, Dona Eunice, entrou na sala e me deu um susto:

— Doutor Saulo, acabei de me separar de meu marido. Amigavelmen­te. A separação já foi homologada em Juízo. Preciso de um favor seu.

— Mas assim, sem ninguém saber? Qual é o favor?

— Meu marido, isto é, meu ex-marido trabalha no Ministério da Fa­zenda e sempre sonhou em ser transferido para o Rio, onde tem a família dele. Gostaria que o senhor falasse com o ministro para transferi-lo. Se o se­nhor conseguir, ficarei imensamente grata, pois creio que ele ficará feliz em morar perto da família e se adaptará melhor à separação.

— E a menina, sua filha, como está?

— Está ótima. Ambos conversamos com ela, e aceitou bem a nova situação.

— Como ela se chama?

— Márcia. É o nome da irmã de meu ex-marido, a quem admiro muito. Criatura boníssima. O senhor me fará esse favor?

Cuidei de atendê-la. Em um mês, a transferência foi efetuada. A primei­ra parte da profecia de Gervásio estava consumada. E a segunda? Nem indí­cio. Pensei comigo: na minha advocacia, eu havia patrocinado quase dois mil processos de desquite (era o nome da separação judicial antes da Lei do Divórcio, do Senador Nélson Carneiro). A tranqüilidade de Dona Eunice demonstrava que tudo estava bem. Não havia traumas. Caso típico de desamor sem ressentimentos. Minha prática de advogado experiente assegurou-me que a separação não deixara qualquer trauma na minha secretária.

Mas me deu um susto danado em razão da profecia do Gervásio.



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E, por falar em ressentimentos, volto à minha história principal. Afinal, essa mania de contar tantos fatos diferentes atrapalha-me. Perco aquele fio da meada, do qual falava minha avó.

O advogado da mulher do Sr. Olavo Brás voltou a me telefonar:

— O colega tem razão. Falei com minha cliente, e ela está furiosa com a psiquiatra. Tive imenso trabalho para apaziguar sua crise de ferocidade.

Afinal, ouvi dele um diagnóstico razoável: sua cliente era realmente uma fera. Conversamos sobre o comportamento do esquizofrênico para­nóico, e o aconselhei empenhadamente a que a convencesse a voltar ao tra­tamento, ainda que fosse com outro médico. E arrisquei uma pequena chantagem:

— Embora não me interesse levar esses fatos ao conhecimento do juiz da nossa causa, mesmo porque a psiquiatra não quis lavrar a ocorrência nem formalizar queixa ou notitia criminis pela ameaça de morte, penso seriamente que o desfecho do caso poderá privar sua cliente da guarda das crianças. Cla­ro que lutarei para que seja transferida para o pai, mas poderá ser confiada aos avós.

— Ao pai, desculpe, creio que você não conseguirá. A acusação contra ele é muito forte. Mas a hipótese de não ficar a guarda com ela nem com ele é bem plausível. Talvez seja o melhor para as crianças.

— De qualquer forma, meu caro, haverá de ser decidido o direito de vi­sitas. Não desejo ensinar o pai-nosso ao vigário, mas as coisas serão mais fá­ceis para sua cliente, se ela retomar o tratamento. Se você chegar à audiência de instrução e julgamento com essa notícia nos autos, o direito de visitas poderá ser assegurado de maneira mais amena.

— Como assim?

— Sem o inconveniente de visita acompanhada por parente ou por as­sistente social. Você sabe como essas coisas funcionam no Judiciário. O juiz tem que tomar precauções, ainda que formais, para a subsistência de uma leve esperança de defender os menores.

— Tentarei convencê-la.

Não conseguiu. Anotei para, na futura audiência, perguntar se a mulher retomou o tratamento. Se a resposta fosse negativa, ganharia pontos.

Depois chamei o Nerval, o Casé e a Clotilde:

— Como estão as investigações? Descobriram se a mulher teve cúm­plice na gravação?

— Eu não tive sucesso — respondeu Clotilde. — Embora tenha conti­nuado a visitar a escola e a conversar com os meninos, quando se toca no assunto da gravação, se a mãe chamou alguém, se mandou dizer as respostas, as crianças demonstram verdadeiro pavor e cortam qualquer possibilidade de diálogo.

— Tenho tentado com as amigas, com os maridos das amigas, mas nin­guém sabe de nada — acrescentou Nerval. — Você tem certeza de que houve cúmplice?

— Certeza, não tenho. Há a teoria do Gervásio, confirmada pela perícia, de que a distância entre as crianças e o gravador foi sempre a mesma durante a gravação. É lícito deduzir que a mãe segurou as crianças para mantê-las pa­radas, ou imóveis, quando proferiam as respostas.

— São coisas do Gervásio. Vamos ficar loucos, se acreditarmos em tudo o que ele profetiza — disse Nerval, um pouco irritado com o nosso amigo paranormal, pois um policial não poderia admitir esse tipo de “chute” ou “inspiração”. Polícia não usa forças sobrenaturais no combate ao crime. É tapa, algema, tiro e queda.

— Mas houve confirmação da perícia. Não podemos desprezar a hipó­tese — disse eu, pensando provocar o Nerval. Ele não se abalou e informou uma novidade mais interessante ainda:

— Descobri que a mulher não tem gravador. Ela pediu emprestado um aparelho. Precisamos descobrir de quem e quando.

— Opa! Essa é de alta relevância. Como você descobriu?

— A empregada, doutor. A empregada nunca viu um gravador naquela casa. Nem mesmo depois da briga judicial. Ela usou e devolveu. Quem desco­briu isso foi o Casé, que está se revelando um grande investigador, tanto quanto advogado.

Sob os sorrisos de Carlos Edson, Nerval concluiu:

— Vou aprofundar a investigação nesse aspecto.

Deixamos o nosso caso de lado e, para relaxar, passamos às conversas descontraídas de fim de dia, que começava com um uísque servido por Isa­bel, nossa incansável copeira, que, mesmo sem ninguém pedir, entrava na sala com bandeja, garrafa, copos e balde de gelo. Clotilde não aceitou a oferta preciosa da Isabel e foi trabalhar. Estudava um processo para o júri. E estava um pouco nervosa, porque seria sua estréia na modalidade. Esse detalhe tornou imperiosa a recordação de uma de minhas histórias colhidas no Nordeste.

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O Nordeste é muito rico em histórias. Contaram-me, certa vez, que um jovem advogado, recém-formado, aceitou defender um réu acusado de ser matador profissional, mas somente matava bandido por encomenda da família das vítimas assassinadas por outros pistoleiros. Sob o conselho de seu pai, o causídico procurou o chefe político da cidade onde se realizaria o jul­gamento pelo júri popular. Meio vexado, procurou o coronel.

E explicou que a acusação era exagerada: homicídios qualificados, agra­vantes de todas as espécies, tocaias, emboscadas, crimes continuados me­diante paga, pena de doze a trinta anos de reclusão. Tentou justificar que seu cliente agia em razão de relevante valor social, pois era um justiceiro. Foi quando o coronel o interrompeu:

— Pode parar, meu filho! Essas coisas não contam! São muito compli­cadas. Sou amigo de seu pai e vou atender ao pedido dele. Diga-me, sem arrodeios, o que você quer.

O advogado disse que queria para seu cliente a pena mínima do homi­cídio simples: seis anos reduzida de um terço.

No dia do julgamento, o promotor fez sustentação não muito eloqüen­te, e ele caprichou na defesa, citando juristas nacionais e estrangeiros; exami­nou detalhadamente a denúncia, qualificou-a de inepta e não sofreu apartes do acusador. Final: o júri deliberou, e seu cliente foi condenado a quatro anos, tal como pedira ao coronel.

Exultante com a vitória, foi agradecer ao coronel e ouviu:

— Tem nada não, meu filho. Não podia deixar de atender a um pedido de seu pai. Mas não foi fácil! Tive que dobrar muitos cabras teimosos. Foi di­fícil, porque os jurados queriam absolver seu cliente. Agora me diga: quer que ele cumpra a pena ou posso mandar soltar?

Além dessa demonstração de como funciona o controle externo do Ju­diciário, quando exercido por chefes políticos, o jovem causídico descobriu também por que o promotor não lutou como devia: sabendo das tratativas e de que o réu seria condenado ao menos a quatro anos, não quis fazer nada que pudesse absolvê-lo.


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