Código da Vida



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Quando Sarney sucedeu definitivamente a Tancredo Neves, fui passar, como sempre fazia, um fim de semana em Boiçucanga, praia do litoral pau­lista, onde morava meu irmão Luiz Carlos. Sodré tinha casa na praia vizinha, Maresias. Telefonou, conferiu e foi lá.

— Que tragédia a morte de Tancredo! — começou ele sério. E mais sé­rio ainda continuou: — Você precisa ir para Brasília ajudar o Sarney. Vai ser muito, mas muito difícil ele segurar esse rojão.

— Por que não vai você? — perguntei. — Afinal, você é político, tem experiência, foi Governador, sabe lidar com aquele emaranhado de interes­ses. Seria mais útil do que eu, que sou apenas advogado e estou empregado...

— Se o Sarney me convidar, irei na mesma hora.

— Ainda não o convidou?

— A mim não, mas a você tenho certeza de que convidará.

— Por que a autodiscriminação?

— Porque ele não precisa de político neste momento. Precisa de advo­gado, de jurista. A legislação que o governo militar deixou é uma tragédia. Alguém precisa dar um jeito nessa bagunça, até que se instale a Constituinte. Você precisa ir. Vou falar com ele.

— Meu querido Sodré, agradeço a demonstração de confiança, mas não faça isso. De jeito algum! Meu escritório em São Paulo está indo de vento em popa. Tenho muitos advogados sob meu comando. Se largar tudo agora, não sei o que será da minha advocacia. Se meus companheiros se dispersarem agora, adeus, bela viola. Nunca mais vou reuni-los de novo. E, além disso, quero usufruir do prestígio, isso sim me alegra, de ser, como você, amigo pes­soal do Presidente da República.

— Sarney precisa dos amigos ao lado dele! Você não entende? Essa Pre­sidência para ele vai ser uma pauleira. Vai ter oposição até dos pernilongos do Lago Paranoá.

Lembrei-me dos caipiras da minha terra, quando diziam que a mordidinha do pernilongo não incomodava tanto, mas o que aborrecia muito era a maldita da cornetinha que tocava antes de picar. A esquerda é sempre opo­sição a tudo. A direita luta por mais privilégios. Ambas as extremas, na ver­dade, lutam para conquistar o poder e nele permanecer custe o que custar. E neste “o que custar” entra tudo: imoralidade, dinheiro, safadeza, muito pouco idealismo. Mas a cornetinha mais chata era a do PT. Ainda não picava, mas como zumbia! Hoje, com as negociatas de Marcos Valério, Delúbio Soares e outros muitos, dólares na cueca, dinheiro de bingo e do jogo do bicho, soubemos que, no Brasil, a esquerda realmente não é direita.

Acabei indo para o Governo. Quando Sarney precisou preencher a vaga no Ministério das Relações Exteriores, com a saída de Olavo Setúbal, recordei-me daquele fim de semana em Boiçucanga. O Presidente precisava de amigos ao lado dele. Arrisquei um palpite que, tinha certeza, agradaria a Sarney:

— Sodré — sugeri durante as discussões.

Sarney me olhou, parou para pensar e me disse:

— Está resolvido! Fale com ele. Chame-o imediatamente.

O sonho de Sarney seria contar com o Embaixador Sérgio Armando Frazão. Mas, infelizmente, Frazão havia morrido logo no início do novo go­verno. Cirurgia no Rio de Janeiro. E lá veio Roberto de Abreu Sodré para o Itamaraty.

Estava, agora, ao telefone, protestando contra o Código Penal Brasileiro. Informei-lhe:

— Esse código é obra da ditadura. É de Costa e Silva.

— O general?

— Não. Do tempo da ditadura Vargas. Costa e Silva, o jurista, não o militar.

— E o jornalista? Você vai ou não vai mandar prendê-lo?

— Vou. Mas preciso de um detalhe: o nome dele.

Mandou-me o nome e a localização. Estava no Rio. Chamei o Diretor da Polícia Federal, Dr. Romeu Tuma, e dei a ordem: prendam o jornalista.

— ?

— Não se preocupe! Prendam e autuem pelo crime de omissão de so­corro. Prova? O próprio filme que ele fez da índia agonizante até à morte, e, segundo o áudio dessa grande obra cinematográfica, ela teria morrido de fome. Um pouquinho de água e um pedaço de pão, ou brioche, para lembrar Maria Antonieta, teriam salvo a mulher ianomâmi.



Preso o jornalista, a mulher ianomâmi apareceu viva em Roraima, algu­mas horas depois. Assim, o francês se livrou do crime de omissão de socorro. Mas, na França, teve que desmentir a morte da índia e admitir a fraude de sua reportagem. A desmistificação, segundo me informaram, foi noticiada em horário sem audiência alguma, numa das madrugadas parisienses, quando os televisores estão desligados, ou quando um telespectador dormita na frente do écran azul, depois de um champanha rosé, comendo um croque monsieur frio.

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Os ianomâmis são autênticas crianças. Mas se julgam espertos e, com isso, vivem enganados por todo tipo de gente: garimpeiros, contrabandistas de pedras preciosas, tipos que se dizem religiosos, pesquisadores de plantas medicinais, um sem-número de aventureiros que se alongam nas nossas sel­vas. Há na Amazônia índios que falam inglês, francês e holandês, muitos, e poucos falam português.

Ministro da Justiça, fui olhar de perto a situação deles. Romero Jucá era o Governador de Roraima e me recebeu. Fomos juntos, de helicóptero, visitar várias aldeias. Um chefe ianomâmi, creio que se chamava Davi Ianomâmi. chegou-se a mim e, sem que o Governador ouvisse, falou baixinho:

— Ministro, precisa tirar garimpeiro daqui. Só traz desgraça: doença, rouba mulher de índio, vicia meninos em cigarro, drogas. Acaba com nossa vida.

Depois, chegava ao Governador e dizia, a uns três metros longe de mim:

— Governador, diga para Ministro que garimpeiro tem que ficar. Ele e bom para índio. Traz remédio, radinho, bateria, roupa nova, faca, facão, cho­colate, tudo que precisamos para viver.

Não era fácil acertar um ponto de verdade com o chefe e com seus auxi­liares. Todos mentiam. Infelizmente essa é a marcante característica da mais autêntica brasilidade: mentir. Disseram-me depois que esse comportamento infantil decorria do medo que tinham do homem branco e que mentiam como um esforço psicológico de defesa, a qual era concebida pela deteriora­ção cognitiva que a civilização lhes impusera.

Com auxílio de vários técnicos conhecedores da região e dos costumes, elaborei uma solução que, na época, me pareceu viável e eficaz para evitar conflitos naquela imensa região. Seria fazer uma demarcação de uma área para garimpo, isolando-a completamente das comunidades indígenas. Índio não entra, garimpeiro não sai. O governo encarregaria a Caixa Econômica de comprar o produto dos garimpos para evitar os descaminhos e outras fal­catruas. Polícia nas fronteiras das áreas demarcadas. Ficaria mais simples do que policiar toda a Amazônia. Punição rigorosa para garimpeiros que invadissem as áreas indígenas, ou os atraíssem para qualquer tipo de convivência.

De alguma forma e no exercício do direito de sonhar, entendi que os ín­dios não deveriam ser atraídos para a atividade garimpeira, nem usufruir das riquezas do ouro ou das pedras preciosas. Se isso acontecesse, ou acontecer, estariam, ou estarão, sendo lançados aos costumes dos civilizados. Compra­riam carros, aviões, helicópteros. Já não mais seriam índios.

Apenas sonhei. Hoje, eles se matam por lá. Matam-se uns aos outros, matam garimpeiros, apossam-se de suas máquinas e querem ficar com o lu­cro das preciosidades de suas terras. É tudo legítimo, na teoria, na prática, menos na filosofia. Mas tem um toque de felicidade: não pagam impostos.

Dentro em breve, estarão organizados em cooperativas e vendendo o produto de suas terras à Caixa Econômica Federal, ou para americanos, ja­poneses ou europeus. Pagarão tributos em português, sem saber falar a lín­gua de Camões. Terão sistemas de computadores. Serão orientados por economistas.

O chefe ianomâmi não achará graça em mentir. Não será mais criança. Terá perdido a pureza.

E por que Ministro da Justiça tem que tomar conta de índio?

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Volto ao caso do Sr. Olavo Brás, mesmo porque estavam acontecendo coisas estranhas. Advogado precisa estar preparado para tudo. Em São Paulo de tempos em tempos, aparecem uns picaretas, tipos de paqueiros, que fare­jam casos complicados e se enfiam no meio do assunto, dizendo-se amigos do juiz, do promotor, do escrivão ou de alguém muito poderoso que pode re­solver qualquer problema daquele tipo. O tipo é sempre o problema da gente. Caras-de-pau! Mas como existem e como insistem!

Na questão do Sr. Olavo Brás, apareceu um desses no meu escritório. E somente queria falar comigo. Outro advogado não servia. Assunto de alta importância. A gente sempre sabe que essa “importância” é dinheiro. Come­çou jeitosamente:

— Conheço bem quase todas as varas do fórum e, em particular, aquela vara de família, onde o senhor defende seu cliente Olavo Brás.

— Eu também conheço. Se o senhor precisa de sigilo para dizer isso, não vejo que utilidade pode haver para a causa.

— Não, doutor, não é bem assim. Conheço pessoas que têm a maior in­timidade com o juiz.

Lembrei-me das informações dos meus estagiários. A descrição física conferia exatamente. Homem alto, magro, bem vestido. Abri a pasta onde ha­via esquecido as anotações. Ele insistia em intimidade com o juiz por inter­médio de terceiras pessoas, ou quartas ou quintas. Nessa hora, a gente passa da conta e quase perde a calma.

Toquei-me. O homem certamente iria falar em corrupção. A princípio, pensei que fosse referir-se ao escrivão, ou a algum outro funcionário, como, infelizmente, é costumeiro nessas circunstâncias. Quando mencionou inti­midade com o juiz, acendeu minha luz de alarme. Dei corda, para ver ate onde teria coragem de chegar. Quanto ao magistrado, não havia qualquer dúvida: era de uma honestidade a toda prova.

— O juiz — continuou o cara-de-pau — tem um tio eclesiástico, da Igreja Católica. O seu cliente, Sr. Olavo Brás, é um homem de posses. Pode efetuar um donativo à Igreja, um donativo expressivo, que toque o sentimen­to do religioso. Na certa, ele não se recusará a falar com o sobrinho sobre a generosidade do doador. Pedirá, é claro, decisão favorável a tão nobre alma.

Filho-da-mãe! O sujeito era corajoso. E havia realmente maquinado uma verdadeira engenharia para “descolar algum” do meu cliente. O meliante descobriu que o juiz tinha um tio bispo católico. Era verdade. E não insinuou nada, nadinha, de corrupção por parte do magistrado. Limitou-se a sugerir uma doação à Igreja Católica por intermédio do tio do magistrado. Resolvi fazer-me de bobo e perguntei:

— Diga-me onde posso encontrar o religioso, e pedirei para o meu cliente procurá-lo.

— O senhor vai me desculpar — respondeu ele com expressão de ex­trema candura. — Levei tempo para descobrir como se chega a esse juiz, porque diretamente é impossível. Trata-se, doutor, de um investimento meu, honesto. Pesquisei muito. A doação, porém, deve ser feita por meu intermédio. Assim, poderei falar do caso do seu cliente e claramente pedir por ele.

— E o bispo aceitará? O senhor já fez isso antes com esse sacerdote, para obter favor do seu sobrinho?

Notei um ligeiro embaraço na expressão facial do picareta. Claro que jamais havia utilizado o expediente. Estava literalmente tentando me passar o conto do vigário. Lembrei-me de que, na Antigüidade, a palavra “sacerdote” significava aquele que tratava dos assuntos religiosos e tinha o poder de ofe­recer vítimas à divindade.

— Tenho que ser honesto com o senhor — balbuciou. — É a primeira vez; mas, pelas pesquisas feitas por mim, a coisa vai funcionar. O tio tem enorme influência sobre o juiz. Vai funcionar.

Segundo o Código de Processo Penal, art. 301,83 eu poderia prendê-lo em flagrante. A lei faculta a qualquer cidadão efetuar a prisão e a torna obri­gatória quando se tratar de autoridade policial. Desisti, porém. O escândalo traria maiores prejuízos a todos. Envolveria o juiz, um eclesiástico, a Igreja Católica, a imprensa exploraria o caso. E, se bem conhecia eu o magistrado, ele abandonaria o processo. Dar-se-ia por impedido.

— Como o senhor ficou sabendo do processo, se ele está tramitando em segredo de Justiça? — perguntei.

— Ora, doutor! Para quem conhece o fórum de São Paulo, como eu co­nheço, segredo de Justiça é uma figura de ficção.

Realmente, o sujeito era cínico, mas sabia das coisas. Pelo menos, de al­gumas. Resolvi encerrar a conversa. Já havia dado muita trela para o vigarista:

— Meu caro senhor, agradeço sua visita. Já que o senhor conhece tantas coisas do Judiciário, sabe igualmente que eu poderia prendê-lo pelo crime de extorsão e de promessa de corrupção de um magistrado. Prefiro que o senhor se retire imediatamente.

— Mas, doutor...

— Não tem mas, nem mais, nem menos — interrompi, apertando a campainha de chamar minha secretária. Meu pessoal já estava do lado de fora, esperando. Entraram o Nerval, com seu corpanzil enorme e voz grossa, o Maércio Sampaio e o Carlos Strasbourg:

— Esses senhores vão acompanhá-lo até o elevador. Pode sair, por favor.

O homem saiu, meio pálido.

Nerval me disse depois que envenenou ainda mais a situação, ao co­mentar, enquanto esperavam o elevador:

— O chefe hoje fez algo muito raro: pediu um gravador antes de re­ceber este senhor na sala dele. Será que gravou a conversa que tiveram?

— Pare com isso, Nerval! — intercedeu o Maércio. — As coisas do chefe não se comentam!

Histórias de corrupção, de “intermediação”, de venda de sentenças sem que os juizes saibam, há muitas. Essa foi mais uma tentativa, bem engen­drada, por sinal. Infelizmente eu não tinha gravador algum.

Nerval fez uma investigação do homem que se atreveu a tentar, literal­mente, o conto do vigário no caso do Sr. Olavo Brás. Descobriu tratar-se de um estelionatário conhecido nos meios forenses, mas que insistia em “vender decisões judiciais”. Um jogo parecido com a roleta no preto ou vermelho. Cinqüenta por cento de chance. Se acerta, leva a vantagem indevida, e o advogado que concordou em usar tal expediente ficará o resto da vida duvi­dando da honestidade do juiz da causa. Se erra, vem a desculpa: a outra parte pagou mais; desta vez não deu por isso, por aquilo. Mas é uma figura que ainda existe. Creio que todos os advogados, escrivães e serventuários deve­riam banir esses célebres intermediários exploradores de prestígio. Fazem um mal tremendo ao conceito do Judiciário, maior que o próprio juiz real­mente corrupto, tipo que existe, mas é muito raro.

O tio do juiz, bispo católico, nem sequer tinha contatos com o sobri­nho. Exercia seu sacerdócio no Estado do Espírito Santo. Era uma figura de alta respeitabilidade. Os vigaristas, porém, descobrem tudo e montam suas versões, de forma a tentar o golpe com aparência confiável e atrativa. A regra infalível nessas horas é recusar. A recusa sempre acerta.

Contrariando essa doutrina, Canuto Mendes de Almeida costumava dizer:

— O advogado que não der dinheiro para o escrivão não é honesto para com seu cliente.

Canuto, que fora Procurador-Geral da República no Governo Jânio Quadros, quando passou a advogar, incorporou-se à nossa equipe no escritó­rio de Brasília, chefiado pelo Dr. Luiz Carlos Bettiol. Tinha frases notáveis. Ao dar aula de Direito Processual Penal, lembrava aos seus alunos:

— Vocês vão encontrar definições cultas e profundas nos grandes auto­res que desenvolveram a doutrina jurídica da matéria. A mais perfeita, porém, é a de Lupicínio Rodrigues, compositor gaúcho, que foi bedel na Faculdade de Direito em Porto Alegre. Em uma de suas músicas, sintetizou a essência do Direito Processual Penal, ao compor este verso: “Primeiro é preciso julgar, para depois condenar”.

Sua concepção de desonestidade do advogado que não desse dinheiro para o escrivão era engraçada, mas, no nosso escritório, não fez sucesso.

O assunto era proibido. Ovídio Rocha Barros Sandoval, um dos diletos discípulos do Professor Vicente Ráo, levantava-se e saía da sala indignado, se alguém falasse, ou simplesmente insinuasse, em dar uma “gratificação” para alguém de um cartório do Judiciário.

Isso, é claro, não impedia os presentes de fim de ano, invocando-se o Natal; mas nada tinha com o toma-lá-dá-cá em casos específicos sob nosso patrocínio profissional. Não me arrependo do critério. Durante anos e anos, mantivemos um índice de vitórias definitivas em 93% de nossas causas. Um dia, a revista Veja fez uma reportagem sobre minha advocacia, chamando-me de “Romário dos Tribunais”, na época em que o baixinho estava jogando tudo o que sabia. E sabia muito. O repórter da revista perguntou-me o por­quê de tão expressivo número de vitórias. Respondi:

— Uma graça de Deus, que só me permitiu clientes inocentes.



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A Constituinte rolava agitada. Na Consultoria da República não se fazia mais nada: assessoria permanente aos parlamentares. Não me lembro quem teve a idéia, creio que foi a Dra. Tereza Helena, Consultora da República, de incluir nos direitos dos trabalhadores a proibição de qualquer discriminação “no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”.

Todos se dizem a favor, mas surgem as ponderações de ordem técnica: “Por que na Constituição?”; “Vamos deixar para a lei trabalhista!” Conversa! Se deixar para lei, alguém vai colocar uma vírgula em qualquer frase, e lá se vai o direito do deficiente. Ora, no projeto de Constituição, havia até fixação de juros reais em 12% ao ano; por que não poderia haver uma garantia fun­damental em favor do deficiente físico?

Incluímos no projeto do Centrão. É hoje o que consta no art. 7º, inciso XXXI. E, por uma questão de lógica, lutamos pela inclusão expressa de per­missivo constitucional para admissão em empregos públicos. No Congresso, incluíram o “percentual”, mania de cotas, mas tudo bem; o que interessava era que a matéria constasse dos comandos da lei maior, endereçados ao legis­lador ordinário.

As lideranças dos deficientes físicos brasileiros são extremamente atuan­tes e de altíssima eficiência. Na época da Constituinte, andavam por lá. Não sabiam bem o que deveria ser feito, mas alguma coisa devia ser feita.

À frente, uma batalhadora incansável: a Sra. Tereza da Costa Amaral, Presidente do Instituto de Defesa das Pessoas Portadoras de Deficiência. Ti­nha entrada livre na Presidência da República. Era irmã de Pedro Costa, assessor de Sarney até hoje. Recebi-a na Consultoria Geral da República. Re­velou-me algo espantoso: o deficiente físico não tinha sequer um texto legal que falasse dele, que expressamente instituísse algum direito em seu favor e a forma de defendê-lo. As escusas políticas eram as de sempre: “Seus direitos estão assegurados nas garantias gerais do cidadão”; “Especificá-los seria discriminar”.

Enquanto isso, as garantias gerais eram gerais, menos para o deficiente físico. Aquela conversa poderia servir para embalar o sono de uma boiada, mas não convencia minha desconfiada observação de advogado. No Brasil, se a lei não diz claramente, expressamente, detalhadamente, esperar que o direi­to surja de interpretação extensiva equivale a excluí-lo.

Na Consultoria Geral da República, tomamos a iniciativa, por meio de emendas apresentadas por parlamentares amigos, de aumentar referências no projeto de Constituição, incluindo nas competências administrativas (art. 23, II) e legislativas (art. 24, XIV) da União, estados e municípios, a proteção e a integração social das pessoas portadoras de deficiência física.

Não houve o menor problema para a aprovação pela Constituinte. Até o PT votou a favor. Promulgada a Constituição, com tais normas programáticas, era preciso tornar efetiva a proteção jurídica instituída pela Constituinte. Naquele trabalhão todo que tivemos para elaborar projetos de lei de concreção prevista pela nova Constituição, não nos descuidamos de providenciar a lei de defesa completa do deficiente físico. Mesmo porque Dona Tereza da Costa Amaral continuava lá. De plantão! Cobrava-nos providências, apoiada pelo irmão e pela Dra. Tereza Helena.

Estudamos todos os memoriais e considerações redigidos por suas lide­ranças, modelos de legislação, sugestões de medidas, e acabamos redigindo um anteprojeto bonito, do jeito que sempre gostei que fossem as leis: com­pletas, abrangentes de todas as atividades, sem subterfúgios, nada de ambi­güidades e com sanções penais claras para a desobediência de seus comandos, além de incumbências expressas ao Ministério Público na defesa dos direitos difusos e coletivos, nas ações civis públicas e nas ações penais.

Porque criava e reestruturava órgãos na administração pública federal, o anteprojeto teve que ser enviado ao Ministério do Planejamento, de onde deveria retornar como iniciativa do respectivo ministro, cuja fama era cozi­nhar tudo em água gelada. A regulamentação da Advocacia Geral da União ficou lá até terminar o Governo e não consegui sua implementação. Depois realizaram por medida provisória, que foi repetida umas vinte vezes, para de­sespero do Dr. Geraldo Quintão, que ousou mexer naquele favo de abelhas.

Mas, no caso do deficiente, o projeto veio rápido. Sarney interveio pes­soalmente. Dona Tereza não dava trégua. Eu estava empenhado em dar o exemplo, isto é, se a Constituição mandou legislar em favor do deficiente fí­sico, a União devia desde logo cumprir o comando maior, para que os esta­dos, Distrito Federal e os municípios, em seus respectivos âmbitos, fizessem o mesmo. Fizeram pouco.

Mas a lei federal saiu. Foi promulgada pelo Presidente José Sarney, Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, e referendada pelo Ministro João Batista Abreu, que, ao menos nessa matéria, fechou a cozinha do seu ministério.

Apenas para registro, transcrevo o artigo 1º e seu parágrafo:

“Art. 1º — Ficam estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência, e sua efetiva integração social, nos termos desta Lei.

§ 1º — Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os va­lores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça so­cial, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito.”

Na redação desse parágrafo primeiro, emocionei-me. O texto poderia servir para um poema, se norma jurídica a isso se prestasse. E pode haver emoção na redação de um texto de lei, tal como num verso decassílabo ou num alexandrino? Claro que pode! Basta que seja iluminado por um toque de humanidade. Aquela história de que leis não devem ser redigidas sob emoção é coisa de gente fria e indiferente.

Quero, porém, observar um detalhe: além de especificar os valores bá­sicos a serem respeitados, ao mencionar outros, indicados na Constituição, fiz incluir os “justificados pelos princípios gerais de direito”, antiga e preciosa lição que recebi de Vicente Ráo.

Ele ensinava que, por meio dos princípios gerais, o direito confere har­monia à vida e assim é que só com o direito dignamente se vive. Dizia que “assume o direito o caráter de força social propulsora, quando visa propor­cionar, por via principal aos indivíduos e por via de conseqüência à socie­dade, o meio favorável ao aperfeiçoamento e ao progresso da humanidade”.

O decreto regulamentar, previsto para ser editado em noventa dias, levou dez anos para sair. Collor não quis saber do assunto. Seu governo não deu a menor bola. Ainda bem que vários comandos da lei eram auto-aplicáveis, e pagamos essa enorme dívida com os princípios gerais do direito. O homem não é um simples material de construção das novas estruturas le­gais, mas o objetivo supremo é sua felicidade, pois o direito disciplina a vida social e não abandona o ser humano à sua própria sorte; antes, lança-o no ca­minho da perfeição, do desenvolvimento e do progresso, não só de sua vida física, mas também de sua vida psíquica, para construir, por esse modo, sim, uma coletividade mais bem formada por seres melhores.84

Há pouco tempo, li na Internet um artigo de Dona Tereza da Costa Amaral — “Sem cerca de arame farpado” — em que ela reclama contra a fal­ta de integração dos deficientes físicos na vida brasileira, acusando a existên­cia de uma situação semelhante ao campo de concentração escondido na in-consciência generalizada. Causou-me tristeza. A “nossa” lei pode ter ajudado, mas não resolveu.


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