Código da Vida



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Descansei nada! No dia seguinte, estourou: Collor confiscou a poupan­ça do povo e das empresas, baixou várias medidas provisórias e, entre elas, a de número 164, que bagunçou o mundo financeiro, sistema bancário, crédi­tos, sistema de habitação. O Brasil ficou de cabeça para baixo. Choveu gente no meu escritório. Meus companheiros de trabalho gritavam ao telefone:

— Volte! Volte! Não estamos dando conta! É consulta de todo lado, vem de todos os pontos do país. Você precisa estar aqui imediatamente! O empre­sariado enlouqueceu. E os advogados estão trocando impressões, fazendo reuniões, como se estivéssemos em guerra. É a loucura geral da República.

No meio daquele tumulto, o primeiro que atendi foi o meu colega e amigo Manuel Pedro Pimentel, advogado criminalista, desesperado com a prisão de alguns clientes seus, diretores de um supermercado.

Precisava ingressar com habeas corpus no dia seguinte e queria um pa­recer meu sobre a violência praticada contra pessoas que teriam infringido a lei decretada na véspera. Governo eficiente. Em nome da democracia, rou­bava o dinheiro das contas bancárias e tirava a liberdade de empresários atô­nitos por ilícitos contra legislação ainda desconhecida.

Bernardo Cabral comandava tudo. Mandou invadir a Folha de S. Paulo. Quebrou a cara. Deixou possesso o meu amigo Octavio Frias. O novo Ministro da Justiça deu entrevista dizendo que ia apurar corrupção praticada na minha gestão e colocar na cadeia o ex-ministro, isto é, eu.

Por quê? Porque descobrira, no primeiro dia, ter havido uma falcatrua na compra de borracha apagadora de lápis. Eu nem sabia que o ministério comprava borracha para apagar lápis. Aliás, não sabia nem que comprava lá­pis. Respondi dizendo que era uma pena, pois as borrachas poderiam servir para apagar as bobagens que Cabral iria escrever, se é que escreveria.

Cuidei, porém, da primeira causa, a mais urgente, porque havia pessoa presa. Tinha que estudar o parecer para o Manuel Pedro. Peguei o material e fui para casa. Estudei e comecei a escrever meu primeiro parecer no compu­tador. Antes, costumava escrever à mão. Agora, escrevi digitando, caprichado, até às cinco horas da manhã. Ficou bom. Estava com sede de tal tipo de tra­balho. Comecei a revisão, antes de imprimi-lo. De repente, a luz apagou. Per­di tudo. Naquele tempo, o Word não salvava automaticamente, e eu não ti­nha no-break. Barbeiragem minha.

A energia voltou quando amanhecia. Kazuo Kanashiro, meu caseiro, já se levantara e preparava o café. Tomei, antes, um suco. Não quis mostrar desespero. Depois do café-da-manhã, voltei ao computador e comecei tudo de novo. Eunice se levantou e foi direto ao meu local de trabalho:

— Ainda?

Contei o desastre.

— Descanse um pouco. Depois você recomeça — disse ela, preocupada com minha noite em claro. — Escreva à mão. Depois eu datilografo para você.

— Não! Prometi ao Dr. Manuel Pedro o parecer para antes do meio-dia. Vou cumprir.

Teimosamente, voltei ao computador. Fui digitando e salvando.

E cumpri. Não saiu tão bom como o primeiro, redigido na calma da madrugada e com o entusiasmo da volta à advocacia consultiva. Escrito às pressas, sob forte cansaço, o segundo parecer foi entregue antes do meio-dia. À tarde, Manuel Pedro me telefonou:

— O habeas corpus teve liminar concedida — disse ele radiante. — O juiz, em vários trechos do despacho, citou seu parecer. Foi uma linda vitória de nossas teses. Embora o despacho tenha decidido a liminar, examinou o mérito. Vamos ganhar na certa.

E ganhou. Manuel Pedro, além de excelente criminalista, era um colega educado, afável, dedicado aos seus clientes. Sofria por eles. Um advogado de verdade. Deixou saudades e faz muita falta.

Recebi os honorários no final, em moeda corrente, cruzeiros, pois o cliente era dono de supermercado e somente nesse tipo de negócio havia di­nheiro disponível, porque as vendas eram efetivadas à vista. Ninguém mais ti­nha dinheiro para pagar coisa alguma. Tudo estava indisponível nos bancos.

Não posso me queixar. Foram os primeiros honorários recebidos em razão das medidas do Governo Collor. Os primeiros de uma série que enri­queceu muitos e muitos advogados. A OAB deveria erguer uma estátua para aquele ilustre alagoano, que assegurou forte distribuição de renda e pleno emprego entre os militantes do Direito, tais e tantas as ilegalidades que praticou, a partir do tiro na inflação, o único, que errou espetacularmente o alvo.

Quando voltou a fazer política, eleito senador por Alagoas, declarou-se arrependido de haver decretado o confisco. Ele voltou! Todos eles voltam! E Fernando Collor, com sua costumeira forma de falar sem mexer os músculos da face, enrijecidos por óleo de peroba, discursou no Senado dizendo ter sido absolvido pelo Supremo Tribunal Federal. Na verdade seu processo foi arqui­vado sem apreciação do mérito, porque mérito não tinha, somente demérito. Faltaram provas, desleixadas por um inquérito malfeito. Foi saudado por Aluizio Mercadante, senador pelo PT, numa perfeita simbiose.94



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O Plano Collor deu-me trabalho que não acabava mais. A pedido de empresários paulistas, escrevi um parecer, estudando em detalhes todas as medidas tomadas pela Dra. Zélia Cardoso de Mello, àquela altura já conhe­cida como namorada do Dr. Bernardo Cabral. Dançavam bolero de rosto co­lado, à noite, depois do jantar, na Academia de Tênis, em Brasília. Seria um momento romântico do Governo Collor, não fosse casado o galante Ministro da Justiça.

Estourou o primeiro escândalo no novo governo. Ainda não era nada com Paulo César Farias. O barulho foi no Ministério da Saúde. A imprensa caiu em cima do Ministro, Dr. Alceni Guerra, acusado e ridicularizado, porque a Fundação Nacional da Saúde havia comprado bicicletas, mochilas e talhas em concorrências públicas consideradas irregulares. Material para os agentes de saúde desse Brasil afora. O noticiário era cruel. Caricaturas do Mi­nistro em cima de bicicletas, com mochilas recheadas de dinheiro, e as talhas com torneirinhas pingando moedas, em vez de água.

Divertia-me com o noticiário, sem me importar muito com os detalhes. O que se lê no jornal ou se vê na televisão nada tem a ver com os processos. Muitas notícias são manipuladas pelos interessados em jogar culpa uns con­tra os outros. Então, recebi um telefonema do meu sócio de escritório em Brasília, Luiz Carlos Bettiol:

— Está aqui o Dr. Alceni Guerra, Ministro da Saúde. Quer falar com você — e passou o telefone.

— Dr. Saulo, o senhor tem lido o noticiário sobre os problemas no Mi­nistério da Saúde? — perguntou ele.

— Tenho lido por alto.

— Gostaria que o senhor fosse meu advogado nesse caso. Não abro mão dessa escolha. Preciso do senhor e vou aonde o senhor marcar. Peço que seja urgente, porque estou sabendo de detalhes que poderão envolver-me no escândalo.

— Mas existe escândalo, Ministro? — perguntei.

— Deve existir algo, porque a Polícia Federal está conduzindo o inqué­rito na Fundação Nacional da Saúde de forma a comprometer o Ministro e não os diretores daquela instituição, responsáveis pela administração dos fa­tos ocorridos ali. O senhor pode me receber?

Respondi que sim. Marquei em São Paulo, na minha casa, para evitar que o Ministro fosse ao escritório, ainda muito visado por jornalistas naquele momento. E a imprensa estava massacrando o médico paranaense. Como sempre, nos jornais, rádio e televisão, o caso era exposto, julgado, e a vítima, condenada sem direito a defesa.

Não há democracia sem imprensa livre. Isso já foi dito e repetido mi­lhões de vezes em todos os idiomas. Jornalismo, quando é bom, assegura a tomada de consciência do povo em todos os assuntos. Mas, quando é ruim, saia de perto! Nada existe de mais maléfico. Informa errado, insiste no erro, parte em busca de prova para mostrar o certo e erra de novo; não se retrata, falsifica fatos, inventa entrevistas, difama, injuria e auto-elogia. É um desastre sem remédio.

Alceni Guerra, vítima de um desses desastres, veio a São Paulo, expli­cou, deu-me documentos para ler. Eu não estava muito animado a pegar a causa por vários motivos: era criminal e na fase de inquérito policial, embora para o advogado seja essa a fase mais importante, porque pode produzir pro­vas favoráveis ao cliente e, sobretudo, impedir que se produzam provas ten­denciosas contra ele. O pior: o inquérito corria na Polícia Federal de Brasília, o que pressupunha passar vários dias no planalto goiano, naquela secura que eu suportara durante quatro anos e achava já haver pago minha cota.

Alceni era um moço simples, vinha de uma cidade do interior no Pa­raná, Pato Branco. Sua clientela de médico o elegera deputado federal. Da Câmara dos Deputados, fora ser Ministro no Governo Collor. Esse detalhe também não me agradava.



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Se eu não pegar a causa com entusiasmo, entendo ser desleal com o cliente. Ou tenho ímpetos de defender ou o melhor é deixar que outro cuide do problema. Em algum momento, porém, ele me convenceu de que era ino­cente e era vítima de alguma trama, que não conseguia decifrar.

Peguei a papelada. Prometi estudar rapidamente. E marcamos encontro em Brasília. Dois dias depois.

Li o inquérito. Os fatos se deram todos na Fundação Nacional da Saúde, que tinha uma senhora doutora como presidenta e vários diretores. A presi­denta chamava-se Isabel Cristina. Nada apurado contra o Ministro da Saúde. O processo foi para o juiz de primeira instância, hoje primeiro grau. O ma­gistrado, porém, examinando os autos com cautela, acabou entendendo ha­ver muita referência ao Ministro da Saúde e mandou o processo para o Su­premo Tribunal Federal, competente para agir contra ministros de Estado em matéria criminal.

O Procurador-Geral da República de então, Dr. Aristides Junqueira Alvarenga, pediu a abertura de investigação contra o Ministro, fundado em trechos do relatório policial. Examinei os trechos mencionados. Eram verda­deiras e saborosas declarações de amor do delegado à Dra. Isabel Cristina, presidenta da FNS — Fundação Nacional da Saúde —, onde todos os fatos se deram.

Achei estranho. Autoridade policial nunca alivia nada para investigado algum. Quando não encontra prova material de autoria ou alguma forma indireta de participação no crime investigado, em geral os delegados de polícia deixam brechas abertas para o futuro, quando, afinal, surgir prova de sua participação no ilícito. Mas amor jamais um delegado de polícia declarou aos seus investigados. Aquilo aguçou todos os meus sentidos de advogado. Aí tem coisa. E vou saber o que é.



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No caso da Dra. Isabel Cristina, o delegado agiu de forma diversa e ori­ginal. Não apenas inocentou a investigada como prelatou um panegírico em louvor da presidenta da Fundação. Minhas antenas de advogado entraram em alerta. Até o santo desconfia, quando a esmola é demais. Vou citar apenas um pouquinho do que o delegado escreveu:

“Também a responsabilidade do então Ministro da Saúde deve ser apu­rada, separadamente, para melhor atendimento da prova, e em razão do privilégio do Foro (STF).”

O forte vem depois. O Procurador da República, experiente e traquejado, observou que o relatório do delegado fora escrito sob forte impacto emocional, salientando:

“De igual forma, também não esconde a sua emoção o Dr. Nício Brasil Lacorte, ao relatar o inquérito, referindo-se ao comportamento de Isa­bel Cristina Aparecida Stéfano (doc. de fls. 349/350), em face das fraudes:

Quando as anormalidades passaram a ser mais notórias, com o co­nhecimento trazido pelo Senador Raimundo Lira, de que seu vice-pre­sidente, por intermediário, estava a exigir comissão de 15% sobre a compra de mais de 2000 jeeps da fábrica Toyota, resolveu se socorrer de seu chefe maior, o Ministro de Estado da Saúde, Alceni Guerra. “Nessa primeira oportunidade, não encontrou amparo, pelo contrário, se sen­tiu desgastada e sem o apoio esperado, mas ainda com a esperança de que pudesse controlar ocorrências malsãs nas áreas de compras.”

Mais à frente, o Delegado Nício Brasil Lacorte frisa que os dois dire­tores menos confiáveis e sobre os quais sopesavam as acusações eram pessoas de confiança do Ministro. E o delegado profere afirmações sérias em defesa da Dra. Isabel:

“Nesse caso sofreu pressões, primeiro de Pastro, que lhe disse que dali sairia dinheiro para uma ‘caixinha’ de deputados; não cedeu; depois de Nélson, não cedeu; depois recebeu ligações do próprio Ministro da Saúde, questionando sua decisão, não cedeu. É realmente elogiável a conduta dessa mulher, porque, sendo os homens que vencem pressões dessa natureza, ela teve a coragem de enfrentamento que a levaria, ine­xoravelmente, ao caminho da demissão; mas não titubeou. E mais, ao ser demitida, mais uma vez demonstrando sua índole de excelente for­mação moral, veio a público denunciar o que há muitos e muitos anos corrói o dinheiro público, sacrificando o povo e que nunca ninguém teve tal coragem. Quiçá tivesse nosso país mais funcionários da estirpe desses dois, certamente a Administração pública seria eficiente, e os aposentados curtiriam a sua velhice com tranqüilidade.”

Não sei bem o que os aposentados tinham a ver com isso, mas o elogio à Dra. Isabel era um indício seguro de incontida parcialidade, um discurso pouco usual em relatório policial. Desconfiei mais ainda.

O parecer do Procurador-Geral da República, pedindo abertura de in­quérito contra o Ministro (àquela altura era ex-Ministro), foi assinado no dia 24 de fevereiro de 1992. No dia 26, dois dias depois, Alceni Guerra já estava sentado diante daquele delegado da Polícia Federal, Dr. Nísio Brasil Lacorte, em Brasília, para ser interrogado.

Mas eu estava lá, ao lado do cliente. Eu e o meu sócio de escritório, Dr. Luiz Carlos Bettiol. Passamos nove horas dentro da Polícia Federal. Chega­mos às 10 da manhã, saímos às sete da noite. Estávamos dispostos a partir para o “ou vai ou racha”. Tínhamos que rachar. Meu objetivo era o delegado de polícia, e isso por um motivo muito simples: a parcialidade demonstrada com emoção no inquérito anterior. Parcialidade não combina com autori­dade pública. Ao menos na teoria. Eu havia sido Ministro da Justiça e, em ra­zão disso, chefiado a Polícia Federal, quando seu diretor era aquele manan­cial de pureza de alma, Romeu Tuma. Conhecia seus delegados. Maioria absoluta de gente competente. Ninguém costumava escrever declaração de amor para indiciado em inquérito.

Foi longo o depoimento de Alceni. Explicou caso por caso, em detalhes De saída, ficou claro que não demitira a Dra. Isabel porque não cedera. A de­missão fora de toda a diretoria da Fundação Nacional da Saúde, inclusive a dos dois diretores por ele indicados e pelos quais a Dra. Isabel havia interce­dido favoravelmente. Os aspectos das coisas passaram a mudar. Fora o Mi­nistro quem mandara abrir comissão de inquérito e convocara o diretor da Polícia Federal para acompanhá-la. Tudo diferente.

Aí, entramos num assunto minudentemente estudado, para pegar o delegado. Dizendo que os diretores da Fundação nunca haviam sido objeto de reclamação por parte da presidenta, Alceni deixou escapar que, entre a Dra. Isabel e um diretor chamado Nélson Marques, havia um relacionamento mais afetivo, como se fosse uma amizade distinguida das demais.

O delegado pulou da cadeira. Era evidente seu transtorno, causado por uma emoção fácil de ser diagnosticada: o ciúme. Quis saber detalhes. Forçou o depoente a explicar o que queria dizer com amizade distinguida das demais e relacionamento mais afetivo.

Nosso peixão mordeu a isca. Alceni concluiu o depoimento, nesse pon­to, enfatizando: querendo deixar bem claro que não se refere a nenhum caso entre os dois.

O delegado, visivelmente aliviado, recostou-se em sua cadeira e man­dou acrescentar: fazendo constar que neste aspecto ela tinha comportamento irrepreensível.95

Alceni não havia pronunciado a frase, mas concordou com o ditado do delegado. Tecnicamente, para mim, era indiferente.

O Dr. Lacorte nos olhou e exibiu uma expressão triunfante. Àquela altura, o delegado não queria mais saber dos fatos do inquérito. Como Alceni havia desmentido todas as histórias da Dra. Isabel, o policial resolveu pro­mover uma acareação entre os dois. E convocou a ex-presidenta da FNS para depois do almoço.



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Bettiol, o cliente e eu comemos sanduíches.

— Você acha que ele está gamado na Dra. Isabel? — perguntou-me Bettiol, com um olhar maroto, referindo-se ao Dr. Lacorte.

— Está na cara, nos olhos, no pulo que deu da cadeira, quando Alceni falou no relacionamento afetivo com o Dr. Nélson Marques. É paixão irresis­tível, incontrolável e, portanto, recente. O policial está na fase de deslumbra­mento. Não vê mais nada além da moça. Não há investigação policial que possa dar certo se o investigador está apaixonado por uma das investigadas. Vamos acabar com isso.

Chegou o momento da acareação. Estávamos sentados todos na sala do delegado, quando a Dra. Isabel, triunfante, chegou, vestido leve, bem justo e adequado ao clima quente de Brasília, mas que destacava as formas esculturais de seu corpo. Sentou-se, cruzou as pernas, por sinal, lindas. Ela sabia que tinha um admirável par de coxas e fazia questão de mostrá-las. Olhei para o delegado. Era evidente o derretimento dele diante da bela mulher. Sua voz fi­cava mais suave, quase macia. Solícito, levantou-se, para acomodar a cadeira em que a senhora se sentou.

O garçom chegou com o café. O próprio delegado serviu a xícara da Dra. Isabel. Inegavelmente, era um tremendo de um imprudente. Fazer aquilo diante de dois advogados, velhas raposas, que já estavam desconfiados de sua parcialidade em razão dos relatórios anteriores. A confirmação ao vivo foi sensacional. Bettiol e eu chegamos à conclusão de que ainda estávamos em forma, em matéria de diagnósticos. Depois, observamos não ter sido tão difícil, naquele caso, chegar a essa conclusão. Afinal, o delegado chamava-se Lacorte.

Resumindo. O delegado foi afastado do inquérito. Creio que acabou sendo afastado até de Brasília. O próprio Procurador-Geral da República, ante as evidências no novo processo, pediu o arquivamento, porque o ex-Ministro nada tinha a ver com as irregularidades praticadas na Fundação Nacional da Saúde. A decisão do Supremo Tribunal Federal, arquivando o processo, foi publicada no dia 23 de outubro de 1992.

Eu já havia recebido vários pedidos de parecer sobre o processo de im­peachment contra o Presidente Fernando Collor. Nada tinham a ver com o caso de Alceni Guerra. Eram coisas do Paulo César Farias, tesoureiro da campanha presidencial, que se propusera a resolver todos os problemas criados pelo próprio governo contra os empresários brasileiros. Aceitei proferir os pareceres e, mais tarde, defender o Senado Federal no mandado de segurança que Collor impetrou contra sua cassação. Não sei no que deu o inquérito na Fundação Nacional da Saúde, nem o que foi feito da Dra. Isabel. E nunca mais ouvi falar do Dr. Brasil Lacorte. Meu cliente, como já narrei antes, pas­sou a ser outro Brasil, o impávido colosso. Alceni Guerra voltou à sua vida de médico no Paraná, agastado com a apolítica, mas de boca torta: recentemen­te, candidatou-se e elegeu-se deputado federal. Que fique bem longe dos mensaleiros! E evite ir ao Senado. Não lhe fará bem.



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Para que não fique sem registro o caso de Paulo César Farias, cheio de mistérios, suspenses e faltas de explicações, envolvo um jornalista e escritor de inegável talento: vou deixar que ele próprio conte seu drama em artigo que escreveu para o Consultor Jurídico.96

“EU SOU O CRIMINOSO DO CASO PC FARIAS

por Lucas Figueiredo

O governo Fernando Collor passou à História como sinônimo de cor­rupção. Da eleição (1989) ao impeachment (1992), a gangue que ocupou o Poder Executivo naquele período arrecadou US$ 1 bilhão com acha­ques, mutretas e golpes, segundo cálculos da Polícia Federal. A máquina de roubar ficou conhecida como Esquema PC, uma referência ao nome do tesoureiro da campanha presidencial de Collor, Paulo César Farias.

Como é sabido, com exceção de PC Farias, até hoje nenhum dos inte­grantes daquele grupo (empresários, políticos e autoridades) foi conde­nado em última instância pelos crimes cometidos. Collor, por exemplo, foi absolvido de todas as acusações, incluindo a de corrupção (ele cogi­ta se candidatar a deputado federal por Alagoas nas próximas eleições). O próprio Paulo César acabou sendo condenado por dois crimes, digamos, menores: falsidade ideológica (ele abriu contas bancárias com nomes falsos) e evasão de divisas. Só foi parar na cadeia, onde passou dois anos, porque fez a besteira de fugir do país.

O correto, portanto, seria refazer a frase da abertura deste artigo: o governo Collor passou à História como sinônimo de corrupção e tam­bém de impunidade.

E a impunidade atravessou os tempos. No dia 23 de junho de 1996, PC foi assassinado na sua casa de praia, em Maceió. O corpo do tesou­reiro foi encontrado na cama, ao lado do corpo de sua namorada, Suzana Marcolino, ambos com um tiro de revólver calibre 38. Num primei­ro momento, a Polícia Civil de Alagoas divulgou que Suzana teria matado PC e se suicidado. A investigação, no entanto, foi marcada pelas falhas, para dizer o mínimo.

Anos depois, pressionado pelo trabalho de investigação da imprensa, a polícia alagoana mudou sua versão do crime para duplo assassinato. Mesmo assim não foi capaz de dizer quem deu os tiros em PC e Suzana e quem mandou matá-los. Mais uma vez, os criminosos se safaram. E, ao que tudo indica, com muito dinheiro, já que a sobra do butim do Es­quema PC nunca foi encontrado.

Esta é a história conhecida. Estou aqui para contar outra: eu sou o criminoso do caso PC Farias.

Comecei a escrever sobre os desmandos do governo Collor quando ainda estava na universidade. Recém-formado, fiz reportagens sobre o declínio do governo e sobre o impeachment. Em Brasília, como repór­ter, vi em 1994 a absolvição de Collor no Supremo Tribunal Federal. Dois anos depois, cobri em Maceió a morte de Paulo César e Suzana. O caso grudou em mim — e eu grudei no caso.

Nos quatro anos seguintes, dediquei-me a investigar as duas ques­tões centrais do enigma PC/Collor. Ou seja, quem matou Paulo César Farias e onde foi parar o dinheiro do Esquema PC. Voltei a Maceió algu­mas vezes, e as pistas levantadas acabaram me levando à Itália, à Suíça, à Argentina, aos Estados Unidos e ao Uruguai.

Não fui capaz de responder integralmente os enigmas, mas consi­dero que fiz avanços. Em 1997, por exemplo, expus as ligações do Es­quema PC com o crime organizado internacional. No mesmo ano, revelei que o Ministério Público de Alagoas tinha uma gaveta cheia (e fechada) com exames feitos por peritos e legistas independentes que indicavam que PC e Suzana tinham sido mortos por uma terceira pessoa. Outras informações vieram com o tempo, como os dados das contas de PC Farias no exterior, algumas delas ativas mesmo depois de sua morte.

No meio do caminho, como era esperado, esbarrei numa pressão brutal de quem preferia o mistério à luz. Fui ameaçado de morte em Alagoas e escapei de uma arapuca em Houston (Texas), para onde fui atraído por um falso informante.

No ano 2000, o resultado da minha investigação virou um livro: Morcegos Negros: PC Farias, Collor, máfias e a história que o Brasil não conheceu, publicado pela Record. Mesmo tendo passado oito anos do impeachment de Collor e quatro da morte de PC, o livro foi muito bem aceito, vendendo 30 mil exemplares, o que lhe rendeu 14 semanas na lista dos mais vendidos da revista Veja (categoria não-ficção). E foi assim que me tornei um criminoso.

Ainda no ano 2000, o juiz de Alagoas Alberto Jorge Correia de Lima (responsável pelo caso da morte de PC e Suzana) leu Morcegos Negros e não gostou. Ele entrou com um processo por danos morais, em Ala­goas, contra mim e contra a editora Record. Na ação, o juiz questionava uma única frase do livro. A frase é a seguinte: “O juiz Alberto Jorge, que só reclamava, resolveu tomar uma atitude e solicitou à Secretaria de Segurança que indicasse um novo delegado para o caso”. Segundo o en­tendimento do juiz, ao dizer que ele “só reclamava”, eu teria afirmado que ele nada fazia. Sendo assim, por vias tortas, eu teria afirmado que ele prevaricara.

A reclamação de Alberto Jorge foi aceita por seus colegas da Justiça de Alagoas, tendo início um processo kafkiano contra mim.

No julgamento de primeira instância, o juiz que analisou o caso não ouviu as minhas testemunhas, entre elas o senador Eduardo Suplicy e o ex-juiz Walter Maierovitch. E acabou por condenar a mim e à Record a pagar 350 salários mínimos, mais custas de advogado (aproximada­mente R$ 200 mil, em valores corrigidos, um valor altíssimo para ações dessa natureza).

Tentei recorrer, mas na segunda instância Kafka voltou a atacar. O Tribunal de Justiça de Alagoas confirmou a condenação, mas, descumprindo uma norma sagrada da Justiça, não realizou corretamente a pu­blicação do acórdão, deixando de intimar meu advogado local. Ou seja, fui condenado novamente, e dessa vez não fui avisado.

Ao verificar a falha, no dia 3 de agosto de 2004, entrei com uma peti­ção no TJ de Alagoas comunicando o erro. Na petição, pedi a republicação do acórdão (ou seja, da sentença de condenação em segunda ins­tância), a fim de que fosse aberto o prazo para eu recorrer da decisão. A petição foi recebida pelo tribunal, conforme comprovam duas fontes diferentes: o protocolo do TJ de Alagoas em meu poder e o site do tri­bunal (www.tj.al.gov.br), na seção de consulta a processos.

Além de entrar com a petição, enviei meu advogado, Fernando Quin­tino, a Maceió. Em audiência com Quintino, o assessor de gabinete do TJ de Alagoas reconheceu o erro e afirmou que a sentença seria então publicada, reabrindo o prazo para que eu recorresse ao Superior Tribu­nal de Justiça, em Brasília. Passados quase dois anos, no entanto, o acór­dão não foi republicado.

Em abril passado, meu advogado foi pessoalmente verificar o motivo de tanta demora. Foi quando tomei conhecimento de que minha peti­ção simplesmente havia desaparecido do processo. Quintino folheou todo o processo e também não encontrou nenhum ofício solicitando ao tribunal a republicação do acórdão. Estava assim concluído Der Prozess: eu e Record éramos culpados.

Sim, eu me sinto perplexo, indignado e impotente diante do ocorri­do. Mas ainda assim vejo um fio de coerência em toda essa história: se a gangue que se formou sob a sombra do governo Fernando Collor é ino­cente, eu só poderia estar mesmo do outro lado.

Arnaldo Jabor, Clóvis Rossi e muitos outros que se cuidem com relação ao Governo Lula. A casa é mal-assombrada, e os demônios estão mandando em tudo. Não há reza que dê jeito. Lucas Figueiredo que se cuide com todas as forças, porque Fernando Collor voltou ao Senado e já declarou que apoia­rá Lula em todos os aspectos. E ele entende bem de aspectos.



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