O ERRO
DE DESCARTES
Emoçäo, razäo e cérebro humano
11
ANTONIO R. DAMASIO
O ERRO
DE DESCARTES
Emoçäo, razäo e cérebro humano
1945 1995
Título original: Descartes'Error
Emotion, Reason and the Human Brain
Traduçäo de Dora Vicente e Georgina Segurado
Traduçäo portuguesa C de P. E. A.
Revisäo de António Branco
Capa: estúdios P. E. A.
C 1994 by António R. Damásio, M. D.
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Os transgressores säo passíveis de procedimentojudicial
Editor: Francisco Lyon de Castro
PUBLICAÇOES EUROPA AMERICA, LDA.
Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL
Ediçäo n.': 154529/6234
Execuçäo técnica:
Gráfica Europam, Lda.,
Mira Sintra Mem Martins
Depósito legal n.': 854.32/@)5
Para Hanna
1
e
Indice
Introduçäo 9
PARTEI
Capitulo 1 Consternaçäo em Vermont 23
Phineas P. Gage. Gage Deixou de Ser Gage.
Porque Phineas Gage? Um Aparte sobre
Frenologia. Um Caso Paradigmático «a
Posteriori».
Capitulo 2 A Revelaçäo do Cérebro de Gage 40
O Problema. Um Aparte sobre a Anatomia
do Sistema Nervoso. A Soluçäo
C?,Vitulo 3 Um Phineas Gage Moderne 54
Uma Mente Nova. Resposta ao Desafio
Raciocinar e Decidir.
Capitulo 4 A Sangue Frio 71
10 O ERRO DE DESCARTES
Evidência a Partir de Outros Casos de
Lesöes Pré Frontais. Evidência a Partir de
Lesöes em Regiöes Näo Frontais. Uma
Reflexäo sobre Anatomie e Funçäo. Uma
Nascente. Evidência a Partir de Estudos
em Animais. Um Aparte Sobre Explicaçöes
Neuroquimicas.
Conclusäo
PARTEII
Capitulo 5 O Elaborar de Uma Explicaçäo
Uma Aliança Misteriosa. Sobre Organis
mos, Corpos e Cérebros. Estudos de Orga
nismos. O Corpo e o Cérebro Interagem: o
Organisme Interior. Sobre o Comporta
mento e Sobre a Mente. O Organisme e o
Ambiente Interagem: Abarcando o Mundo
Exterior. Um Aparte Sobre a Arquitectura
e Sistemas Nervosos. Uma Mente Integra
da Resultante de Uma Actividade Frag
mentada. Imagens do Agora, Imagens do
Passado e Imagens do Futuro. Forrnaçäo
de Imagens Perceptivas. Armazenar I ,,O a
gens. e Formar Imagens por Evocaçäo. O
Conhecimento é Incorporado em Represen
taçöes Disposicionais. Em Larga Medida, o
Pensamento é Feito de Imagens. Algumas
Palavras sobre o Desenvolvimento Neural.
99
Capitulo 6 Regulaçäo Biolégica e Sobrevivência 130
Disposiçöes Para a Sobrevivência. Mais
Acerca da Regulaçäo Básica. Tristäo, Isol
da e o Filtro do Amor. Para Além dos Im
pulsos e dos Instintos.
CE
apitulo 7 Emoçâes e Sentimentos
Emoçöes. A Especificidade do Mecanismo
Neural Subjacente às Emoçöes. Sentimen
tos. Enganando o Cérebro. Variedades de
Sentimentos. O Corpo como Teatro das
Emoçöes. Mentalizar o Corpo e Cuidar de
le. O Processo de Sentir.
Capitulo 8 A Hipôtese do Marcador Somático
Raciocinar e Decidir. Raciocinar e Decidir
Num Espaço Pessoal e Social. A Racionali
dade ern Acçäo. A Hipótese do Marcador
Sornático. Um Aparte Sobre o Altruisme.
Marcadores Somáticos: De Onde Vêm?
Uma Rede Neural para os Marcadores So
máticos. Marcádores Somáticos: Teatro @io
Corpo ou Teatro no Cérebro? Marcadores
Somáticos Manifestes e Ocultos. Rosa
Madressilva. Intuiçäo. Raciocinar fora dos
Dominios Pessoal e Social. Com a Ajuda da
Emoçäo, Para o Melhor e Para o Pior. Ao
Lado e Para Lá dos Marcadores Somá
ticos. Blases e a Criaçäo da Ordem.
il
142
178
PARTE III
Capitulo 9 Testes à Hipétese do Marcador Somático 215
Saber Mas Näo Sentir. Assunçäo de Riscos:
as Experiências do Jogo. Miopia para o
Futuro. Prever o Futuro: Correlatos Fisiolá
gicos
Capitulo 10 O Cérebro Dum Corpo com Mente 231
12 O ERRO DE DESCARTES
Nenhum Corpo, Nenhuma Mente. O Corpo
como Referência de Base. O «Self» Neural.
Capituloll UmaPaixäopelaRazäo 251
O Erro de Descartes
Postscriptum 258
O Coraçäo Humano em Conflits. A Neuro
biologia Moderne e a Ideia de Medicina.
Uma Nota Sobre os Limites Actuais da
Neurobiologia. «Leverage» Para a Sobrevi
vência.
Notas e Referências 273
Bibliografia Seleccionada 293
Agradecimentos 297
indice Remissivo 299
Introduçäo
inda que näo possa afirmar ao certo o que despertou O meu inte
Aresse pelos fundamentos neurais da razäo, recorás me claramente
de quando me convenci de que a perspectiva tradicional sobre a natureza
d,i i ,i cionalidade näo poderia estar correcta. Fui advertido, desde muito
cedc@, de que decisöes sensatas provêm de uma cabeça fria e de que emo
ç@es e razäo se misturam tanto quanto a água e o azeite. Cresci habitua
do,i (iceitar que os mecanismos da razäo existiam numa regiao separada
d@i mente onde as emoçöes näo eram autorizadas a penetrar, e, quando
pt,ii@av@inocérebrosubjacenteaessamente,assumiaaexistência desiste
m,i, iieti rológicos diferentes para a razäo e para a emoçäo. Esta era entäo
uni,i perspective largamente difundida acerca da relaçäo entre razäo e
em@)çäo, tanto em termos mentais como em termos neurológicos.
Tinha agora, porém, diante de mim, o ser inteligente mais frio e menos
emotivo que se poderia imaginas e, apesar disso, o seu raciocinio prático
encontrava se täo diminuido que produzia, nas andanças da vida quo
tidi,ina, erros sucessivos numa continua violaçäo do que o leitor e eu
coi),iderariamos ser socialmente adequado e pessoalmente vantajoso.
Ele tinha tido uma mente completamente saudável até ser afectado por
uma doença neurológica que daniíicou um sector especifico do seu cére
bro, originando, de um dia para o outro, essa profunda deíiciência na sua
capacidade de decisäo. Os instrumentos habitualmente considerados ne
cess,trios e suficientes para um comportamento racional encontravam se
int,i(,tos. Ele possuia o conhecimento, a atençäo e a memória indispensá
vei@ para tal; a sua linguagem era impecável; conseguia executar cálculos;
coiillegtiia lidar com a lógica de um problema abstracto. Apenas um outro
defuito se aliava à sua deficiência de decisäo: uma pronunciada alteraçäo
d,t capacidade de sentir emoçöes. Razäo embotada e sentimentos defi
14 O ERRO DE DESCARTES
cientes surgiam a par, como consequências de uma lesäo cerebral especi
fica, e esta correlaçäo foi para mimbastante sugestiva de que a emoçäo era
uma componente integral da maquinaria da razäo. Duas décades de
trabalho clinico e experimental com muitos doentes neurológicos per
mitiram me repetir inúmeras vezes esta observaçäo e transformar uma
pista numa hipótese testávell.
Comecei a escrever este livro com o intuito de propor que a razäo pode
näo ser täo pura quanto a maioria de nós pensa que é ou desejaria que
fosse, e que as emoçöes e os sentimentos podem näo ser de todo uns in
trusos no bastiäo da razäo, podendo encontrar se, pelo contrário, enre
dados nas suas teias, para o melhor e para o pior. É provável que as estra
tégias da razäo humana näo se tenham desenvolvido, quer em termos
evolutivos quer em termos de cada individus particular, sem a força
orientadora dos mecanismos de regulaçäo biológica, dos quais a emoçäo
e o sentimento säo expressöes notáveis. Além disso, mesmo depois de as
estratégias de raciocinio se estabelecerem durante os anos de maturaçäo,
a actualizaçäo efectiva das suas potencialidades depende provavelmente,
em larga medida, de um exercicio continuado da capacidade para sentir
emoçöes.
Näo se pretende negar com isto que as emoçöes e os sentimentos
podem provocar distúrbios destrutivos nos processos de raciocinio em
determinadas circunstäncias. O bom senso tradicional ensinou nos que
isso acontece na realidade, e investigaçöes recentes sobre o processo
normal de raciocinio têm igualmente colocado em evidência a iníluência
potencialmente prejudicial das emoçöes. É, por isso, ainda mais sur
preendente e inédite que a ausência de emoçöes nao seja menos incapaci
tadora nem menos susceptivel de comprometer a racionalidade que nos
torna distintamente humanos e nos permite decidir em conformidade
com um sentido de futuro pessoal, convençäo social e principio moral.
Täo pouco se pretende afirmar que, quando as emoçöes têm uma ac
çäo positiva, tomam as decisöes pornós ou que näo somos seres racionais.
Limito me a sugerir que certos aspectos do processo da emoçäo e do sen
timento säo indispensáveis para a racionalidade. No que têm de melhor,
o, sentimentos encaminham nos na direcçäo corrects, levam no.s para o
lugar apropriado do espaço de tomada de decisäo onde podemos tir@ir
partido dos instrumentos da lógica. Somos confrontados com a incertez@l
quando temos de fazer um juizo moral, decidir o rumo de uma relaçäo
pessoal, escolher meios que impeçam a nossa pobreza na velhice oLi
planeur a vida que se nos apresenta pela frente. As emoçöes e os senti
mentos, juntamente com a oculta maquinaria fisiológica que lhes estéi
subjacente, auxiliam nos na assustadora tarefa de fazer previsöes rela
INTRODUÇAO 15
tivamente a um futuro incerto e planeur as nossas acçöes de acordo com
essas previsöes.
Começarei o livro com a análise do caso de Phineas Gage, que foi mar
cante no século xix e em que, pela primera vez, se tornou evidente uma
ligaçäo entre uma lesäo cerebral especifica e uma limitaçäo da raciona
lidade, para, em seguida, examinar investigaçöes recentes sobre os moder
nos companheiros de infortúnio de Gage e passar em revista descobertas
neuropsicológicas pertinentes em seres humanos e em animais. Sugerirei
ainda que a razäo humana está dependente näo de um único centro cere
bral mas de vários sistemas cerebrais que funcionam de forma concerta
da ao longo de muitos niveis de organizaçäo neuronal. Tanto as regiöes
cerebrais de «alto nivel» como as de «baixo nivel», desde os córtices pré
frontais até ao hipotálamo e ao tronco cerebral, cooperam umas com as
outras na feitura da razäo.
. Os niveis mais baixos do edifício neurológico da razäo säo os mesmos
que regulam o processamento das emoçöes e dos sentimentos e ainda as
funçöes do corpo necessárias para a sobrevivência do organisme. Por sua
vez, estes niveis mais baixos mantêm relaçöes directas e mútuas com
praticamente todos os órgäos do corpo, colocando assim o corpo directa
mente na cadeia de operaçöes que dá origem aos desempenhos de mais
alto i iivel da razäo, da tomada de decisäo e, por extensäo, do compor
tamento social e da capacidade criadora. Todos estes aspectos, emoçäo,
sentimento e regulaçäo biológica, desempenham um papel na razäo hu
mana. As ordens de nivel inferior do nosso organisme fazem parte do
mesmo circuito que assegura o nivel superior da razäo.
É fascinante encontrar a sombra do nosso passado evolutivo no nivel
mais distintivamente humano da actividade mental, embora Charles
Darwin já tivesse antevisto o essencial desta descoberta ao escrever sobre
a marca indelével das origens humildes que os seres humanos exibem na
sua estrutura corporall. Contudo, a dependência da razäo superior rela
tivamente ao cérebro de nivel inferior näo a transforma em razäo inferior.
facto de agir de acordo com um dado principio ético requerer a parti
de circuitos modestes no cerne do cérebro näo empobrece esse
o ético. O edificio da ética näo desaba, a moralidade näo está
da e, num individus normal, a vontade continua a ser vontade. O
e mudar é a nossa perspectiva acerca da maneira como a biologia
tribuido para a origem de certos princípios éticos que emergem
terminado contexte social, quando muitos individuos com uma
säo biológica semelhante interagem em determinadas circuns
oçäo é o segundo tema central deste livro, um tema para o qual
16 O ERRO DE DESCARTES
fui arrastado, näo por escolha antecipada mas pela necessidade, ao pro
curar entender a maquinaria cognitiva e neurológica subjacente à razäo
e à tomada de decisöes. Por isso, uma segunda ideia presente no livro é
a de que a essência de um sentimento (o processo de viver uma emoçäo)
näo é uma qualidade mental ilusória associada a um objecte mas sim a
percepçäo directa de uma paisagem especifica: a paisagem do corpo.
A minha investigaçäo de doentes neurológicos em que a experiência
dos sentimentos se encontrava diminuida por lesöes cerebrais levou me
a pensar que os sentimentos näo säo täo intangiveis como se tem supos
to serem. Podemos ser capazes de os circunscrever em termos mentais, e
talvez possamos encontrar também o seu substracto neurológico. Desvio
me do pensamento neurobiológico actual ao propor que os sistemas de
que as emoçöes e os sentimentos dependem de forma critica incluem näo
só o sistema limbico, uma ideia tradicional, mas também alguns dos córti
ces pré frontais do cérebro e, de forma mais importante, os sectores cere
brais que recebem e integram os sinais enviados pelo corpo.
Concebo a essência do viver mental das emoçöes como algo que pode
mos ver através de uma j anela que abre directamente sobre uma imagem
continu.amente actualizada da estrutura e do estado do nosso corpo. Se
irnaginarmos a vista que se alcança a partir desta janela como uma paisa
gem, a «estrutura» do corpo é o análogo das formas dos objectes espacial
mente dispostos, enquanto o «estado» do corpo se assemelha à luz, às
sombras, ao movimento e ao som dos objectes nesse espaço. Na paisagem
do seu corpo, os objectes säo as visceras (coraçäo, pulmöes, intestinos,
músculos), enquanto a luz e a sombra, o movimento e o som representam
um ponto na gama de operaçöes possiveis desses órgäos num determi
nado moments. Em termos simples mas sugestivos, o sentimento é a
«vista» momentänea de uma parte dessa paisagem corporal. Tem um
conteúdo especifico o estado do corpo e possui sistemas neurais
especificos que o suportam o sistema nervoso periférico e as regiöes ce
relirais que integram sinais relacionados com a estrutura e a regulaçäo
corporal. Dado que o sentir dessa paisagem corporal é temporalmente
justaposto à percepçäo ou recordaçäo de algo que näo faz parte do corpo
um rosto, uma melodia, um aroma , os sentimentos acabam por se
tomar «qualificadores» dessa coisa que é percebida ou recordada. Mas há
algo mais num sentimento do que esta essência. Como irei explicar, o es
tado do corpo que é qualificador, quer seja positive ou negativo, é acom
panhado e completado por um correspondente modo de pensamento: de
alteraçäo rápida e rico em ideias, quando o estado do corpo está na banda
positiva e agradável do espectro, e de alteraçäo lenta e repetitivo quando
o estado do corp'o se inclina em direcçäo à banda dolorosa.
INTRODUÇAO 17
Nesta perspective, emoçöes e sentimentos säo os sensores para o en
contra ou falta dele, entre a natureza e as circunstäncias. E por natureza
refiro me tanto à natureza que herdámos enquanto conjunto de adapta
çöes geneticamente estabelecidas como à natureza que adquirimos por
via do desenvolvimento individuel através de interacçöes com o nosso
ambiente social, quer de forma consciente e voluntária quer de forma in
consciente e involuntária. Os sentimentos, juntamente com as emoçöes
que os originam, näo säo um luxo. Servem de guias internos e ajudam nos
a comunicar aos outros sinais que também os podem guiar. E os senti
mentos näo säo nem intangiveis nem ilusários. Ao contrário da opiniäo
cientifica tradicional, säo precisamente täo cognitivos como qualquer
outra percepçäo. Säo o resultado de uma curiosa organizaçäo fisiológica
que transformou o cérebro no público cativo das actividades teatrais do
corpo.
Os sentimentos permitem nos entrever o organisme em plena agitaçäo
biolôgica, vislumbrar alguns ME canismos da própria vida no desempe
nho das suas tarefas. Se näo fora a possibilidade de sentir os estados do
corpo, que estäo inerentemente destinados a serem dolorosos ou apra
ziveis, näo haveria sofrimento ou felicidade, deseio ou miseric(5rdia,
tragédia ou glória na condiçäo human@t.
A primera vista, o concerto de espirito humano proposto aqui pode
näo ser intuitive ou reconfortante. Na tentativa de trazer à luz do dia os
fenómenos comp@exos da mente humana, corremos sempre o risco de os
degradar ou destruir. Porém, isso sá acontecerá se confundirmos o pró
prio fenomeno com as diferentes componentes e operaçöes que podem
estar por detrás da sua manifestaçäo. Näo é isso que aqui proponho.
Descobrir que um certo sentimento depende da actividade num deter
minado número de sistemas cerebrais especificos em interacçäo com uma
série de órgäos corporais näo diminui o estatuto desse sentimento en
quanto fenómeno humano. Täo pouco a angústia ou a sublimidade que
o amor ou a arte podem proporcionar säo desvalorizadas pela com
preensäo de alguns dos diversos processos biológicos que fazem desses
sentimento o que eles säo. Passa se precisamente o inverse: o nosso ma
ravilhamento aumenta perante os intricados mecanismos que tornam tal
magia possivel. A emoçäo e os sentimentos constituera @l base daquilo que
os seres humanos têm descrito desde há milénios coiiio l 1 ni;i oi i t cli iri to
humano.
FemmdaCiência29 2
18 O ERRO DE DESCARTES
Este livro compreende ainda um terceiro tema relacionado com os an
teriores: a perspectiva de que o corpo, tal como é representado no cérebro,
pode constituir o quadro de referência indispensável para os processos
neurais que experienciamos como sendo a mente. O nosso próprio orga
nismo, e näo uma realidade externa absoluta, é utilizado como referência
de base para as interpretaçöes que fazemos do mundo que nos rodeia e
para a construçäo do permanente sentido de subjectividade que en
quadra as nossas mundividências. De acordo com esta perspective, os
nossas mais refinados pensamentos e as nossas melhores acçöes, as
nossas majores alegrias e as nossas mais profundas mágoas usam o corpo
como instruments de aferiçäo.
Por mais surpreendente que pareça, a mente existe dentro de um or
ganismo integrado e para ele; as nossas mentes näo seriam o que sao se
näo existisse uma interacçäo entre o corpo e o cérebro durante o processo
evolutivo, o desenvolvimento individual e o momento actual. A mente te
ve primeiro de se ocupar do corpo, ou nunca teria existido. De acordo com
a referência de base que o corpo constantemente lhe fornece, a mente po
de entäo ocupar se de muitas outras coisas, reais e imaginárias.
Esta ideia encontre se ancorada nas seguintes afirmaçöes: (1) o cére
bro humano e o resto do corpo constituera um organisme indissociável,
formando um conjunto integrado por meio de circuitos reguladores
bioquimicos e neurológicos mutuamente interactivos (incluindo compo
nentes endócrinas, iinunológicas e neurais autónomas); (2) o organisme
interage com o ambiente como um conjunto: a interacçäo näo é nem ex
clusivamente do corpo nem do cérebro; (3) as operaçöes fisiológicas que
denominamos por mente derivam desse conjunto estrutural e funcional
e näo apenas do cérebro: os fenómenos mentais só podem ser cabalmen
te compreendidos no contexte de um organisme em interacçäo com o am
biente que o rodeia. O facto de o ambiente ser, em parte, um produto da
actividade do próprio organisme apenas coloca ainda mais em destaque
a complexidade das interacçöes que devemos ter em conta.
Näo é habitual falar de organismos quando se fala sobre cérebro e
mente. Tem sido täo óbvio que a mente surge da actividade dos neurónios
que apenas se fala destes como se o seu funcionamento pudesse ser inde
pendente do funcionamento do resto do organisme. Mas, à medida que
fui investigando perturbaçöes da memória, da linguagem e do raciocinio
em diferentes seres humanos com lesöes cerebrais, a ideia de que a acti
vidade mental, dos seus aspectos mais simples aos mais sublimes, roquer
um cérebro e um corpo propriamente dito tornou se notoriamente ines
capável. Em relaçäo ao cérebro, o corpo em sentido estrito näo se limita
INTRODUÇÄO 19
a fornecer ao cérebro sustento e modulaçäo: fornece, também, um tema
básico para as representaçöes cerebrais.
Existera factos que apoiam esta ideia, razöes pelas quais a ideia é plau
sivel e razöes pelas quais seria bom que as coisas fossem realmente assim.
Entre estas últimas, em primeiro lugar está incluida a de que a proeminên
cia do corpo aqui proposta pode esclarecer a mais polémica e vexante de
todas as questöes que tem sido colocada desde que os seres humanos
começaram a interrogar se sobre as suas mentes: como é que estamos
conscientes do mundo que nos rodeia, como é que sabemos o que sabe
mos e como é que sabemos que sabemos?
Na perspectiva da hipótese exposta acima, o amor, o ádio e a angús
tia, as qualidades de bondade e crueldade, a soluçäo planificada de um
problema cientifico ou a criaçäo de um novo artefacto, todos eles têm por
base os acontecimentos neurais que ocorrem dentro de um cérebro, desde
que esse cérebro tenha estado e esteja nesse momento a interagir com o
seu corpo. A alma respira através do corpo, e o sofrimento, quer comece
no corpo ou numa imagem mental, acontece na carne.
Escrevi este livro como a minha versäo de uma conversa com um
amigo imaginário, curiosa inteligente e sensato, que sabia pouco acerca
de neurociência mas muito acerca da vida. Fizemos um acordo: a con
versa tinha de ter beneficios mútuos. Para o meu amigo, esses beneficios
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