E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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o) Mt 7, 22 ---------------------------os hipócritas dirão que expulsam demónios em nome de Jesus

e) Mt 12,27 Ii Lc 11,19 (controvérsia sobre Belzebu, cf acima) «por quem os expulsam os vossos filhos?»

p) Lc 10, 17 os setenta (e dois) relatam que os demónios se sujeitaram a eles «em nome de Jesus»


3. Outras passagens que demonstram a teoria da possessão demoníaca

q) Mt 11, 18 Ii Lc 7, 33 --------------------algumas pessoas dizem que João Baptista está possesso

r) Mt 12,43 I I Lc 11,24 ----------------------------descrição do movimento de um espírito maligno

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Estas passagens suscitam vários comentários. Em primeiro lugar, demonstram que a possessão diabólica e os exorcismos eram fenómenos bem conhecidos e que existiam muitos outros exorcistas para além de Jesus. Na «controvérsia sobre Belzebu» (e), o próprio Jesus admite que alguns fariseus tinham capacidade para proceder a exorcismos. A tradição dos Evangelhos indica que os discípulos também estavam capacitados para praticar exorcismos (m) e (P), que um homem que não fazia parte dos seguidores de Jesus fazia exorcismos em seu nome (n) e que, mais tarde, os «hipócritas» reivindicarão praticar também exorcismos em nome de Jesus (o). Deveríamos recordar neste contexto as histórias sobre Apolónio e Eleazar.

Em segundo lugar, estas passagens indicam que o sinal de posses­ são demoníaca consistia, habitualmente, num comportamento errático. O possesso de Gerasa (f) tinha sido literalmente acorrentado, mas tinha quebrado as cadeias e escondia-se nos túmulos. O espírito de que a criança estava possessa «lançava-a muitas vezes ao fogo e à água» (Mc 9, 22). Na versão da controvérsia sobre Belzebu que se encontra em Marcos (e), a acusação de que Jesus expulsa demónios invocando o nome do príncipe destes vem imediatamente depois de a família de Jesus ter tentado ter mão nele, dizendo «está fora de si». (Mc 3, 21). Voltaremos a esta questão mais adiante, pelo que aqui nos limitaremos a notar que o próprio Jesus pode ter revelado um comportamento errático.

Em terceiro lugar, os autores dos Evangelhos e, provavelmente, a tradição cristã anterior aos nossos Evangelhos, desenvolveram o tema da reputação de Jesus como exorcista. As recapitulações sumárias vão neste sentido: «trouxeram-lhe todos os enfermos e possessos ... E ele ... expulsou muitos demónios» (b). Os dois casos mais evidentes de desenvolvimento do tema são os indicados com as letras (j) e (P). A primeira destas passagens - Mt 9, 32-3 - é, provavelmente, uma criação de Mateus. A passagem refere-se à cura de um mudo que estava possesso do demónio. A questão da invenção é importante e Mt 9, 32-34 constitui um caso interessante de analisar.

Esta passagem constitui, provavelmente, um dos casos em que Mateus criou uma correspondência adicional entre a profecia e os atos de Jesus. Em 11, 5, Mateus cita a resposta de Jesus a João Baptista. «Os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada

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aos pobres.» Isto baseia-se em Isaías 35, 5 e segs. e Mateus estava provavelmente interessado em ilustrar todos os pontos com a prova do texto da Escritura. Ele já tinha histórias de curas de um leproso (Mt 8, 1-4) e de um homem paralítico (Mt 9, 1-8), assim como da ressuscitação de um morto (Mt 9, 18-26) e só precisava da cura de um cego e de um mudo. Ao que parece, ele pretendia apresentar ambos nesta secção do seu Evangelho, isto é, nos capítulos 8 e 9. É também possível que pretendesse atingir o número de dez curas. Seja qual for o seu motivo, é provável que tenha escrito os dois últimos milagres desta secção. A cura do cego é tirada de uma passagem que aparece mais adiante (Mc 10, 46 / / Mt 20, 29-34), criando, assim, uma duplicação; ele compôs a passagem em causa (o mudo possesso) utilizando motivos-padrão. O homem mudo foi curado através da expulsão de um demónio (motivo habitual); a multidão exclamou: «Nunca se viu tal coisa em Israel» (cf. 8, 10 «Não encontrei ninguém em Israel com tão grande fé»), e os fariseus dizem: «É pelo chefe dos demónios que ele expulsa os demónios.» (Assumido de 12, 24, onde esta acusação se segue à cura de um cego e de um mudo possesso.)



A história presente demonstra, portanto, que se podiam criar novas histórias de milagres com base em outras. Mas também podemos observar uma falta de capacidade criativa autêntica. Mateus limita-se a ir buscar outros milagres para as suas novas histórias. Parece dispor de uma pequena reserva de histórias tradicionais de curas à qual recorrer quando necessitava de histórias novas, em vez de inventar relatos completamente novos.

Lc 10, 17 constitui um caso muito semelhante. Já verificámos que Jesus teve, provavelmente, mais adeptos do que apenas os doze apóstolos e que Lucas tornou isto explícito, acrescentando uma missão de setenta (ou setenta e dois)!" seguidores de Jesus (p. 125). Ele não dispunha de material novo, tendo-se limitado a utilizar a tradição da missão de que Jesus incumbiu os Doze, com pequenas alterações. «Os demónios submetem-se a nós, em teu nome» (Lc 10, 17) é retirado de Mc 6, 7 / / Lc 9, l.

Esta análise, que leva à conclusão de que, por vezes, os primeiros cristãos criaram passagens sobre exorcismos, torna, ao mesmo

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tempo, pouco provável que eles tenham inventado o tema completamente. O leitor lembrar-se-á que, quando encontramos um motivo nos Evangelhos que corresponde exatamente a uma passagem na Bíblia Hebraica, temos sempre de perguntar se a passagem mais antiga levou ou não à criação da mais recente. Isaías tinha profetizado que os leprosos iriam ser curados, os surdos iriam ouvir e os mudos, falar; suspeitamos que Mateus tenha criado uma história sobre um homem mudo, a fim de demonstrar que Jesus cumpriu esta profecia. Ora o exorcismo não constitui um tema da Bíblia Hebraica. Por isso, tem de possuir uma fonte diferente. O exorcismo era muito conhecido no século I. Quererá isto dizer que, então, todos os líderes religiosos do século I realizavam exorcismos? Aparentemente não. João Baptista parece não ter sido exorcista. Teudas e o Egípcio prometeram milagres depois de Jesus, mas Josefo não diz que praticavam exorcismos. Honi e Hanina não eram conhecidos como exorcistas. O exorcismo constituía, portanto, uma especialização: alguns líderes religiosos eram exorcistas, mas não todos. Penso que é altamente provável que Jesus fosse encarado como um exorcista.

As pessoas gostam de categorias claras e, por isso, foi dedicada uma grande atenção à questão de saber que tipo de pessoa era Jesus: em que categoria deveria ser classificado? Morton Smith, por exemplo, pensava que Jesus deve ser considerado mais como um mágico do que como um profeta.!" Eu continuo a considerar a de «profeta» como a melhor categoria singular. Contudo, Jesus também era exorcista. O exorcista podia imitar o comportamento da pessoa que pretendia

curar. Isto podia incluir estrebuchar, rolar pelo chão, etc. As únicas ações que os. Evangelhos sinópticos atribuem diretamente a Jesus são falar, tocar e cuspir; no entanto, as passagens que mencionam o ato de cuspir (Mc 7, 31-37; 8, 22-26, acima, p. 145) não se referem a exorcismos. É, no entanto, possível que a tradição tenha eliminado o material que atribui um comportamento estranho a Jesus. Referimos que, segundo Me 3, 21, a família de Jesus tinha tentado dominá-lo porque ele estava «fora de si». É possível que isto se trate de um resquício de um complexo de material que tinha sido, em tempos, mais vasto e que apresentava Jesus como alguém que revelava um comportamento

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estranho. Se ele, por vezes, se tivesse comportado de uma maneira não convencional, as pessoas não teriam pensado necessariamente que ele era mágico, mas tê-lo-iam encarado de uma forma um pouco mais estranha.

Acabámos de entrar no reino da especulação, por isso, é o momento de esclarecer o ponto de vista desta investigação. Para vermos Jesus como ele era realmente, temos de reconhecer que o ensinamento ético do sermão da montanha não conta a história toda. Ele não foi apenas um mestre ou um moralista. Segundo Marcos, a sua fama provinha das curas e, sobretudo, dos exorcismos. Isto, por seu turno, levanta a questão da relação entre Jesus, a magia e o compor­ tamento estranho. As pessoas que recitavam feitiços e misturavam substâncias estranhas não faziam parte da elite religiosa no tempo de Jesus. Muitos deles recebiam dinheiro pelo seu serviço, praticavam magia negra e eram, em geral, pessoas de reputação duvidosa. Mateus eliminou as referências à utilização de saliva por Jesus que se encontram em Marcos, sendo possível que outros elementos mágicos ou semimágicos também tenham desaparecido. Penso que podemos ter alguma certeza de que, inicialmente, a fama de Jesus resultava de curas, sobretudo, de exorcismos. Isto constitui uma correcção importante à ideia habitual, segundo a qual Jesus era essencialmente um mestre. Ele também era - e para algumas pessoas, acima de tudo - alguém que fazia milagres. Não podemos, contudo, afirmar que as suas curas o colocassem ao nível dos mágicos. É uma possibilidade especulativa dizer que, por vezes, ele utilizou uma ou várias das técnicas dos mágicos, incluindo cuspir e imitar determinado comportamento físico. Parece ter curado principalmente através da palavra e do contacto físico.


Milagres naturais

Os Evangelhos atribuem a Jesus outro tipo de milagres, além das curas. Estes são designados geralmente como «milagres naturais», embora o termo nem sempre seja completamente apropriado.

Um dos mais impressionantes e mais complicados consiste numa história elaborada de um exorcismo [indicada anteriormente na alínea (flJ. Jesus e os seus seguidores atravessavam o mar da Galileia, a caminho de Gerasa (Marcos e Lucas) ou de Gadara (Mateus). Encontraram

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um possesso que era incontrolável.!" Os habitantes da cidade tinham tentado prendê-lo com correntes, mas ele quebrava-as. «Andava sempre, dia e noite, entre os túmulos e pelos montes, a gritar e a ferir-se com pedras.» Viu Jesus, correu ao seu encontro e prostrou-se diante dele. Ele - ou antes o demónio nele - gritou: «Que tens a ver comigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te, por Deus, que não me atormentes» Jesus perguntou-lhe o seu nome. Ele respondeu: «O meu nome é Legião, porque somos muitos.» Estava uma vara de porcos ali perto e os demónios pediram a Jesus para os mandar para dentro dos porcos. Jesus consentiu «e a vara, cerca de uns dois mil, precipitou-se no mar, afogando-se». Os guardas dos porcos contaram o sucedido e muitas pessoas foram ver o que se passara. Aquele que antes estivera possesso estava sentado, «vestido e em perfeito juízo». As pessoas pediram a Jesus que se fosse embora. Ele entrou num barco e o homem curado suplicou-lhe que o deixasse ir com ele. Jesus recusou, dizendo que ele deveria ficar e contar a história de como Deus tinha tido misericórdia dele. O homem curado assim fez, apregoando na Decápolis o que Jesus fizera por ele (Mc 5, 1-20). Em Mateus, contudo, a história termina com o pedido da população para que Jesus se fosse embora (Mt 8, 28-34).

A história é estranha em todos os aspetos. É de longe o mais dramático de todos os exorcismos atribuídos a Jesus, ligando, além disso, o exorcismo à «natureza» - aos porcos. Um dos pormenores referidos na história torna-a inverosímil. Gerasa fica a cerca de 45 quilómetros de distância do mar da Galileia, não existindo outras águas de grande superfície nas proximidades. Mateus desloca a cena para Gadara, que se encontra a 10 quilómetros de distância do mar, talvez pensando que isto diminuía o problema - apesar de um salto de 10 quilómetros ser tão impossível como um de 45 quilómetros. Tenho dificuldades em explicar a história no sentido de encontrar um núcleo histórico. Os evangelhos apócrifos dos séculos posteriores descrevem, por vezes, Jesus a realizar milagres igualmente fantásticos e grotescos, alguns dos quais, ainda mais cruéis do que a destruição dos porcos, apresentando, por exemplo, Jesus a matar os seus companheiros de jogo de infância e, em seguida, a ressuscitá-los ou a transformá-los em cabras. Isto significa, por vezes, que o desejo dos autores cristãos em

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apresentar Jesus como alguém que dispunha de um poder sobrenatural era tão forte que o descreveram como não sendo melhor do que um deus mal-humorado da mitologia grega.15 A maior parte do material dos evangelhos canónicos não possui esta tendência. No entanto, aqui, o poder espiritual de Jesus sobre os demónios está tão enfatizado que resultou numa história sem interesse. Na realidade, o que se pretendia era colocar a ênfase na cura de um homem possesso.



O milagre natural mais famoso está relacionado com uma tempestade no mar (Mt 14,22-33 / / Me 6, 45-52). Jesus tinha estado a ensinar. Despediu a multidão a quem tinha ensinado e foi orar para o monte, enquanto os discípulos atravessavam o mar num barco. Levantou-se uma tempestade e o barco ficou numa situação difícil. De repente, os discípulos viram Jesus a caminhar ao encontro deles. Assustaram-se, pensando: «é um fantasma». Jesus tranquilizou-os, mas Simão Pedro pediu-lhe uma prova de que era de facto ele, dizendo-lhe que o mandasse caminhar também a ele, Pedro, sobre as águas. Pedro saiu do barco e começou a caminhar ao encontro de Jesus. Levantou-se vento e Pedro teve medo e começou a afundar-se. Jesus estendeu-lhe a mão, dizendo-lhe: «Homem de pouca fé, por que duvidaste?» Entraram novamente na barca e o vento amainou. Os discípulos convenceram-se de que Jesus era o Filho de Deus. Isto, pelo menos, na versão de Mateus. Marcos 6, 45-52 não inclui a parte sobre Pedro,

nem a conclusão categórica de que os discípulos acreditaram que Jesus era o Filho de Deus. Segundo Marcos, eles não compreenderam.

Existe uma outra história sobre uma tempestade no mar (Me 4, 35-41 e par.) Os discípulos e Jesus estavam no barco quando se levantou uma tempestade e o barco estava prestes a ir ao fundo. Jesus estava a dormir. Os discípulos acordaram-no, dizendo-lhe: «Mestre, não queres saber que pereçamos?» Jesus levantou-se, repreendeu o vento e disse ao mar: «Acalma-te, cala-te!», e o mar acalmou-se.

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Tal como existem dois milagres relacionados com o mar, existem também dois milagres relacionados com a comida. De acordo com o primeiro (Me 6,30-44/ / Mt 14, 13-21), Jesus e os seus discípulos tentavam escapar à multidão que não lhes dava tempo, sequer, para comerem. Entraram no barco deles e foram para um «local isolado», que não permaneceu isolado durante muito tempo, porque as pessoas «acorreram a pé àquele lugar, vindas de todas as cidades e chegaram primeiro que eles». Jesus começou a ensinar a multidão e, entretanto, fez-se tarde. Os discípulos insistiram que ele mandasse as pessoas embora para que pudessem encontrar comida. Ele respondeu: «Dai-lhes vós mesmos de comer.» Isto não era razoável, uma vez que eles não tinham dinheiro suficiente para comprar comida para a multidão. Jesus perguntou, então, quantos pães tinham consigo. Os discípulos encontraram cinco pães e dois peixes. A multidão sentou-se, Jesus pronunciou uma bênção e partiu os pães. Os peixes também foram divididos. Apesar da pequena quantidade inicial de comida, «todos comeram e ficaram saciados», e ainda sobrou comida. De acordo como Marcos, estavam presentes 5000 homens; Mateus especifica: «sem contar mulheres e crianças». No segundo caso (Mt 15,32-39// Me 8, 1-10), sete pães (segundo Marcos; Mateus acrescenta «e alguns peixinhos») foram suficientes para saciar 4000 pessoas.

O aspeto mais curioso dos milagres naturais é a falta de impacto que estes eventos tiveram segundo os Evangelhos. A única coisa que os autores dos Evangelhos dizem acerca da reação da multidão à primeira refeição é que: «comeram até ficar saciados» (Mc 6, 42 e par). O comentário depois da segunda refeição é quase idêntico (Mc 8, 8 / / Mt 15, 37). Nem sequer os discípulos fazem comentários. A história de Jesus a andar sobre as águas encontra-se, tanto em Mateus, como em Marcos, entre estes dois milagres da refeição. Marcos escreve que os discípulos «ainda não tinham entendido o que se dera com os pães, mas tinham o coração endurecido» (Me 6, 51 e segs.). Mateus, como vimos, tem um final mais reverencial: «Os que se encontravam na barca prostraram-se diante de Jesus, dizendo: "Tu és, realmente, o Filho de Deus!"» (Mt 14, 33.) O acalmar do mar, o primeiro milagre natural em Mateus e Marcos, provoca apenas espanto: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?» (Mc 4, 41, Mt 8, 27.)

Se nos lembrarmos de que Marcos atribuiu um grande impacto a um milagre de uma importância relativamente menor, a um único

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exorcismo (Mc 1,28: «A sua fama logo se espalhou por toda a parte»), é difícil explicar por que motivos os autores dos Evangelhos tiveram tão pouco a dizer sobre o impacto público de um milagre tão grandioso como alimentar uma multidão. Não podemos resolver inteiramente o enigma, mas parte da resposta está no facto de os primeiros cristãos terem de levar em conta um facto histórico grave: eram poucas as pessoas que acreditavam em Jesus como o último e mais importante enviado de Deus. A 1 a Carta aos Coríntios 15, 6, dá a impressão de que Jesus teve algumas centenas de seguidores e de simpatizantes (p. 165). Contudo, os autores dos Evangelhos acreditavam que ele era o Filho de Deus e que tinha realizado sinais dramáticos que demonstravam a sua relação íntima com a divindade. Mas se ele fez realmente milagres e se os milagres constituíam uma prova, então, devia haver mais pessoas a acreditar nele. Os autores dos Evangelhos não tinham dúvidas de que Jesus tinha feito milagres, mas tinham de admitir que eram poucas as pessoas que acreditavam nele. Isto deixou-os com um dilema. Marcos, em particular, tentou resolver o problema afirmando que Jesus tinha ordenado silêncio: talvez poucas pessoas acreditassem porque Jesus tenha restringido a divulgação das notícias. Todavia, Marcos também diz que as pessoas que receberam estas ordens do silêncio não as observaram, mas proclamavam Jesus publicamente e que este era acossado pela multidão. No entanto, quando estas mesmas multidões assistiram a um milagre (a multiplicação dos pães e dos peixes), não reagiram, praticamente. O leitor moderno está inclinado a pensar que esta situação curiosa resulta, em parte, da tensão entre o acontecimento real e o relato que os evangelistas fizeram dele. Talvez Jesus não tenha feito realmente muitos milagres espetaculares, pelo que, naturalmente, não havia muitas pessoas a quem os milagres convencessem a segui-lo. Tal significaria que a tradição cristã aumentou e enalteceu as histórias de milagres a fim de as tornar muito impressionantes. Por conseguinte, poderia pensar-se que a reação foi reduzida do ponto de vista histórico porque houve poucos milagres grandiosos, ao passo que, nos Evangelhos, há grandes milagres, mas uma reação inexplicavelmente pequena. É possível que os milagres de Jesus fossem relativamente insignificantes, não causando senão uma agitação temporária do público. Isto constitui uma solução especulativa, apesar de razoável, na minha opinião. Consideraremos, no entanto, a possibilidade de uma reação pública aos milagres de Jesus mais significativa.

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A importância dos milagres de Jesus

O retorno às explicações modernas dos milagres, antes de tirarmos conclusões finais sobre a perspetiva dos evangelistas e a provável opinião de Jesus, contribuirá para esclarecer a questão. Quando as pessoas de hoje olham para os milagres na Antiguidade (não só para aqueles que se encontram na Bíblia), querem explicá-los racionalmente, como é óbvio, visto que a ideia de Cícero, segundo a qual nada não natural pode acontecer, sendo aquilo que acontece natural, tornou-se uma opinião dominante, apesar de haver muitas pessoas que não partilham esta ideia. As explicações racionais mais relevantes são as seguintes:

1) Quase todas as curas podem ser explicadas como curas psicossomáticas ou como vitórias da mente sobre a matéria. Os casos de doença de natureza «histérica» ou psicossomática são bem conhecidos e estão bem documentados. Esta explicação, aplicada aos milagres nos Evangelhos, engloba os exorcismos, assim como as curas do cego, do surdo-mudo, do paralítico e, possivelmente, também da mulher com uma hemorragia.

Alguns tentaram estender esta explicação à história do possesso de Gerasa e dos porcos: Jesus curou realmente um «possesso» através da sugestão mental, isto é, fê-lo regressar ao seu perfeito juízo. O homem entrou em convulsões, o que assustou os porcos, fazendo com que eles

entrassem em pânico e caíssem da falésia. Considero esta explicação pouco convincente e duvido que aqueles que a dão tenham alguma vez tentado assustar uma vara de porcos através de um ataque. A história não pode ser explicada racionalmente.

2) É possível pensar que alguns milagres não passaram de coincidências. O acalmar do mar, por exemplo, podia ter-se tratado de uma situação em que a tempestade acalmasse por si mesma, mais ou menos quando Jesus disse: «Acalma-te, cala-te!»

3) Sugeriu-se que alguns milagres foram apenas aparentes. Quando Jesus foi visto a caminhar sobre as águas, talvez se encontrasse em terra, mas numa superfície obscurecida por um nevoeiro cerrado que parecia o mar; ou talvez ele soubesse onde havia rochas submersas.

4) A psicologia de grupo foi utilizada frequentemente para explicar os milagres da multiplicação dos pães. De facto, todos tinham trazido comida, mas tinham medo de a tirar para fora, para não ter de partilhá-la com os outros. No entanto, quando Jesus e os discípulos começaram

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a dividir a sua comida, todos na multidão se sentiram encorajados a fazer o mesmo e a comida foi mais do que suficiente.

5) Algumas histórias de milagres podem ser lendas historicizadas. É realmente verdade, por exemplo, que Pedro vacilou na fé. Isso sucedeu quando Jesus foi preso. Ele seguiu Jesus de longe e negou que era um dos seus seguidores quando lho perguntaram (Mc 14,66-72). Mais tarde, também vacilou na questão da obrigação ou não de os gentios convertidos ao movimento cristão observarem as leis alimentares judaicas e Paulo afirmou que ele agiu de maneira hipócrita (Gl 2, 11-24). Segundo esta explicação, a incapacidade de Pedro caminhar sobre as águas é apenas uma imagem de um carácter fraco. A sua hesitação é descrita através da narração de uma breve lenda.

A necessidade de uma explicação racional é algo moderno. As numerosas tentativas de explicação possuem uma intenção conservadora: se for possível explicar racionalmente os milagres de Jesus, será mais fácil para as pessoas modernas continuar a acreditar que a Bíblia é verídica, no sentido moderno do termo: exata do ponto de vista histórico e segura do ponto de vista científico. Penso que algumas explicações racionalistas são tão rebuscadas que prejudicam o esforço global, mas o princípio é parcialmente correto. As pessoas da Antiguidade atribuíam a poderes sobrenaturais (bons ou maus espíritos) aquilo que as pessoas modernas explicam de uma forma diferente. Consideramos plausível explicar um exorcismo como uma cura psicos­ somática. No entanto, é um erro pensar que explicações racionais dos milagres possam demonstrar que os Evangelhos são completamente factuais. Algumas das histórias dos milagres não podem ser explicadas com base no conhecimento científico atual.

A tarefa mais importante para o objetivo deste livro consiste, no entanto, em esclarecer o que os contemporâneos de Jesus e as pessoas que viveram numa época próxima dele pensavam sobre os milagres. Também queremos saber mais especificamente o que pensavam os seguidores de Jesus sobre os seus milagres e o mais possível sobre o que ele próprio pensava. O material a que podemos recorrer - histórias de milagres nos Evangelhos e noutra literatura da Antiguidade­ forneceu-nos uma informação excelente sobre a opinião geral acerca dos milagres nos dias de Jesus (pp. 177-185). O estudo dos Evangelhos permitiu-nos descobrir também o que diversos cristãos - os evangelistas

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- pensavam sobre os milagres uma ou duas gerações após a época de Jesus (pp. 186-192). No entanto, temos de procurar por detrás dos Evangelhos para descobrir a importância que Jesus e os seus seguidores atribuíram aos seus milagres, pelo que as nossas conclusões têm de permanecer um tanto ao nível de uma tentativa. Debrucemo-nos agora sobre esta tentativa.


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