História Universal da Destruição dos Livros Das Tábuas Sumérias à Guerra do Iraque Fernando Báez



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CAPÍTULO 7

O ódio étnico
O livrocídio sérvio
I
"Aqui não sobrou nada", comentou Vkekoslav, um bibliotecário. "Vi uma coluna de fumaça, e os papéis voando por toda parte, e eu queria chorar, gritar, mas permaneci ajoelhado, com as mãos na cabeça. Toda minha vida ficarei com este peso da recordação de como queimou a Biblioteca Nacional de Sarajevo." Um escritor bósnio, Ivan Lovrenovic, contou que, de fato, o Vijecnica - o imponente, elevado e colorido prédio destinado a abrigar a Biblioteca Nacional da Bósnia e Herzegovina, em Sarajevo, aberto em 1896 na margem do rio Miljacka - foi bombardeado a partir das 10:30h da noite de 25 de agosto de 1992 com fogo de artilharia. A biblioteca tinha 1,5 milhão de volumes, 155 mil obras raras, 478 manuscritos, milhões de periódicos de todo o mundo, e foi devastada por ordem do general sérvio Ratko Mladic com 25 obuses incendiários, lançados durante três dias, apesar de suas instalações estarem marcadas com bandeiras azuis para indicar a condição de patrimônio cultural. Alguns amantes do livro formaram uma longa corrente humana para transportar os livros a um lugar seguro, e salvaram alguns. Os bombeiros tentaram apagar as chamas, sem resultado, porque a intensidade dos ataques não lhes permitiu. Finalmente as colunas mouriscas arderam e as janelas estalaram para deixar sair as chamas. O teto desmoronou e pelo chão ficaram espalhados os restos de manuscritos, obras de arte e escombros das paredes e escadas. Um bombeiro improvisado, Kenan Slinic, quando abordado pelos correspondentes de guerra para explicar por que arriscou a vida pela biblioteca, disse: "Nasci nesta terra e eles queimaram uma parte de mim."

O poeta bósnio Goran Simic escreveu o texto Lamento por Vijecnica (1993):


A Biblioteca Nacional queimou nos últimos três dias de agosto e a cidade se afogou com a neve negra.

Liberados os montes, os caracteres vagaram pelas ruas, misturando-se aos transeuntes e às almas dos soldados mortos.

Vi Werther sentado na cerca arruinada do cemitério; vi Quasímodo se equilibrando com uma das mãos num minarete.

Raskolnikov e Mersault cochicharam juntos durante dias em meu sótão; Gavroche se exibiu com uma camuflagem cansada.

Yossarian já se vendia ao inimigo; por uns poucos dinares o jovem Sawyer mergulhava longe da ponte do Príncipe.

Cada dia mais fantasmas e menos pessoas vivas; e a terrível suspeita se confirmou quando os esqueletos caíram sobre mim.

Encerrei-me na casa. Folheei os guias de turismo. E não saí até que o rádio me dissesse como eles puderam apanhar dez toneladas de carvão no subterrâneo mais profundo da queimada Biblioteca Nacional.
Quando começou essa barbárie? A antiga Iugoslávia fora uma nação unida por Josip Tito com mão de ferro. Com sua morte, a incapacidade dos líderes que vieram depois rachou essa unidade e desencadeou a aparição de riscos potenciais: diferenças étnicas entre a minoria sérvia e a maioria bósnia, mau uso dos meios de comunicação, divisões territoriais errôneas e o militarismo imposto a toda a sociedade. O país logo se fragmentou numa série de Estados independentes. A Croácia, por exemplo, proclamou-se república em 25 de junho de 1991, depois de um referendo em que 85% das pessoas se pronunciaram a favor. A repressão do exército iugoslavo foi brutal, embora não impedisse que em 15 de janeiro de 1992 a soberania da Croácia fosse reconhecida pelo mundo. A guerra, no entanto, já se iniciara, sem necessidade de decretá-la. E uma de suas piores conseqüências foi a prática, por parte dos sérvios (grupo poderoso), de uma política de memoricídio e genocídio contra os rivais. A estratégia de damnatio memoriae (apagar a memória) foi levada a cabo de uma maneira que até agora nos faz estremecer. Queimaram milhões de livros e aniquilaram todo um povo.

Na região da Eslovênia, a biblioteca municipal de Vinkovci (criada em 1875) foi a primeira a ser convertida em ruínas, em 17 de setembro de 1991, por dois ataques sérvios de artilharia. Dessa forma, 85 mil volumes (jóias da literatura e do pensamento, manuscritos de notáveis autores locais) foram destruídos. As pessoas recolhiam, segundo algumas testemunhas, livros incompletos do chão e tratavam de colar os pedaços. A biblioteca pública de Pakrac (fundada em 1919) foi atacada pela artilharia e seus 22 mil textos evacuados, não sem graves perdas.

O avanço das tropas sérvias não se conteve diante dos prédios da Universidade de Osijek: um ataque à Biblioteca Central de Agricultura, construída apenas em 1990, destruiu 12 mil livros de um total de trinta mil. Na própria cidade de Osijek, foram destruídos os arquivos históricos e os livros raros.

O museu municipal de Vukovar, situado numa cidade do século XVIII, contendo 32.513 objetos históricos, 515 volumes raros (datados dos séculos XVI a XIX) e 13 mil livros, foi bombardeado de 25 a 26 de agosto de 1991. Em 20 de setembro um avião bombardeou várias vezes o prédio e deixou a biblioteca em chamas; no mesmo mês, de 22 a 28, a artilharia pesada destruiu o quanto pôde e os livros raros salvos (muito poucos) ficaram à mercê dos saqueadores que os venderam no mercado negro. Ainda se encontram nos sebos de todo o mundo textos procedentes desse lugar.

A biblioteca pública de Vukovar (fundada em 1947), com 76 mil volumes, milhares de cassetes e fitas de vídeo, foi destruída no outono de 1991, e os bibliotecários só puderam resgatar as jóias bibliográficas a duras penas. A biblioteca do Museu Histórico e do museu comemorativo Lavoslav Ruzicka foi arrasada sem piedade. Também em Vukovar, o mosteiro dos franciscanos, onde estavam guardados quatro incunábulos e 17 mil livros editados do século XV ao XX, foi devastado. Até hoje ninguém sabe o que se salvou. Em 18 de novembro de 1991, as forças sérvias tomaram Vukovar e expulsaram seus cinqüenta mil habitantes (sobretudo mulheres e crianças); todos os livros considerados indesejáveis foram queimados.
II
Dizia-se antigamente que o coração da Iugoslávia estava na Dalmácia, e talvez por isso ela foi atacada com tanto ódio. Em Zadar, a Biblioteca Científica - precioso monumento de 1850 admirado pelos turistas - foi destruída por artilharia em 5 de outubro de 1991. Os soldados sérvios saquearam à vontade seiscentos mil livros, 33 incunábulos, 1.080 manuscritos, 370 pergaminhos, 1.350 livros raros, 1.500 partituras musicais, 5.566 jornais, 929 revistas, 1.200 mapas, 2.500 fotos e sessenta mil documentos em geral. Por infelicidade, em outubro de 1991, as tropas foram obrigadas a recuar e em sua marcha não souberam o que fazer com os duzentos mil livros roubados. A decisão dos oficiais foi considerada magistral por todo o exército: uma vez salvos os livros com caracteres latinos, os demais foram lançados às chamas. Alguns disseram que dias mais tarde a fumaça ainda era vista a dezenas de quilômetros.

A biblioteca municipal de Zadar (relíquia de 1857), com cerca de seiscentos mil livros, foi bombardeada em 9 de outubro de 1991, mas dessa vez só a coleção de partituras e livros musicais da Escola de Música sofreu graves danos.

Em Dubrovnik, a biblioteca do Centro Interuniversitário foi atingida em 6 de dezembro de 1991 por bombas incendiárias e vinte mil livros desapareceram para sempre. A Biblioteca Científica, fundada em 1950, conservava duzentos mil volumes, 922 manuscritos, 77 incunábulos, quase 10 mil livros raros e 7.783 periódicos. Ali podiam ser lidos os 13 mil livros da coleção do Collegium Ragusinum. Tudo isso foi destruído por mais de sessenta obuses em 19 de novembro de 1991 e por cinco mísseis em 8 de junho de 1992. A cidade de Dubrovnik - onde se criou a primeira farmácia européia, patrimônio da humanidade - acabou destruída ao longo de 1991. Em 6 de dezembro desse triste ano, oitocentos mísseis arrasaram tudo.

A biblioteca municipal de Drnis, com 15 mil volumes, foi saqueada sem compaixão. Como conseqüência desse vandalismo na Croácia, em 1991 foram destruídas 195 bibliotecas, sendo 11 bibliotecas de universidades, três de centros de pesquisa, oito para uso de especialistas, 12 de caráter histórico, 23 de uso público e 138 destinadas a crianças.



III
Na Bósnia-Herzegovina foram cometidos os atos de violência mais absurdos da história da Europa. Já descrevemos como foi destruída a Biblioteca Nacional de Sarajevo, mas ela não foi o único alvo. O Instituto Oriental de Sarajevo, com 5.263 manuscritos árabes, turcos, persas, gregos e bósnios, sete mil documentos dos séculos XVI ao XIX e dez mil textos especializados, foi alvejado por bombas incendiárias que partiam das colinas vizinhas.

A biblioteca municipal de Sarajevo, com trezentos mil livros, ficou reduzida à metade no fim da invasão. O Museu Nacional da Bósnia, com quatrocentos mil livros, foi atacado e parte de seu patrimônio sofreu relevantes estragos. A biblioteca dos franciscanos em Nedjarici foi saqueada. Em Mostar, cinqüenta mil livros foram destruídos no ataque incendiário à biblioteca do Arquivo em maio de 1992. A biblioteca da Universidade de Mostar, num momento de desespero dos agressores, foi destruída com obuses, granadas e armas incendiárias. A biblioteca municipal de Mostar também foi incendiada, mas a determinação dos bibliotecários salvou mais da metade dos livros.

O já citado Lovrenic contou que em maio de 1992 teve de fugir deixando para trás sua biblioteca, composta de centenas de clássicos da literatura, manuscritos com diários, ensaios e narrativas, uma vulgata de 1883 da Bíblia, um dicionário latim-croata e um exemplar do Catecismo de frei Matija Divkovic de 1611. Essa biblioteca foi queimada pelos sérvios para aquecer os soldados.
IV
Em 1993 e 1994, enquanto a ONU discutia a possibilidade de julgamentos rigorosos a criminosos da guerra na Bósnia, as milícias do HVO (nacionalistas croatas da Bósnia) destruíam sem piedade vários monumentos muçulmanos. Entre outros prédios, arrasaram bibliotecas públicas e particulares.

A biblioteca da comunidade muçulmana de Stolac foi queimada em meados de julho de 1993, com o que desapareceram centenas de livros e cerca de quarenta manuscritos dos séculos XVII ao XIX. A biblioteca da Mesquita do Imperador, com centenas de manuscritos antigos, também foi exterminada. No fim do trabalho, as ruínas foram dinamitadas para evitar sua posterior reconstrução. A biblioteca da Mesquita Pogradska foi incendiada no calor dos combates, às onze horas de 28 de julho de 1993. Segundo diversos relatos, as enormes bibliotecas particulares de dezenas de famílias foram queimadas, entre as quais se destacam as de famílias como os Behmen, Mahmutcehajic, Mehmedbasic e Rizvanbegovic.

Acredita-se que de 1992 até o fim da guerra foram atingidas 188 bibliotecas, 43 completamente destruídas, e foram devastadas 1.200 mesquitas, 150 igrejas, dez igrejas ortodoxas, quatro sinagogas, mil monumentos culturais, e esse levantamento ainda está incompleto.

Os relatórios do Conselho de Segurança Européia se referem a "uma catástrofe cultural e européia de amplitude aterradora" e num relatório penoso, melancólico e severo. A Comissão de Especialistas da ONU concluiu que houve "destruição intencional de bens culturais que não pode ser justificada por necessidade militar". Nem os nazistas destruíram livros com tanta eficiência.


V
Em 2000, uma Missão da Administração Provisória da ONU em Kosovo (UNMIK), juntamente com especialistas designados pela Unesco, pelo Conselho da Europa (COE) e pela Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA), visitou Kosovo, na Albânia, entre 25 de fevereiro e 7 de março. Procurava avaliar os estragos causados pelos expurgos dos sérvios e considerou que a situação era pior do que se pensava.

O informe elaborado tinha as seguintes estatísticas: três bibliotecas centrais foram destruídas, com 261 mil livros queimados, e 62 bibliotecas provinciais destruídas, com 638 mil livros queimados.

Os sérvios arrasaram a cultura de Kosovo por motivos étnicos. De 1991 a 1995, mais de cem mil livros foram destruídos na Biblioteca Nacional. Outros cem mil, juntamente com oito mil revistas e incontáveis jornais, foram tirados da biblioteca em caminhões e levados a uma fogueira pública.

Os líderes sérvios negaram essa informação com notas de imprensa em que acusam os albaneses separatistas, definidos como terroristas e criminosos, de destruir dois milhões de livros sérvios em Kosovo. A isso acrescentam que as bibliotecas de Pristina, Prizren, Djakovica, Istok, Glogovac, Srbica, Podujevo e de muitas outras cidades sob poder dos grupos albaneses foram expurgadas. Alegou-se que 11 mil livros sérvios da biblioteca Vuk Karadzic foram convertidos em pasta de papel em Vladicin Han.



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