Inveja mal secreto zuenir ventura



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Estava fazendo pipi, quando me veio a lembrança de que fora aqui no banheiro que ela viera pegar a amostra de pó que lhe pedi no sábado anterior.
Em pé, enquanto terminava minha operação, continuava pensando na história. Olhei então casualmente em volta e vi um armário na parede. Fui assaltado por uma curiosidade irresistível. O que será que havia ali dentro? Com certeza nada de mais. Nenhum móvel é mais previsível do que um armário no banheiro. Mas não custava dar uma olhada.
Apertei a válvula da descarga e abri o armário. Tinha tudo de que precisa uma moça solteira: um variado sortimento de objetos para maquiagem e toucador. Tinha batom, pó-de-arroz, base; esmalte de unha, tesourinha, removedor, essas coisas.
Numa prateleira em cima, havia uma pequena arca de madeira em forma de casinha, com duas tampas inclinadas, como se fossem telhados
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que se abriam. Era dividida em dois compartimentos: em um, vi um frasco de plástico de Água de Melissa, da Ninon, outra de Banho de São Cipriano, e vários vidrinhos (1) de «fluidos aromáticos» coloridos, presumivelmente para misturar no banho.
Um, azul, se chamava «Iemanjá»; outro, vermelho, «Exu»; e um «Xangô» de que não me lembro a cor. Mas os que me chamaram a atenção mesmo foram: «Gamação», «Atração», «Amor sem fim», «Encanto», «Hei de vencer», «Ele de volta», «Abre caminho».
Supus que Kátia não precisava daquele arsenal de mandingas para prender um homem, mas, enfim, ela é que sabia.
Ao abrir o outro compartimento, tive um rápido estremecimento. Num embrulho e meio desarrumadas, havia algumas trouxinhas, pequenos envelopes de papel vegetal. Eram iguais àquele que Kátia me dera. Peguei todos, eram quatro, como vi depois, botei no bolso e apertei novamente a descarga para justificar a demora: minha amiga talvez já tivesse acordado.
Eu podia estar enganado, mas algo me dizia que eu conseguira ter acesso à tal «caixa de feitiço».
Saí sentindo a ansiedade que deve sentir um ladrão na sua primeira missão. Kátia continuava apagada. Ainda tentei despertá-la para levá-la para o quarto, mas foi inútil. Chamei o elevador e desci. Lá embaixo o recepcionista ainda dormia. Não devia estar esperando que eu descesse tão cedo.
Entrei no carro e parti depressa, com a sensação de que estava carregando no bolso a chave daquele mistério. A excitação só passou quando me lembrei que isso acontecera também da outra vez, até que o laboratório revelasse o vexame.
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*1. Vidro: frasco.


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Mesmo assim estava disposto a voltar ao Noel Nutels, se fosse preciso - não sabia com que cara ia procurar Cláudia, mas iria. Em casa, coloquei os papelotes sobre a bancada do banheiro e examinei um a um. Percebi então que um deles era numerado. Tinha um algarismo já bem desbotado, quase imperceptível: «3». Será que o que eu levara para exame tinha número também? Não tinha prestado atenção. Agora mesmo, só conseguira enxergar aquele «3» quase apagado por causa da luz forte do meu banheiro.
O Dr. Ricardo Greca fora passar o fim de ano na França e disse que, se eu quisesse, poderia fazer minha revisão de bexiga - uma nova cistoscopia - enquanto ele estivesse viajando. Era só ligar para o Dr. Paulo Rodrigues, o que fiz no dia 5 de janeiro de 98.
«O seu último exame não estava nada bom», ele falou com naturalidade mas eu me assustei. Perguntei se era mais uma recidiva.
«Pode ser, mas pode ser também um falso positivo, efeito do BCG. Nada de grave.» Me pediu paciência, informando que os dois primeiros anos eram os piores. Depois, quem sabe, eu podia até me livrar desse câncer.
Por cautela, ele adotaria o procedimento de uma RTU: faria a cistoscopia, olharia lá dentro e no caso de haver «alguma coisa», ele a extirparia, sem precisar de nova anestesia. Rara combinação de afeto e competência técnica, o Dr. Paulo, com sua ternura, sempre conseguia atenuar uma má notícia.
Íamos marcar a cirurgia para o dia 12, mas isso atrapalharia o livro. Eu tinha que entregá-lo impreterivelmente no dia 15. Prometera para julho, depois para outubro, em seguida para dezembro. Finalmente,
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combinei com a editora que o dia 15 de janeiro de 1998 seria o último prazo, eu não atrasaria mais.
Expliquei ao Dr. Paulo e ele propôs então o dia 16. «Assim, você acaba o seu livro sossegado e a gente te opera no dia seguinte, tá bom?»
Achei que estava. Ia correr tudo bem, se Deus quisesse, mas não custava nada acabar o livro antes.
Já era tarde quando Zé Noronha ligou para me comunicar que conversara com o Dr. Paulo sobre meu último exame de urina. Mary lhe transmitira nossa preocupação.
«Fica tranquilo porque o Paulo está. Se não estivesse, não negociaria prazo com você para a cirurgia; operaria logo.»
Em seguida, com a mesma franqueza, admitiu que tinha havido «alteração de células», mas as hipóteses eram aquelas: «recidiva ou falso positivo».
«Tá reclamando de quê?», brincou mais uma vez. «Mesmo que o câncer tenha voltado, está mantido o padrão anterior, a mesma intensidade. Ele não se espalhou, está localizado. É o que eu sempre disse: o que você tem é chato, pode voltar sempre, mas não é grave.»
Dito isso, mudou de assunto, passando para a inveja. Quando lhe contei que tinha voltado ao Noel Nutels com mais uma amostra, ele me gozou: «Cuidado, tá virando obsessão.»
A Dra. Cláudia foi um amor. Entendeu minhas dúvidas e inquietações e se colocou de novo à minha disposição. Resolvi me abrir: «Não quero ser um novo avô de Petrópolis, Cláudia, mas continuo suspeitando que tem veneno nessa história.» Ela ouviu com atenção e prometeu examinar o material que lhe entreguei.
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Passados dez dias, ela me ligou de noite informando que, antes de apresentar o laudo, queria me mostrar um relatório com a metodologia e os procedimentos usados.
Diante de tanto escrúpulo em relação a um caso tão insignificante, imaginei o rigor que o Laboratório usaria quando se tratava do que Oscar Berro chamava de «agravos» à saúde pública. «Nós estamos lidando com uma suspeita de envenamento criminoso», ela se justificou, «e isso é grave.»
Já íntimo do Noel Nutels e chamando-o pelo logotipo - «Ene-ene» - voltei lá no dia seguinte às onze horas. Cláudia veio me buscar na entrada, subimos até o primeiro andar e fiquei constrangido quando soube que aqueles quatro livros grossos abertos sobre a mesa eram por minha causa.
Pedi desculpas, mas ela confessou que estava se divertindo com essa espécie de enigma. «Você precisa ver o Oscar; ele está mais excitado ainda.» Eu já tinha notado. Por várias vezes, ele me submetera a verdadeiros interrogatórios.
Uma ocasião, indo para uma blitz, me ligou perguntando se «a vítima usava perfume». Tive que telefonar para Kátia que, surpresa, me respondeu que sim: Hermes.
O relatório que Cláudia tirou da impressora para eu ler continha minuciosa exposição dos procedimentos analíticos que estavam sendo adotados - «inspeção organoléptica da amostra», «espectrofotometria de infravermelho», «pesquisa por cromatografia». Sem falar na «anamnese da vítima do sexo masculino». Citava até os solventes usados: clorofórmio, acetona e hexano.
Eu já não suportava tanta expectativa e suspense. Porque ela não dava logo o laudo? Cláudia parecia se divertir com minha ansiedade,
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mas as pesquisas na verdade eram fundamentais para eliminar hipóteses. Permitiam afirmar, por exemplo, que não tinham sido usados nem organo-clorados e nem organofosforados, substâncias que provocam morte por edema ou insuficiência pulmonar.
Da mesma maneira tinham sido eliminados os acônicos, os cumarínicos (raticidas) e o cloreto de potássio, que, por alterarem demais o gosto dos alimentos a serem ingeridos, tornavam-nos repulsivos.
Acabei de ler o relatório ali mesmo na sua sala, mas Cláudia ainda precisava fazer alguns testes.
Enfim, às quatro horas de uma sexta-feira, fui à presença dos dois para receber o tão aguardado laudo. Sentamo-nos como da primeira vez: o Dr. Oscar Berro na minha frente, atrás de sua mesa de trabalho, e a Dra. Cláudia Teixeira à minha esquerda.
Durante cerca de uma hora, ele expôs didática e pacientemente as etapas que haviam percorrido para chegar ao resultado - de que maneira, partindo de um amplo espectro de probabilidades e por meio de um processo de exclusão e escolha, eles descobriram o que continha aquele pó branco que eu levara para examinar. Ele completou o que o relatório de Cláudia adiantara.
Foi um trabalho estimulante que misturou pesquisa científica e investigação policial, alquimia e crime, rigor e imaginação. Se eu não fosse tão pouco dotado para a química, faria um fascinante relato sobre essa insólita aventura em meio a substâncias que tornam precários e quase imperceptíveis os limites entre o bem e o mal, a vida e a morte.
«A gente saiu jogando com todas as possibilidades», disse Oscar, me mostrando um póster com a relação de uma dezena de produtos
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agroquímicos e defensivos agrícolas. Estes foram os primeiros a serem descartados, porque suas características não correspondiam ao perfil da amostra que eu levara.
Em seguida, vieram as drogas terapêuticas. Eu lhes tinha dito que a dose que supostamente Fernando ingerira no almoço fizera efeito cerca de uma hora e meia, duas horas depois. «Em função desse tempo», explicou Oscar, «elencamos cinco drogas - propanolol, nifedipina, metildopa, furosemida e digoxina - todas com um tempo de atuação de no máximo duas horas.»
Assim, por eliminação, a química e o médico foram chegando ao resultado final que estava ali no laudo que afinal acabavam de me entregar.
Era um formulário com o timbre do Governo do Estado, da Secretaria de Saúde e o logotipo NN do Laboratório. O nome oficial era «Laudo de análise técnica n.º 0365/98». Vinha assinado por Oscar Jorge Berro, diretor geral, e Cláudia R.R.R. Teixeira, diretora de Divisão de Controle Sanitário.
O documento estava dividido em onze especificações - «Tipo de análise», «Controle interno», «Dados da coleta», etc, etc. - mas o meu apressado olhar de jornalista foi direto ao último item, à «Conclusão», que dizia:
«Em relação aos testes e determinações executados, a amostra analisada apresenta-se com características de identidade próprias à Digoxina.»
«E o que é digoxina?», quase gritei, assim que acabei de ler o resultado. Nunca tinha ouvido falar nessa substância. Estava curioso e excitado: o que seria isso?
Cláudia e Oscar me deram uma aula rápida. Disseram que se tratava de um digitálico, ou seja, de um medicamento extraído da planta Digitalis lanata, importante no tratamento de insuficiência cardíaca.
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O problema é que a substância é remédio e veneno ao mesmo tempo - a dose terapêutica pode se transformar rapidamente em dose letal: basta exceder a dosagem adequada. Na quantidade certa, cura; um pouquinho a mais, mata.
«A dose que eu trouxe dá para matar?», me apressei em perguntar a Cláudia e Oscar.
Os dois não tiveram dúvida. A resposta era sim: aqueles poucos gramas eram suficientes para matar um homem.
E a substância podia ser misturada na comida sem alterar-lhe o gosto?
«Pode ser misturada em qualquer alimento», respondeu Oscar, «não tem gosto e nem cheiro. Só não é solúvel na água, mas é no leite, por exemplo.»
«E como é que se adquire esse produto?»
«Nas farmácias», responderam os dois ao mesmo tempo. «Livre e irresponsavelmente», completou Oscar. Resisti a acreditar. «Pode experimentar. Você compra não só a digoxina, como quase todos os venenos desse póster.»
Nessa altura, Cláudia e Oscar já eram doutores no «caso da poção mágica» e não escondiam a satisfação de terem identificado a «minha» misteriosa substância.
«Esse crime seria quase perfeito», disse Oscar de repente.
«Porque quase», me surpreendi.
«Porque alguém descobriu o pó.»
«Quer dizer que se eu não tivesse...»
«Sim, porque nessa faixa de idade, que aliás é a minha - "na verdade, tenho um pouquinho mais", reconheceu rindo -, esse tipo de episódio não é incomum.»
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Pergunto se a autópsia teria revelado o crime, e ele acredita que não. Revelaria a presença da digoxina. «Mas e se ele fizesse uso terapêutico dela?», ele introduz a hipótese. A causa mortis apontaria enfarte do miocárdio, mas não poderia dizer se era envenenamento acidental ou intencional.
«E a exumação agora, você acha que adiantaria alguma coisa?»

Lancei a pergunta porque andava preocupado. Se estava diante de um crime, deveria tomar providências legais.


«Exumação depois de um ano e meio?», Oscar se perguntou, antes de responder. «Seria bem pouco provável que tivesse algum órgão íntegro. Esse produto fez uma ação específica num músculo, no músculo do coração, que não existiria mais.»
«Em osso e cabelo não fica vestígio?»
«Não, mas mesmo que ficasse», argumentou, «alguém poderia sempre aventar a possibilidade de uso terapêutico.»
Por via das dúvidas, ele sugeriu que eu procurasse um médico legista, mas mesmo antes do laudo eu já tinha consultado um, que me dissera mais ou menos a mesma coisa.
Dr. Oscar deixou para o final uma curiosa informação: não era a primeira vez que a digoxina aparecia associada a poções mágicas.
«Conta-se que no período medieval, durante a caça às bruxas», ele começou, «uma delas teve sua vida preservada porque a saúde do rei dependia dela. Ele sofria de complicações cardíacas e respiratórias, e só melhorava quando tomava um chá preparado pela tal bruxa, ou melhor, alquimista. O chá era uma poção mágica feita com uma infusão de folhas da planta Digitalis lanata, quer dizer, digoxina.»
Perguntei como a bruxa conseguira chegar à dose ideal, e rimos muito quando Oscar respondeu que até descobrir que «uma folha não matava, mas que duas sim», ela deve ter eliminado muitos plebeus.
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Me despedi de Cláudia e Oscar e voltei para casa achando que eles tinham exagerado. Não devia ser tão fácil assim comprar na farmácia um remédio que qualquer um podia transformar em veneno. Deixei o carro na garagem e andei até a Drogaria Pirajá. Entrei e perguntei se tinha Digoxina.
«Quantas caixas?», quis saber o vendedor.
«Não precisa de receita?» perguntei, e ele me olhou como se eu estivesse querendo complicar as coisas. «Não», respondeu, impaciente. Paguei R$ 5.04 e enquanto esperava o troco fui lendo o que estava escrito na caixa: "Digoxina 0,25mg. - Venda sob prescrição médica. Contém 24 comprimidos. GlaxoWellcome". Vinha escrito também o prazo de validade: "5 anos".»
Tomei coragem e telefonei para Kátia perguntando se ela não tinha dado por falta de nada no seu banheiro. Ela não entendeu. Contei então tudo o que tinha se passado na noite em que a levei de porre.
Me pareceu mais curiosa do que zangada.
«Não diga que você mexeu nas minhas coisas.»
«Mexi e encontrei pelo menos uma novidade: a dose que sobrou estava lá, você não me entregou naquele dia, como eu acreditava.»
Ela não se alterou. «Naquele dia, você deve ter reparado a minha má vontade.»
«Porquê?»
«Porque não estava a fim de ficar lembrando a morte de Fernando. Fui lá, meti a mão na caixa e peguei o primeiro envelope que apareceu. Mas o que me interessa saber é se você teve coragem de fazer tudo de novo. Mandou examinar?»
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Respondi que sim e ela se alvoroçou toda:
«E aí?», quis saber.
«E aí», demorei um pouco e menti com desfaçatez, «que deu negativo!»
«Espero que agora você desista.»
Não tive coragem de dizer a Kátia que o resultado, positivo, não deixava dúvida: Fernando fora mesmo envenenado. A revelação equivaleria a encharcá-la de culpa, a lhe dizer que, mesmo sem querer, ela tinha matado o seu grande amor.
Ouvindo de novo as gravações, reconstruindo o que Kátia me contara, cheguei à conclusão de que Ivan realizara um trabalho profissional - «um crime quase perfeito», como disse Oscar Berro. Primeiro, forneceu três doses de pó absolutamente inócuo para que Kátia misturasse à comida de Fernando. Era a famosa poção mágica de dona Lucinda - inofensiva e inútil, incapaz de fazer mal a um bebé.
Enquanto isso, armou cuidadosamente a reaproximação do casal: fez insinuações, instigou Fernando, despertou seu ciúme, o que não era tarefa difícil para ele. Afinal, levara a vida toda fazendo isso, voluntária ou involuntariamente. Estava sempre de plantão para esse papel.
Dessa vez, deve ter sugerido a Fernando que Kátia, apaixonada mas já conformada, queria um reencontro sem compromisso, só uma ou duas noites de amor, uma despedida. O que que lhe custava? Não era propriamente um sacrifício.
O jantar, a noite de amor, tudo fazia crer a Kátia que a poção de dona Lucinda estava mesmo produzindo efeito. Fernando ia acabar voltando.
Ivan mandou então que Kátia repetisse o ritual na semana seguinte e desse as «doses de reforço»: uma quarta, outra quinta e, se fosse preciso,
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a terceira na sexta-feira. Esta última seria com certeza uma dose de misericórdia, para qualquer eventualidade. Se a quantidade anterior não fosse suficiente ou se por acaso Fernando, na última hora, tivesse que almoçar fora, qualquer imprevisto desses, a moça repetiria a operação.
Provavelmente, para afastar a menor sombra de suspeita, ele tinha preferido não botar a substância tóxica na primeira dose do segundo kit, como não pusera nas três doses da semana anterior. Se pusesse, mataria logo Fernando, e Kátia poderia atribuir a morte a essa primeira dose de «reforço».
Assim, a digoxina só deve ter sido usada nas doses de números 2 e 3: a que Fernando ingeriu e a outra que não chegou a ser usada - a que Kátia guardou em casa e eu, por sorte, peguei.
Cláudia e Oscar não acreditam que a escolha de um medicamento tão adequado não tivesse tido a orientação de um especialista - um cardiologista, um farmacêutico ou um químico, por exemplo -, mas isso jamais se saberá. O mais próximo que cheguei, o máximo que soube é que Ivan, na adolescência, trabalhou num laboratório farmacêutico na Baixada.
Quanto à aquisição do produto, Ivan deve ter feito o que eu fiz: entrou numa farmácia qualquer e comprou uma caixa de vinte e quatro comprimidos de digoxina 0,25. Foi para casa e triturou-os até virarem pó - uma operação mais simples do que preparar uma poção mágica.
Correndo para acabar o livro, passei algum tempo sem falar com Kátia. Alguma coisa estava acontecendo com ela. Na última vez que nos víramos, ela me surpreendera ao confessar que queria ler alguma coisa sobre inveja. Será que eu não tinha um livro que explicasse «tudo»?
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Ela estava querendo entender a amizade de Fernando e Ivan - como este podia ser tão egoísta e mal-agradecido, incapaz de reconhecer o que o outro fazia. Kátia contou que, quando não tinha mais nada que falar do amigo, Ivan alegava que ele gostava de parecer bonzinho. «É só para as pessoas dizerem: "Como ele é legal"», dizia o invejoso.
«Quanto mais Fernando fazia por ele, mais ele ficava com raiva. Não sei como é que podia ter tanta inveja assim», Kátia disse indignada.
Depois, pensou um pouco e me perguntou se a inveja tinha cura. Informei a ela que muitos estudiosos achavam que sim, mas que, de minha parte, só tinha certeza de que era uma doença que nascia com a gente. Prometi que procuraria em casa alguma publicação que ajudasse a esclarecê-la, contanto que não fosse, pensei comigo, um ensaio ou algo parecido.
Me lembrei então que o primeiro livro de ficção que lera quando comecei a pesquisar o tema fora Esaú e Jacó, a história dos irmãos gémeos Pedro e Paulo. Na verdade, era uma releitura. A primeira leitura tinha sido há quarenta anos no curso de Letras Neolatinas da Faculdade Nacional de Filosofia.
A releitura de agora me confirmou a importância do livro, sua ambiguidade e sutileza. Com algum esforço, se tivesse paciência de ir até o final, Kátia poderia encontrar na história contada por Machado traços da história que ela conhecia tão bem. Pensei em emprestar-lhe o livro, mas não a minha edição da Aguilar, claro.
Saí então à procura e acabei encontrando um volume solto do Esaú e Jacó, da editora Garnier. Paguei com prazer os R$ 16,90 cobrados, pedi à moça para embrulhar pra presente e no dia seguinte dei para Kátia.
«Grosso, né?», foi sua primeira reação ao abrir o embrulho e apalpar o volume. Eu então me dei conta de que, decididamente, tinha errado de presente ou de pessoa. Mas, paciência, o mal estava feito.
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Qual não foi minha surpresa quando, uma semana depois, Kátia me disse: «Não entendi tudo do livro, achei meio devagar, mas mesmo assim gostei.»
Desconfiei que ela estivesse mentindo. «Vai ver que nem leu», pensei comigo e tentei tirar a limpo.
«Do que que você gostou, Kátia?», desafiei.
«Gostei muito da cabocla que as duas mulheres vão consultar no morro. Parecia o terreiro de Vó Lucinda, com fila e tudo! Ela é uma mãe--de-santo, não é?»
«É uma espécie de mãe-de-santo, uma adivinha.»
«Por isso é que ela acertou o que ia acontecer com os dois irmãos, não é?»
Procurei saber se ela se identificava com a principal personagem, a moça que era disputada pelos gémeos.
«Você se acha parecida com Flora»?
«De jeito nenhum. Ela é boa demais, eu não.»
Era uma observação curiosa porque alguns críticos contrapunham Flora a Capitu. Esta, com sua dissimulação e astúcia, significava o Mal. Já Flora, frágil, «um vaso quebradiço ou a flor de uma só manhã», era o símbolo do Bem.
«E os gémeos te lembraram Ivan e Fernando?», fiquei curioso.
«A inveja, eu acho que era a mesma. Inveja ou ciúme, nunca cheguei a descobrir. Acho que eles tinham inveja deles mesmos e ciúme de mim. Aliás, você já me explicou, mas ainda não sei bem qual é a diferença entre inveja e ciúme.»
Disse que a melhor maneira de saber era verificar a existência de uma terceira pessoa. «Não existe ciúme se não há uma terceira pessoa», disse e ilustrei:
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«Quando Fernando não queria que você saísse com Ivan, isso era ciúme. Mas quando Ivan retribuía com mal o bem que Fernando lhe fazia, era pura inveja.»
Agora, um mês depois desse encontro, Kátia me ligou dizendo que tinha uma coisa muito importante para me comunicar. Aleguei que andava com pouco tempo, assoberbado de trabalho, só se fosse um encontro rápido.
Pra variar, foi no Caesar Park. Kátia chegou toda alegre, anunciando: «Tou apaixonada, arranjei o homem da minha vida!» Há meses estava namorando em segredo um rapaz «maravilhoso» que conhecera por intermédio de uma amiga.
Ela andava procurando alguém para orientá-la sobre sua situação na firma, a posse do apartamento, quando essa amiga lhe apresentou um jovem advogado, que passou a cuidar dos interesses de Kátia e, logo em seguida, também do coração.
Ela fora obrigada a fazer isso porque Ivan estava «cada vez mais insuportável». Continuava obcecado pelo seu antigo rival e amigo, como se ele estivesse vivo. «Não há um dia que não fala no Fernando. Não entendo: ele ficou com a mulher do amigo, com a empresa, com parte da grana e vive falando mal dele. Acha que na firma há o "time do Fernando e o time do Ivan", que eu estou tramando, que até a perua está traindo ele.»
«Aliás, parece que a coisa lá tá preta. Ouvi outro dia um telefonema em que um disse as piores do outro. Você, que é jornalista, presta atenção que a qualquer hora vai estourar um grande escândalo por aquelas bandas envolvendo grana, falsificação de documentos, desfalque.»
Em seguida, fez um pedido: «Quero que você seja um dos primeiros a conhecer meu namorado. Já falei muito de você com ele.»
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Expliquei que até entregar o livro não podia, mas depois do dia 15 de janeiro teria o maior prazer.
«Estou doida para ler esse livro.»
«Você vai ter uma grande surpresa, não sei se vai gostar», avisei.
Notei que, além da alegria, Kátia estava usando um vocabulário novo. Termos como «carência», «rejeição», «culpa» e «sentimento de perda» tinham aparecido na conversa. Não podia ser só a novela das oito.
«O, Kátia, você está fazendo análise?», perguntei.
Ela deu um sorriso maroto e disse que eu era muito indiscreto.
Fiquei achando que talvez não tivesse jogado fora o número de telefone que lhe dera há meses, quando demonstrou vontade de consultar um analista.
«Você procurou o João Batista?», insisti.
Ela fingiu que nunca tinha ouvido falar nele. «Quem?» E deu aquela gargalhada.
Tudo isso me deixava mais tranquilo em relação à minha decisão de publicar sua história.
Kátia estava em boas mãos - nos braços de um advogado apaixonado e com a cabeça sendo feita por um excelente psicanalista.
Kátia continuava um mistério para mim, mas pelo que conheci dela, eu não queria estar no lugar de Ivan daqui para a frente.
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** Agradecimentos


A primeira dívida deste livro é para com seus personagens, os que viveram as histórias e me possibilitaram contá-las.
Mas não menos importantes foram os que, sem aparecer nas páginas, me ajudaram de várias maneiras a chegar ao fim.
Vou ficar devendo muito aos psicanalistas, pais e mães-de-santo, padres, astrólogos e antropólogos que me orientaram pelos difíceis caminhos desse complicado tema.
Minha gratidão especial aos médicos que cuidaram de mim enquanto eu cuidava da inveja.
Teria muito que agradecer também aos que se dispuseram a ler os originais, tentando diminuir meus desacertos. Como nem sempre consegui atender suas sugestões, a eles não deve ser debitada a permanência de meus erros.
Queria estender meus agradecimentos aos que colaboraram me emprestando ora uma ideia, ora um livro ou um artigo, estímulo e confiança - às vezes tudo isso junto.
Por fim, quero declarar que sem o amor de Mary e o afeto de Mauro e Elisa - além da ajuda que me deram em todas as etapas do trabalho - nada teria sido possível ou valido a pena - nem o livro, nem a vida.

** Bibliografia


Não poderia deixar de registrar também minha dívida para com os autores que me ajudaram a entender melhor o tema:
Alberoni, Francesco. Os Invejosos - Uma investigação sobre a inveja na

sociedade contemporânea. Rocco, Rio de Janeiro, 1996. Armstrong, Karen. In the Beginning - A new interpretation of Génesis.


Ballantine Books, New York, 1997.
Assis, Machado de, Esaú ejacó. Livraria Garnier, Rio de Janeiro, 1988. Berke, Joseph H. A Tirania da Malícia - Explorando o lado sombrio do

caráter e da cultura. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1992. Bonder, Nilton. A Cabala da Inveja. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1992. Brunel, Pierre (organizador). Dicionário de Mitos Literários. Editora UNB/


José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1997. Cezimbra, Márcia e Orsini, Elisabeth. Os Emergentes da Barra. RioAr-

te/Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1996. Fox, Robin Lane. Bíblia - Verdade e ficção. Companhia das Letras, São

Paulo, 1993.

Klein, Melanie. Envie et Gratitude et autres essais. Éditions Gallimard, Paris, 1968.


Mason, Jayme. Dante e a Divina Comédia - Uma crónica didática. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987.
Mezan, Renato. «A inveja», in Os Sentidos da Paixão. Funarte/Companhia das Letras, São Paulo, 1987.
Menninger, Karl. O Pecado de Nossa Época. José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1975.
Moyers, Bill. Génesis - A living conversation. Doubleday, New York, 1996.
Rodrigues, Nelson. O Óbvio Ululante - Primeiras confissões. Companhia das Letras, São Paulo, 1995.

Shoeck, Helmut. LEnvie - Une Histoire du Mal. Les Belles Lettres, Paris, 1995.

Tomel, Patrícia Amélia. Inveja nas Organizações. Makron Books, São Paulo, 1994.

Zuenir Ventura É um dos maiores nomes das letras brasileiras. Jornalista e professor há quase 40 anos, Zuenir Ventura trabalhou como repórter, redactor e editor em vários jornais e revistas. Ganhou o Prémio Esso de Reportagem e o Prémio Wladimir Herzog de Jornalismo em 1989. Autor dos best-sellers 1968, o ano que não terminou, Cidade Partida e Inveja - Mal Secreto, assina actualmente colunas semanais n'O Globo, Jornal do Brasil e revista Época. O seu último livro, Minhas Histórias dos Outros, publicado recentemente no Brasil, transformou-se num verdadeiro sucesso de vendas.



Data da Digitalização

Odivelas, Amadora - Abril de 2006
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