Na cidade do invisível Dalton Trevisan


Dois encontros com Glauber



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Dois encontros com Glauber

Gênio ou doido? Agora que o transformaram em personagem mitológico, recordo que o vi de perto (e por duas vezes) e ele se comportou como uma pessoa normal. Foi em São Paulo, no lançamento lá de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ano: 1964.


Confesso, porém, que quando o ator Geraldo Del Rey me disse que Glauber Rocha havia marcado a entrevista para as 8 da manhã (e de um sábado!), achei que a sua fama de doido tinha algum fundamento. Madruguei para chegar pontualmente à casa do Geraldo, onde ele estava hospedado. Nem acreditava que Glauber, a figura mais discutida daquele momento (um crítico carioca chegara a escrever 25 dias seguidos sobre o seu filme), tão endeusado quanto detratado, e assim atingindo todas as colunas da glória, fosse receber um dos editores (o outro era o Franco Paulino) de uma revisteca chamada Finesse, que lembrava uma marca de papel higiênico. E que ainda por cima fora herdada de um colunista social falido, pelo gerente do hotel em que ele morava, como pagamento da sua hospedagem.
Uma sucessão de acasos fez com que fôssemos convocados por um repórter - de O Cruzeiro -, e poeta que admirávamos, o gaúcho de Rosário do Sul Carlos de Freitas, para tocá-la adiante. O nome da revista era ruim, ele disse, mas podíamos fazer do legado do mosquito de bunda de grã-fino uma folha de rosto da cidade. O hotel garantia os custos da gráfica, pelo direito a um anúncio permanente na quarta capa. O resto era conosco. Mas sem salário. Tudo pela arte.
Topamos.
E fizemos com que a Finesse passasse a circular no eixo boêmio entre o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Correia, ao Arena, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri – estendendo-se um pouco mais dali até o Juão Sebastião Bar, de Paulo Cotrim, que comprava uma centena de cada edição, para oferecer a seus clientes mais ilustrados. A tiragem, porém, era modestíssima: mil exemplares. O que isso poderia interessar a um Glauber Rocha, cuja carreira subia como um rojão de São João, em todas as páginas?
Pois acredite. Glauber já estava de pé às 8 horas da manhã daquele sábado. E, pelo visto, era a única pessoa acordada naquele prédio da Rua Santo Antônio, logo ao final, à direita, do Viaduto Maria Paula, e bem próximo do Ferro´s Bar, onde Geraldo Del Rey e sua bela Tânia deviam ter varado a madrugada. Com certeza ainda estavam em sono profundo. Eles e toda a vizinhança. Sinais de gente ali só os das minhas pisadas ao deixar o elevador e me encaminhar à porta do apartamento. E os passos de Glauber Rocha atrás dela. O silêncio permitia perceber que ele rondava na sala, à espera do toque da campainha. Recebeu-me com um formal aperto de mão. E não fez qualquer menção para nos sentarmos. Vai ver uma conversa ali iria acordar os donos da casa, pensei. Então puxei do bolso duas laudas com as perguntas que pretendia lhe fazer.
- Posso deixar isto, para você responder depois? – perguntei-lhe, falando baixo. Ele tinha 25 anos, apenas um a mais do que eu. Daí não chamá-lo de senhor.
Com um gesto de assentimento, acompanhado de um “Hum-hum”, deu uma olhada rápida no questionário datilografado, colocou-o sobre um móvel ao nosso lado, logo à entrada do apartamento, e me convidou para tomar um café com pão e manteiga, no botequim da esquina. Seu mal era a fome, voltei a pensar. Se não, o que havia sido feito da voz daquele cabra que tinha fama de ser falador como o cão? Às 8 horas da manhã, Glauber Rocha não combinava com a lenda noturna a seu respeito, que circulava nos bares de São Paulo. Nem parecia o autor de um texto exuberante – “Memórias de Deus e do Diabo em terras de Monte Santo e Cocorobó” –, que me provocara um impacto tão forte quanto um conto de João Antônio, o Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado na mesma revista, a Senhor, que era editada no Rio, e que todo paulistano “por dentro” lia. Hoje, traduz-se esse “por dentro” como cult, ai! Meus sais!
Mas ora! Ele ia se dar ao luxo de sentar-se diante de uma máquina de escrever para trabalhar de graça para uma revista nanica! E ainda tendo de pagar do próprio bolso o desjejum do seu entrevistador! Era pouco ou queria mais?
Sim, ia ter mais.
De pé, mal-ajambrado nas vestes matinais, a barba por fazer, o cabelo desgrenhado e o umbigo no balcão do botequim, já matando quem o matava, Glauber soltou o verbo. E disse que havia lido todo o último número da tal revistinha. Elogiou o projeto gráfico (também, era de Valdi Ercolani, um diretor de arte top – meus sais de novo! – de linha). Quanto ao conteúdo editorial, tinha críticas a fazer, com um pedido de desculpa por estar se metendo em meu trabalho. “Tenho alguma experiência em jornalismo”, ele disse, modestamente. “Editei cadernos culturais na imprensa baiana e agora colaboro regularmente com a revista Senhor, que é muito bem feita, como você deve saber”. Sim, sabia. Agradeci-lhe pelo interesse, leitura de tudo, comentários que quisesse fazer. Aí ele se sentiu à vontade para criticar os textos da revista, deixando-me embasbacado com sua capacidade de citar de memória trechos e mais trechos deles, não poupando os que considerava bobos.
- Veja se isso é lá uma boa maneira de começar uma frase: “Em sã consciência...” Você devia ter copidescado essa bobagem!
Expliquei-lhe que o autor era uma estrela da imprensa paulista, assim como os demais, todos grandes nomes do jornalismo, das letras e do teatro, que escreviam de graça. A revista era apenas uma curtição, para quem escrevia nela. Nós, os editores, Franco Paulino e eu, não nos sentíamos no direito de mexer nos textos de uma turma com tanto espírito de colaboração.
Foi aí que ele disse:
- Sendo assim, o negócio fica complicado. Mas como paulista escreve mal, hein? Você não acha?
Não. Não achava. Mas o jeito que ele falou isso foi engraçado. Encerramos o nosso café da manhã com pão e manteiga e uma boa risada. De pé. Será que ele nunca se sentava?
Na despedida, Glauber prometeu entregar a entrevista na segunda-feira seguinte, à noite, na porta do cinema, onde me enfiaria para a estréia paulistana de Deus e o Diabo na Terra do Sol.



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