O dono do morro dona marta



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anos, recém-desfeito. Tinha se formado na faculdade há pouco tempo,

mas não quis revelar a Juliano qual era a sua profissão nem seu sobrenome.

Um detalhe de sua história, revelado durante o almoço no restaurante

do museu, deixou Juliano preocupado. Ela estava mais próxima dele do

que poderia imaginar. Era carioca, filha de um secretário de Estado do

governo do Rio e morava na zona oeste, na Barra da Tijuca.

- E você, Juliano, carioca de onde?

- Cidadão do mundo!

Juliano retraiu-se por saber que os dois eram da mesma cidade. Mudou

de assunto. Aproveitou a sugestão de Jaqueline, que queria convidar

Olho de Gato para irem à praia.

- É mesmo, aí. Que sol! Que sol!

Passaram pela pensão e, em seguida, a convite de Olho de Gato, foram

para uma área deserta onde ele tinha que fazer algumas fotos submarinas.

Era uma pequena praia intercalada por pedras enormes, difícil de

andar em alguns pontos.

Os dois casais deitaram numa rocha para esperar o pôr-do-sol, hora

de luz ideal para as fotografias. Preocupada com a pele, Débora pediu

ajuda a Jaqueline para passar um protetor solar em suas costas. Tirou a

parte superior do biquIni para evitar marcas de sol. Juliano ficou impressionado

com a beleza de seu corpo e cochichou com Olho de Gato.

- Olha lá, coxas grossas de jogadora de vôlei. E que peitinhos. Parece

duas pistô uzi, cara! - disse Juliano.
- Tu tá maluco. Pistô uzi não é uma arma? - reagiu Olho de Gato.

- Metralhadora israelense.

- Comparar os peitos da mina com metralhadora, cara?

- Bem pequena, tu não conhece? Metade metralhadora, metade pistola.

Olha os dois bicos apontados pro céu. Lindo!

- Tu gosta de guerra, cara?

- Depende da guerra.

Débora interrompeu a conversa deles, desconfiada.

- Que tantos segredos estão rolando aí?

- Tamo falando de um filme: dois casais nus numa praia deserta - respondeu

Juliano.

- Boa idéia! - disse Débora. Ela convidou Jaqueline e as duas tiraram

os sutiãs dos biquinis e se jogaram no mar.

Olho de Gato jogou-se atrás. Um choque para Juliano, surpreendido

pela atitude das moças. Depois de uma breve indecisão, para a sua timidez

não chamar tanta atenção, tirou a sunga e jogou-se na água também.

Nadou para perto de Débora e a pegou por trás. Ela deixou que ele

beij asse seus cabelos e logo tentou sair de seus braços.

- Não estou a fim de nada. Só quero curtir esse mar... - disse Débora.

De repente, Juliano viu passar perto deles uma enorme tartaruga, argumento

para continuar abraçado a Débora, com medo de ser atacado.

- Você está com medo desse bichinho inofensivo, Juliano?

- Claro, olha o tamanho dela!

- E daí, tartaruga-gigante, uma raridade.

- Tu diz isso porque mulher não tem piroca. Aí, ó! Se ela comê a minha

piroca, como eu fico?

Juliano nadou até as pedras e saiu da água. Ficou sozinho, deitado

sobre uma rocha e adormeceu

por alguns minutos. Acordou com uma suave mordida nos lábios.

- Eu sou a tartaruga-gigante - alertou Débora.

Namoraram do pôr-do-sol até as quatro da madrugada. Dormiram

juntos na pensão de Débora. No dia seguinte, durante o café da manhã na

varanda, ela queria saber mais sobre a vida dele.

- O que faz um carteiro do Rio de Janeiro entregar carta em Fernando

de Noronha? - perguntou Débora.
- Sô carteiro, não - respondeu Juliano.

- E aquele colete amarelo, explica direito...

Juliano explicou em detalhes a história da viagem. Aos poucos passou

a responder, de forma vaga, às perguntas sobre as coisas mais importantes

de sua vida. Contou que gostava de ler, desenhar, tirar fotografias,

comer arroz com feijão logo que acordava e antes de dormir, fumar baseado,

escrever cartas, que um dia pretendia escrever um livro e tocar

um instrumento. E que fazia um curso de saxofone, com um professor

particular, que ia ao seu encontro duas vezes por semana.

- Que mordomia: o professor é que te procura?

- Não tem outro jeito, eu trabalho demais...

- Que trabalho você faz?

- Eu faço um trabalho numa comunidade. É difícil das pessoas compreenderem...

- Já sei, trabalha numa ONG, faz filantropia. Mas você não tem cara

de ser tão bom moço assim.

Passaram a tarde no quarto. A noite recusaram o convite de Olho de

Gato e Jaqueline para jantar no bar da cabana. Preferiram Continuar no

quarto. Só saíram para andar de madrugada, hora mais adequada para

confissões.

- Você disse que me falaria um segredo ainda hoje disse Débora.

- Vô confessá: tô apaixonado - disse Juliano.

- Não, não! Isso Você fala a cada cinco minutos.

- Aí, maneiro. O que tu qué sabê?

- Tudo. Não percebeu que estou muito a fim de você?

- Mermo! Minha deusa! Aí,vamo combiná uma coisa: eu confesso.

Mas tu tem que confessá alguma coisa antes. Um segredo bem cabeludo!

- Segredo daqueles feios? Deixa eu pensar: beijei três caras num mesmo

dia.


- Porra! Tu é fácil assim, é? Fiquei puto... acabou!

Juliano estava falando sério, sentia ciúmes do passado de Débora.

- Traição! Devia tê me avisado antes de eu me apaixoná. Beijo de

língua e tudo mais? Qué dizê: tudo que tu faz hoje comigo fazia antes à

pampa por aí?
- Dramático, Juliano. Qual é?

- Tô puto, segura aí vinte minutos sem trocá idéia comigo. Aí, como

posso confiá depois disso?

Antes do prazo de vinte minutos, provocado por Débora, Juliano estava

sorrindo novamente e confessando seus segredos.

- Aí, manero. Se tu qué sabê, vai lá: trampo na gerência de uma firma

clandestina.

- Firma de quê?

- Vendas. Sou da gerência, mando em 70 homens, qué dizê... uma

rapaziada muito legal, linha de frente.

- Firma forte? Onde fica?

- Botafogo, no morro.

- No morro, vendas. Vende o quê?

- Pó, branca, farinha, brizola, arroz, coca, cocaína! E erva, preta, feijão,

maconha.

Débora ouviu tudo em silêncio, chorou em alguns momentos, sorriu

no final:

- Obrigado por confiar em mim. Mas é foda, hein! Você é então.Pó,

sempre tive o maior medo.Você não está querendo me impressionar,

não?


- Tu quis sabê qualé, aí. Agora embaçô, não é?

- Quer saber de uma coisa, Juliano?

- Qualé?

- No fundo eu sabia que você era um homem diferente dos outros.

Acho que foi isso o que mais me atraiu em você.

- Pois é, Débora. O problema é que eu sô bom no que faço.

- Quer dizer que você gosta do que faz?

- É minha vida. Tudo o que tenho está lá no morro: minha mãe, minhas

irmãs, meus filhos, meus amigos, meu saxofone, meus instrumentos

de guerra... Só o meu pai tá fora, foi expulso de lá num rolo com os

alemão.

- Alemães? Tem muito alemão no morro?



- Alemão é o inimigo. Tá sempre querendo nos quebrá, matá mermo.

A gente é o lado certo da vida errada. Os alemão tão no lado errado da

vida errada.
- Você disse que tem filhos. E como faz com os filhos quando tem

guerra? Quantos filhos você tem?

- Dois. Um nasceu quando eu tinha 17 anos, Juliano William. O outro,

Juliano Júnior, é um bebê, vai fazê um aninho.

- E a mãe deles?

- Vão bem, tão lá também. As duas são solteiras.

Juliano evitou falar os nomes de Marisa, a mãe do primeiro filho, e de

Adriana, a do segundo, fruto de uma relação fulminante durante a sua festa

de aniversário no Leme. O caso durou exatamente 20 minutos, tempo

de uma relação sexual “rapidinha”, escondida dos convidados, no quarto

da casa da mãe dele. E Juliano escondeu de Débora que havia deixado na

favela uma terceira ex-mulher, a jovem Veridiana, filha de Madá.

- E você, tem filhos, Débora?

- Tenho uma, morro de saudades da minha filha. Gracie, três anos.

Está com a avó, mãe do meu ex-marido, que fica com ela no fim de semana.

Este ano ainda pretendo mudar com ela para o Texas, nos Estados

Unidos.

Amanheceram acordados falando de suas vidas e provável futuro de



cada um. Juliano estava exausto, Débora também, mas ela não queria

dormir para poder aproveitar melhor as últimas 24 horas ao lado dele. Ela

voltaria para o Rio de Janeiro no avião de quinta-feira bem cedo. E ele,

pelo plano inicial, ficaria o máximo possível, sábado à tarde.

Dormiram pela manhã e parte da tarde. Combinaram fazer uma festa

de despedida na hora do pôr-do-sol, na cabana de palha do penhasco,

onde começaram o romance.

Posaram para várias fotos tiradas por Olho de Gato, que estava interessado

em “fotografar” também uma turista inglesa, recém-chegada

à ilha. Perdera o interesse na loira Jaqueline, caso de um dia. Jaqueline

havia virado uma amiga divertida. Dançava reggae sozinha e, como sempre,

chamando a atenção da maioria dos homens da festa.

Na hora do fechamento da cabana, à meia-noite, Juliano comprou

duas caixas de cerveja gelada e pediu ajuda ao pessoal para descer o

penhasco com os engradados até a praia. A festa continuaria por mais

algumas horas. Bem antes de acabar, Débora e Juliano se afastaram, sem

se despedir de ninguém, e foram caminhar na areia até o amanhecer.
Juliano não quis levá-la de volta à pensão, nem ao aeroporto, apesar

da insistência de Débora.

- Eu sô bandido, Débora. Tu esqueceu?

- E daí, qual o problema?

- Bandido não se despede nem dá adeus.

Antes de partir, Débora convenceu Juliano a dar a ela um número de

telefone do morro para um possível contato. Ele passou o número do celular,

ainda uma novidade tecnológica na favela, introduzida pelo pessoal

da boca.

- Nove, três, oito. Seis, dois. Cinco, cinco.

- Posso telefonar? Quero sempre saber de sua vida.

- Aí, tu ainda vai sabê de muitas notícias minhas.

- E meu último beijo?

- Não fale essa palavra... Ultimo... Esquece a despedida, mulhé. Aí,

vou dá uma idéia: cada um pensa em duas palavras bem maneiras, diz no

ouvido do outro e sai de pinote, cada um pra um lado da praia.

Débora ficou alguns segundos em silêncio, abraçou forte Juliano e

cochichou no ouvido dele:

- Te amo!

O último beijo foi tão longo que Juliano esqueceu de dizer as suas

duas palavras. Já partia para o lado que escolhera quando Débora correu

atrás dele para cobrar a promessa.

- Até breve! - disse Juliano.

Juliano caminhou pela praia em direção à área do aeroporto. Sentou

sobre uma pedra para esperar a decolagem do avião de Débora. Tirou do

bolso uma pequena imagem de São Judas Tadeu e, na hora da subida do

bimotor, rezou a oração de todos os dias: “Obrigado por mais um dia de

vida nesta tua terra maravilhosa, meu Pai... e por nos conceder esta liberdade..,

que esta misericórdia se estenda por muitos e muitos séculos.., e

que o mal jamais vença o bem...”

De volta do arquipélago, Juliano passou a ser olhado com curiosidade

por alguns moradores da Santa Marta. Ele tinha sido alvo de uma campanha

difamatória promovida por seu concorrente na gerência, Claudinho,

que aproveitara a sua ausência para espalhar na favela a notícia de que

havia enlouquecido de tanto fumar maconha. Alguns episódios acabaram
involuntariamente contribuindo para a difusão da fofoca criada por seu

oponente.

Juliano voltou com um visual diferente de Fernando de Noronha.

Adotou cavanhaque e deixou os cabelos longos e cacheados. Passou a

usar óculos de sol 24 horas por dia. As lentes espelhadas, emolduradas

por dois corações vermelhos de acrllico, chamavam atenção até no escuro

dos plantões da madrugada. Só a amiga confidente Luz sabia que os

óculos eram um presente de Débora.

- Tu ficou amarradão, hein, Juliano?

- Mulheraço, Luz. Maió love! Sabe como nos separamos?

- Choradeira de novela?

- Ela pediu meu telefone, disse que ligaria no domingo seguinte.

- Tu deu, é ou não é? Foda, aí. Bandido dança assim, cara. Imagina: a

piranha é de cagüetação! E aí, como fica?

- Que nada, Luz. O problema é que ela não ligô como tinha combinado.

Débora demorou mais de um mês para ligar. Era final da tarde de um

domingo e Juliano aguardava um contato do fornecedor de maconha enquanto

assistia a uma partida de futebol dos seus homens, no campinho

de areia do pico. A reação dele à surpresa do telefonema da namorada

assustou o pessoal que jogava. Ao ouvir a voz de Débora, ele pediu um

tempo à namorada, largou o celular sobre uma pedra, pegou a Jovelina,

apontou para o alto em direção à imagem do Cristo Redentor e acionou o

gatilho: Dum. Dum. Dum Dum Dum. Dum. Dum. Dum. Dum.

A pelada acabou, a lua apareceu atrás do Pão de Açúcar, duas baterias

do celular foram gastas enquanto Juliano e Débora conversavam,

lembravam de cada momento que viveram em Fernando de Noronha.

Durante boa parte da conversa Débora contou que passara os últimos

dias tentando acompanhar, como jamais fizera em sua vida, o noticiário

sobre as favelas do Rio de Janeiro. Ficara impressionada com a falta de

informação, tanto nos jornais quanto nas revistas, nas rádios e nas televisões.

Só encontrara notícias sobre violência, tragédia e episódios de

brutalidade nas páginas de periódicos sensacionalistas. Passara a circular

de carro pelo bairro de Botafogo apenas para ver a favela de perto e se

impressionara, a cada viagem, com o aglomerado de barracos que corta


vam a floresta a partir dos prédios de classe média, do pé do morro até o

pico. Um retângulo de miséria que jamais percebera antes. Sentira muitas

vezes vontade de sair do carro e subir o morro para descobri-lo, conhecer

como são os becos, ver um barraco por fora e por dentro, abrir o armário

de uma cozinha, comer a mesma comida de juliano, se envolver com as

crianças e a rapaziada de quem ele tanto lhe falara de perto. Mas sentira

medo, embora estivesse cada dia mais interessada em descobrir o mundo

do namorado, que aos poucos se tornara, para ela, personagem de uma

história não tão impossível.

O ruído no celular de Juliano indicava que a terceira bateria estava

chegando ao fim e Débora queria marcar um encontro com ele em algum

lugar da cidade. Ele adorou a idéia, sobretudo por perceber o envolvimento

da namorada. Mas teve medo da proposta.

- Tu tá maluca, mulhé. Aí, eu vivo entocado só observando o mundo

de vocês aí embaixo. No controle, tá ligada? O morro é a minha torre de

observação, tá ligada? Não posso descê da minha área assim fácil, sem

um anjo da guarda...

Diante da insistência de Débora, marcaram um encontro para a quarta-

feira seguinte, às sete horas da noite, em um lugar que Juliano imaginava

ser um paraíso dos ricos, o Shopping da Gávea.

Conversaram até a bateria do telefone acabar. Depois, Juliano correu

até o barraco de Luz para falar e saber das novidades.

- A mina ligô, Luz, na maior responsa...

- É a piranha da Barra ou a da Rocinha?

- É bagulho sério, Luz. A mina tá na minha, puro love, puro love.

- Qualé, Juliano? Por acaso tu passou mel na pica, caralho?

Aos poucos, Claudinho conseguiu convencer o chefão Carlos da Praça

a afastar Juliano das decisões mais importantes. Encarregou-se de enviar

a renda semanal ao dono da boca, com ele discutia por telefone todas

as estratégias da quadrilha e as transmitia, como ordens, ao irmão

Raimundinho, que aceitava sem muita reclamação. O irmão percebia

suas intenções, mas não gostava de discutir com ninguém. Era avesso a

reuniões e a qualquer tipo de conversa que envolvesse tomada de decisão.

Raimundinho acostumou-se a se expressar pela violência e poucos, como

a amiga Mana e o companheiro de gerência Juliano, ainda conseguiam
manter algum diálogo ou compreender o significado de seu silêncio.

Juliano nem percebeu direito o seu crescente isolamento na boca. Vivia

cercado pelo seu grupo, cada vez mais fechado, formado pelo pessoal

originário da Turma da Xuxa. Andava apaixonado por Débora, só tinha

cabeça para pensar na mulher que nunca mais vira e, por influência da

fase de paixão, dedicava boa parte de seu tempo a aprofundar seus conhecimentos

de música, intensificando as aulas com o professor de sax.

Incorporou um novo equipamento à sua rotina. Era visto por toda a parte

com o fuzil Jovelina e o saxofone dourado pendurados no ombro, mais

uma extravagância condenada por Claudinho.

- Tu tá maluco, rapá. Tu parece injetado de pó, caralho. Esse bagulho

chama a atenção, os homi vão vê de longe e sentá o caroço! Mole, mole...

- reclamou Claudinho.

- Fica na tua, Cláudio. Música é pra tirá uma chinfra, energia boa, da

paz.

Quando Juliano convenceu o seu professor de sax a dar aulas noturnas,



até os melhores amigos, que o apoiavam em todas as loucuras, ficaram

preocupados. O barulho do sax denunciava o esconderijo das aulas,

aumentava o risco de ser descoberto pela polícia. O soldado Peninha, que

negociara com Juliano a venda do AK-47, andava circulando pelo morro

para prendê-lo. Agentes da P-2 também vasculhavam alguns barracos à

procura de quem havia posto fogo no jipe do soldado Rambo.

Juliano também não havia esquecido sua revolta contra Rambo e os

outros PMs acusados de terem matado o amigo Chicão. Seus homens já

haviam absorvido a mesma motivação: falavam que não “dariam mole”

na eventualidade de cruzar com algum desses policiais tidos como inimigos.

A festa do Dia da Criança de 1992, promovida por Juliano a pedido

das mães mais carentes, começou pouco antes do pôr-do-sol, na área da

Cerquinha. As mulheres enfeitaram uma mesa enorme, de uns três metros

de comprimento, preparada sobre a laje usada como ponto de observação

de Paranóia, que aos 13 anos já assumira a chefia dos olheiros da boca. O

bolo, que ocupava quase toda a extensão da mesa, era uma miniatura de

um campo de futebol, um retângulo feito de massa de pão-de-ló, coberto

com um gramado de açúcar verde e linhas brancas de cristais adocica


dos, que demarcavam as divisórias do campo. As traves e as redes dos

gols eram de plástico, assim como os minijogadores. Em volta, muitas

garrafas de dois litros de guaraná e grande variedade de balas, bombons,

maria-mole, cocada, péde-moleque, pipoca doce e doces caseiros. As

crianças já se lambuzavam de doce e refrigerante quando os meninos

Nem e Pardal, nesta época com 14 e 13 anos de idade respectivamente,

anunciaram com uma rápida queima de fogos que os PMs da P-2 estavam

invadindo pela subida leste, junto à divisa com a floresta.

- Sujeira! É a turma do Rambo! - anunciou Mendonça, tão logo recebeu

informação dos meninos que subiram o morro correndo para dar o

alerta na festa.

- Aí, vamo se entocá, rapaziada. Mas se fô o Rambo e o Peninha vamo

dá mole, não. Se vem azeitona, manda caroço neles, aí - gritou Juliano

para os amigos Mendonça, Rebelde, Du e Luz, que estavam bebendo cerveja

com o pessoal do tráfico no botequim mais próximo da festa. Uma

declaração de guerra, embora estivesse planejado desfrutar de muita paz

nesse dia, paz fora do morro.

Era o dia do encontro marcado com Débora no Shopping da Gávea.

Juliano acordara às três horas da tarde, eufórico com a idéia de encontrá-

la. Já combinara com Careca a formação de um bonde de motoqueiros

para levá-lo na garupa no começo da noite até o ponto combinado com

à namorada da Barra da Tijuca. Providenciara inclusive o presente, uma

fita cassete com gravações inéditas de seus amigos do funk. Para vestir-

se especialmente para a ocasião, como desejava, precisou da colaboração

dos amigos. Sem uma casa fixa, as poucas roupas que tinha estavam espalhadas

pelas casas das namoradas e do pessoal da quadrilha. Costumava

dizer que tinha algumas bermudas, algumas camisetas, algumas botas de

cano curto, algumas boinas e bonés e alguns tênis. Era uma forma de usar

qualquer roupa dos outros que encontrasse disponível nos esconderijos

por onde circulava. E o pessoal também fazia o mesmo, se apropriava das

roupas do chefe. Também partilhava roupas com o missionário Kevin,

que era um caso à parte. Como os dois tinham a mesma estatura, gostavam

de usar as mesmas roupas e calçados, a ponto de serem confundidos

no morro. Os guerreiros também confundiam as vozes dos dois, pois um

gostava de imitar o jeito do outro falar. Depois de meses de amizade,
cada vez mais sólida, Kevin passou a se considerar irmão de Juliano, e

vice-versa. Numa ocasião como esta, o sonhado encontro com a moça da

Barra da Tijuca, o irmão ajudou a produzir o figurino, com o empréstimo

de uma botina preta e uma surrada jaqueta de couro marrom. Du emprestou

a sua única calça preta. Os acessórios ele escolheu em vários barracos:

uma pulseira de couro para o pulso, uma pequena imagem em ouro

de Nossa Senhora Aparecida para pendurar no cordão preto que usava

no pescoço, um anel de casca de coco para o dedo médio e uma pistola

automática para ficar escondida na cintura. Estava pronto para descer o

morro quando o aviso dos fogueteiros forçou a mudança de planos.

Desarmada, Luz desceu rápido viela abaixo, apressada para localizar

o grupo de Raimundinho e pedir reforço urgente à área da Cerquinha.

Apesar da tensão provocada pelos fogos, as mulheres e as crianças continuaram

na festa, para dificultar a ação da polícia contra o pessoal da

boca.

Um tenente, um cabo, três soldados, Rambo, Peninha e outros dois



policiais da P-2 foram vistos entrando no pé do morro na hora em que os

alto-falantes da Associação transmitiam a oração da Ave-Maria. Depois

nenhum olheiro conseguiu localizá-los, já começava a anoitecer quando

Luz encontrou Raimundinho, que estava escondido atrás de uma caixa-

d’água de um dos sobrados. Dali ele tinha visão dos becos que convergiam

para a praça das Lavadeiras. Na verdade, fora Raimundinho que a

vira passar e, lá de cima, assoviou para a amiga, que estava ofegante.

- Aí, cara. O Rambo e o Penínha tão na área e o Juliano diz que hoje

o bicho vai pegá. Ele vai trocá com os homi! - disse Luz.

- Tô na minha, sem vacilo, Luz. Aqui na Mina não vou dá mole. Tu

sabe que eu sento o dedo mesmo...

- Seguinte, aí. Tu tem que reforçá lá em cima. O juliano só tem o

Mendonça, o Rebelde, o resto do pessoal é muito fraco - disse Luz.

- E o Paulo Roberto, o Careca, o Du...? - perguntou Raimundinho

- O Paulo Roberto tá fora do morro e os outros dão conta não, aí -


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