Tempos modernos tempos de sociologia helena bomeny


(Niterói, 29 de julho de 1936)



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(Niterói, 29 de julho de 1936)

André Nazareth/Strana/Editora Abril

Roberto DaMatta, 2000.

Roberto DaMatta é um dos mais importantes antropólogos brasileiros. Apesar de ter inicialmente se dedicado a pesquisas sobre populações indígenas, acabou por desenvolver estudos pioneiros sobre a sociedade brasileira como um todo e, mais especificamente, sobre os padrões culturais do país. Com base em temas como o Carnaval, o futebol, a comida, a morte, o jogo do bicho, a malandragem etc., procurou responder à pergunta O que faz o brasil, Brasil? – título de um de seus 11 livros –, apontando diferentes caminhos para a compreensão de nossa identidade nacional. DaMatta lecionou durante muitos anos na University of Notre Dame, nos Estados Unidos, experiência que lhe rendeu diversos estudos comparativos sobre as diferenças entre a sociedade brasileira e a norte-americana. É hoje o quarto autor mais citado em trabalhos acadêmicos em Ciências Sociais no Brasil, ficando atrás apenas de três pensadores estrangeiros (Karl Marx, Max Weber e o sociólogo francês Pierre Bourdieu). Entre seus trabalhos mais importantes estão Carnavais, malandros e heróis (1979), O que faz o brasil, Brasil? (1984) e A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil (1985).


Página 358

Para DaMatta, as chances estão com a segunda opção. Isso porque operamos com uma hierarquia que diz: “Eu sou igual a todo mundo até certo ponto; devido à minha rede de contatos, à minha família, eu mereço um tratamento especial”. É como um “direito” às avessas, concedido não pela lei, mas pela posição que o sujeito ocupa na hierarquia social. Perceba que DaMatta não está falando aqui apenas do poder econômico, mas do capital social, dos contatos poderosos que o sujeito pode acionar caso necessite.

Queremos ser uma sociedade legal, regida pela Constituição, diz o antropólogo. Ao mesmo tempo, porém, não queremos abrir mão das práticas sociais hierárquicas, aquelas que estabelecem os lugares diferentemente destinados a cada um segundo as escalas de prestígio, poder ou condição econômica, que ignoram o pacto democrático. As elites falam de seu desejo de tornar o Brasil uma nação moderna, mas querem manter uma sociedade em que “cada um sabe seu lugar”, na qual “os de cima” seguem mandando e “os de baixo” seguem obedecendo; uma sociedade que preserva a lógica do velho – mas ainda atual – ditado: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”.

Vemos que, assim como Sérgio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta está problematizando a relação entre o público e o privado na sociedade brasileira. Esse tema ganha ainda mais destaque em seu livro A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil, publicado em 1985. Casa e rua são categorias que se prestam a uma leitura dos brasileiros, argumenta DaMatta, porque na cultura brasileira “casa” e “rua” não se referem simplesmente a espaços geográficos ou a coisas físicas. Referem-se, antes de tudo, a “entidades morais”, “esferas de ação social”, “domínios culturais institucionalizados”.

A “casa”, no Brasil, é o espaço moral que encontra no “mundo da rua” seu oposto simbólico. Nesse sentido, sugere DaMatta, “o espaço definido pela casa pode aumentar ou diminuir, de acordo com a unidade que surge como foco de oposição ou de contraste. A casa define tanto um espaço íntimo e privativo de uma pessoa (por exemplo, seu quarto de dormir) quanto um espaço máximo e absolutamente público, como ocorre quando nos referimos ao Brasil como nossa casa”.

DaMatta chama nossa atenção para expressões cotidianas como “vá para o olho da rua!” ou “rua da amargura”, que exemplificam o quanto a sociedade brasileira rejeita a rua, vista como o lugar do impessoal, do isolamento e do desumano. A rua é o espaço da malandragem e do perigo, do que é “de ninguém”. A expressão “sentir-se em casa”, por sua vez, ajuda a pensar na relação afetuosa que estabelecemos com a casa. Ali nos sentimos protegidos pelos que nos querem bem, pelos que sabem quem de fato somos. Nosso maior pesadelo, sugere o antropólogo, é nos vermos “sem casa”, sem a rede protetora de nossas relações, “apenas” sob jugo da lei.



João Medeiros/Fotoarena

Moradores conversando em frente às suas casas, em João Pessoa (PB), 2015.
Página 359

Roberto DaMatta lembra ainda a tradição brasileira de dar nomes “subjetivos” aos logradouros (como “Rua Direita”, “Rua do Comércio”, “Rua da Quitanda”), em contraposição às coordenadas geométricas norte-americanas. Nos Estados Unidos, diz o autor, as cidades se orientam mais de acordo com os pontos cardeais (norte/sul, leste/oeste) e com um sistema numeral para ruas e avenidas. Entre nós, a orientação não segue códigos racionais e universais, mas refere-se a acidentes topográficos ou, ainda, a características políticas e sociais.

A casa e a rua marcam mudanças de atitudes, gestos, roupas, assuntos, papéis sociais. É muito comum, por exemplo, que o mesmo sujeito que faz questão de manter sua casa limpa e organizada se sinta à vontade para jogar lixo na calçada. Para muitos brasileiros, atitudes como essa não são vistas como contraditórias. É por isso que DaMatta diz que o código da casa (pessoal e hierarquizante) e o código da rua (individualista e igualitário) são percebidos por nós como lógicas diferentes, mas nem por isso exclusivas ou hegemônicas. A singularidade do Carnaval brasileiro residiria justamente no fato de a rua tornar-se casa durante os festejos. Essa rua transformada em casa subverte tanto o código hierárquico da rua quanto o da própria casa: a rua passa a ser de todos e de ninguém. Daí o antropólogo dizer que o Carnaval é um ritual de inversão da realidade brasileira: uma festa sem dono num país que tudo hierarquiza.

Missão (quase) impossível

Ao longo deste livro, dissemos repetidas vezes que o Brasil é um país muito diverso social e culturalmente. Um país plural do ponto de vista de seus rituais e costumes, de uma pluralidade que vai muito além das reconhecidas diversidades regionais e que se recusa a se acomodar em modelos explicativos rígidos.

“Temos de tudo no Brasil”, costumamos dizer. Foi diante desse “tudo” tão diverso e plural que se colocaram os nossos intérpretes. Longe de ignorar as peculiaridades regionais, as diferenças entre “litoral” e “sertão”, as maneiras de ser das diferentes localidades, os estilos de vida dos vários segmentos sociais, esses intelectuais buscaram fazer dessas diferenças tema de reflexão. Arriscaram interpretações capazes de traçar ao menos algumas linhas comuns em que nós, brasileiros de diferentes etnias e classes sociais, pudéssemos nos reconhecer. Missão nada fácil, isso é certo. Mas nem por isso menos interessante.

Recapitulando

Neste capítulo você aprendeu que as maneiras de se comportar ou os hábitos mais comuns dos indivíduos ajudam a entender como uma sociedade concebe a si mesma e como é percebida por integrantes de outras sociedades. Foi observando nossos hábitos e costumes que certos intelectuais delinearam algumas interpretações marcantes sobre a identidade brasileira. O estudo desses autores ajuda a pensar sobre nós, brasileiros, sobre quem somos e como chegamos a sê-lo.

Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil, partiu da noção de homem cordial – aquele que age com o coração, movido pela emoção – para mostrar que a identidade brasileira não se funda na formalidade ou no respeito a leis universais. Nós nos valemos mais da espontaneidade e apostamos muito na lógica dos favores. O conceito de homem cordial ajuda a perceber um dos traços de nossa sociedade: a confusão frequente entre o que é público e o que é privado, a visão do espaço público como um prolongamento do espaço privado. Essa característica se desdobra em outros fenômenos sociais, como o coronelismo, o apadrinhamento, o “jeitinho” e a corrupção.

Outro importante intérprete do Brasil é o antropólogo Roberto DaMatta. Com base na comparação entre a sociedade brasileira e a norte-americana, ele também se preocupou em entender como os brasileiros lidam com as esferas pública e privada. As marcas da identidade brasileira analisadas por DaMatta foram o “jeitinho brasileiro”, o “você sabe com quem está falando?” e os sentidos de “casa” e “rua” para nós. Há muitos outros autores que podem ajudar a compreender a diversidade social e cultural brasileira, que vai muito além dos regionalismos ou das tradições locais. O que pretendemos ao lhe apresentar Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta é instigá-lo a descobrir outras interpretações do Brasil e provocá-lo para que você também se aventure a responder à pergunta: O que nos faz brasileiros?


Página 360

Leitura complementar


As novas relações no campo

A tendência predominante até pouco tempo atrás era ver apenas a cidade como lugar onde as transformações acontecem, onde a história se faz. O campo era o espaço das “sobrevivências”, foco das “resistências” ao processo de modernização da sociedade brasileira.

Hoje isso não é mais assim. [...]

Um dos trabalhos mais relevantes sobre a nova ruralidade brasileira é o de João Marcos Alem. Ele aponta como se formou uma “rede simbólica da ruralidade”, que se apresenta no vestuário, no consumo de artesanato, na decoração rústica, ou seja, no consumo de símbolos do mundo rural. Essa rede se faz presente em exposições, feiras, festas, rodeios, eventos esportivos, cívicos, religiosos, e recebe reforço de programas de rádio e TV, da indústria fonográfica, de revistas, de suplementos de jornais e de peças publicitárias.

Esse processo de configuração cultural neorruralista, neossertaneja ou caipira-country é encontrado nas regiões onde a modernização da produção rural foi mais intensa. A nova ruralidade ultrapassou o mundo rural e atinge as cidades, principalmente as do interior. Apresenta-se no brilho das empresas e dos empresários, nas técnicas modernas de cultivo, nos artistas e nos peões de rodeios, pessoas e grupos cujos estilos de vida são muito distantes do Jeca Tatu de Monteiro Lobato, do sertanejo de Euclides da Cunha, dos jagunços de Guimarães Rosa ou dos caipiras de Antonio Candido. [...]

As exposições oferecem a oportunidade de ritualizar as posições de classe e exibir autoridade política tanto de grupos privados quanto de estatais. São, ao mesmo tempo, eventos das culturas populares em que se celebram certas tradições folclóricas e religiosas. [...]

O rural se transfigura em referencial múltiplo. Ora aponta o passado, ora o presente, ora o futuro. A festa tem normalmente elementos fixos, aqueles ligados à tradição e a certas empresas cujos produtos são ligados a produtos e insumos rurais. E elementos variáveis, aqueles mais ligados aos consumidores ou a eventos do momento. Redes de emissoras de rádio e a TV se encarregam de anunciar sua realização. A divulgação é feita também com caminhões com alto-falante divulgando o evento – algo entre os antigos anúncios de circo na cidade e o trio elétrico.

[...] A modernização do campo brasileiro – sem reforma agrária, entendida como distribuição de terras – criou uma nova ruralidade que se faz perceptível em suas festas e comemorações. A associação entre modernização do campo e indústria cultural se faz presente na Festa do Peão de Barretos tomada como exemplar da constituição do peão-cowboy. [...] E, por fim, [...] o agrobusiness e o circuito de rodeio constituíram o espaço social para que o caipira, ou o atrasado de ontem, se tornasse o globalizado de hoje.

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Do caipira picando fumo a Chitãozinho e Xororó, ou da roça ao rodeio. Revista USP, São Paulo, USP, n. 59, p. 247-256, set./nov. 2003. Disponível em: . Acesso em: maio 2016.

Fique atento!


Definição dos conceitos sociológicos estudados neste capítulo.
Burocracia: na seção Conceitos sociológicos, página 364.
Jeitinho brasileiro: na página 357.
Patrimonialismo: na página 355.
Personalismo: na página 356.

Sessão de cinema



Jeca Tatu

Brasil, 1959, 95 min. Direção de Milton Amaral, com argumento de Amácio Mazzaropi.



Produções Amácio Mazzaropi

Inspirado no personagem de Monteiro Lobato, Jeca é um roceiro muito preguiçoso que tem seu pequeno rancho ameaçado pela ganância do italiano Giuseppe.

O auto da compadecida

Brasil, 2000, 104 min. Direção de Guel Arraes.



Globo Filmes

Adaptação da peça homônima de Ariano Suassuna. O herói da história é um homem cheio de esperteza que, além de resolver seus problemas e de outros, enfrenta até mesmo Nossa Senhora em um tribunal.
Página 361

Construindo seus conhecimentos



MONITORANDO A APRENDIZAGEM

1. Leia o texto a seguir e responda às questões propostas.

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro [...]. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146-147.

a) Em torno de que ideia o autor constrói sua interpretação sociológica do Brasil? Explique.

b) Por que a lógica do “homem cordial” é oposta à lógica da civilidade? Como Sérgio Buarque de Holanda chama essa lógica?

c) Sérgio Buarque de Holanda apostava que a urbanização afastaria a sociedade brasileira da lógica patrimonialista e a levaria em direção a uma lógica burocrática, portanto mais formal e universal. Reflita sobre o argumento do autor e em seguida escreva sua opinião a esse respeito.

2. Explique a metáfora “a casa e a rua” utilizada por Roberto DaMatta.

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DE OLHO NO ENEM

1. (Enem 2009)

Para Caio Prado Jr., a formação brasileira se completaria no momento em que fosse superada a nossa herança de inorganicidade social – o oposto da interligação com objetivos internos – trazida da colônia. Este momento alto estaria, ou esteve, no futuro. Se passarmos a Sérgio Buarque de Holanda, encontraremos algo análogo. O país será moderno e estará formado quando superar a sua herança portuguesa, rural e autoritária, quando então teríamos um país democrático. Também aqui o ponto de chegada está mais adiante, na dependência das decisões do presente. Celso Furtado, por seu turno, dirá que a nação não se completa enquanto as alavancas do comando, principalmente do econômico, não passarem para dentro do país. Como para os outros dois, a conclusão do processo encontra-se no futuro, que agora parece remoto.

SCHWARZ, R. Os sete fôlegos de um livro. Sequências brasileiras. São Paulo: Cia. das Letras,1999 (adaptado).

Acerca das expectativas quanto à formação do Brasil, a sentença que sintetiza os pontos de vista apresentados no texto é:



(A) Brasil, um país que vai pra frente.
(B) Brasil, a eterna esperança.
(C) Brasil, glória no passado, grandeza no presente.
(D) Brasil, terra bela, pátria grande.
(E) Brasil, gigante pela própria natureza.
Página 362

2. (Enem 2015)

Em sociedade de origens tão nitidamente personalistas como a nossa, é compreensível que os simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes e até exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os indivíduos, tenham sido quase sempre os mais decisivos. As agregações e relações pessoais, embora por vezes precárias, e, de outro lado, as lutas entre facções, entre famílias, entre regionalismos, faziam dela um todo incoerente e amorfo. O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional e uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras.

HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Um traço formador da vida pública brasileira expressa-se, segundo a análise do historiador, na



(A) rigidez das normas jurídicas.
(B) prevalência dos interesses privados.
(C) solidez da organização institucional.
(D) legitimidade das ações burocráticas.
(E) estabilidade das estruturas políticas.

ASSIMILANDO CONCEITOS

TEXTO 1

Por tudo isso, somos um país onde a lei sempre significa o “não pode!” formal, capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todos os projetos e iniciativas. [...] Ora, é precisamente por tudo isso que conseguimos descobrir e aperfeiçoar um modo, um jeito, um estilo de navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses peremptórios e autoritários “não pode!”. Assim, entre o “pode” e o “não pode” escolhemos, de modo chocantemente antilógico, mas singularmente brasileiro, a junção do “pode” com o “não pode”. Pois bem, é essa junção que produz todos os tipos de “jeitinhos” e arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social.

[...] Em geral, o jeito é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa junção inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando.

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984.



Texto 2

JAL


Charge elaborada exclusivamente para esta obra.

1. No texto 1, você encontra uma explicação de Roberto DaMatta para o “jeitinho brasileiro” e, no texto 2, uma charge ilustrando com ironia uma situação na qual o “jeitinho” é aplicado. Descreva a imagem destacando as características do “jeitinho” apontadas pelo autor.
Página 363

[ícone] ATIVIDADE INTERDISCIPLINAR

OLHARES SOBRE A SOCIEDADE

1. Pesquise na internet frases famosas que sintetizem uma interpretação do Brasil. Escolha uma dessas frases e selecione argumentos que corroborem a sua mensagem. Escolha outra frase cuja ideia você rejeite e liste argumentos que mostrem que ela está equivocada. Enriqueça -os buscando dados e informações que confirmem seu ponto de vista.

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EXERCITANDO A IMAGINAÇÃO SOCIOLÓGICA
TEMA DE REDAÇÃO DO VESTIBULAR DA FGV-SP DIREITO (2012)

Leia com atenção os seguintes textos:



TEXTO I

O filósofo brasileiro Paulo Arantes apresenta e discute uma tendência sociológica – corrente nos Estados Unidos e em países europeus desenvolvidos – que acredita que está ocorrendo uma “brasilianização do mundo”. Segundo essa opinião, o Brasil estaria se convertendo em um modelo social para o mundo, mas um modelo negativo: nas últimas décadas, até países ricos estariam apresentando um quadro “brasileiro”, cujos traços principais seriam: favelização das cidades, insegurança generalizada, precarização (“flexibilização”) do trabalho, distanciamento maior entre centro e periferia, “jeitinho” (brasileiro) para negociar com a norma etc. Assim, para a referida tese da “brasilianização”, o Brasil seria “o país do futuro”, só que de um futuro que promete mais regressão e anomia social.

Paulo Arantes. A fratura brasileira do mundo. Zero à esquerda. S. Paulo, Conrad, 2004.

TEXTO II

O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta assim reagiu a essas teses da “brasilianização do mundo”: “O uso da expressão brasilianização para exprimir um estado de injustiça social me deixa ferido e preocupado. De um lado, nada tenho a dizer, pois a caracterização é correta. De outro, tenho a dizer que o modelo de Michael Lind exclui várias coisas. A hierarquia e a tipificação da estrutura social do Brasil indicam um modo de integração social que tem seus pontos positivos. Nestes sistemas, conjugamos os opostos e aceitamos os paradoxos da vida com mais tranquilidade. Seria este modo de relacionamento incompatível com uma sociedade viável em termos de justiça social? Acho que não. Pelo contrário, penso que talvez haja mais espaço para que estes sistemas híbridos e brasilianizados sejam autenticamente mais democráticos que estas estruturas rigidamente definidas, nas quais tudo se faz com base no sim ou no não. Afinal, entre o pobre negro que mora na periferia e o branco rico que mora na cobertura há muito conflito, mas há também o carnaval, a comida, a música popular, o futebol e a família. Quero crer que o futuro será mais dessas sociedades relacionais do que dos sistemas fundados no conflito em linhas étnicas, culturais e sociais rígidas. De qualquer modo, é interessante enfatizar a presença de um estilo brasileiro de vida como um modelo para os Estados Unidos. É sinal de que tem mesmo água passando embaixo da ponte”.

Idem. p. 60. Adaptado.

TEXTO III

Por sua vez, o compositor e escritor Jorge Mautner posicionou-se, quanto à mesma questão, da seguinte maneira:

A minha trajetória de vida me faz interpretar o Brasil pela forma radical da amálgama. Essa é a pedra fundamental do século 21. A amálgama é miscigenação, mas vai além: é ela que possibilita ao brasileiro reinterpretar tudo de novo em apenas um segundo, e mais ainda, a absorver pensamentos contrários, atingindo o caminho do meio, que era o sonho de Lao Tsé, do Buda e de Aristóteles.

É por causa dessa importância tremenda que teremos a Olimpíada e a Copa aqui. Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista. Até o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal, é amálgama também: ele já foi pai de santo, faz descarrego. É quase umbanda!

Depoimento a Morris Kachani. Artur Voltolini. (Folha de S.Paulo). Adaptado.

Tendo em conta as ideias acima apresentadas, redija uma dissertação em prosa sobre o tema Brasil: um modelo positivo ou negativo para o mundo?, argumentando de modo a deixar claro seu ponto de vista.


Página 364

Conceitos sociológicos



ANOMIA

Anomia quer dizer ausência de normas ou regras de organização. Uma sociedade anômica, em que o sentimento de desregramento é mais forte do que o de orientação com base em regras, corre o risco de desintegração. O conceito de anomia foi associado mais fortemente a Émile Durkheim, mas outros autores também o utilizaram, cada qual dotando-o de um significado diferente. Na obra do próprio Durkheim esse conceito varia. Em Da divisão do trabalho social, Durkheim apresenta a noção de anomia associada ao sistema de divisão de trabalho que caracteriza as sociedades industriais. Já em O suicídio, fundamenta-a em duas dicotomias: egoísmo-altruísmo e anomia-fatalismo. As pessoas serão tanto mais egoístas quanto mais suas ações forem pautadas pelo livre-arbítrio, e não por valores e normas coletivas; e serão tanto mais altruístas quando o inverso for verdade. A anomia ocorrerá quando as ações dos indivíduos não forem mais reguladas por normas claras e coercitivas, e haverá fatalismo quando as normas limitarem ao extremo a autonomia do indivíduo para escolher meios e fins. Com isso, Durkheim indica que a complexidade crescente dos sistemas sociais leva à individualização crescente dos membros da sociedade e a maior desregramento.



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