Na cidade do invisível Dalton Trevisan


Vinícius e o seu poema preferido



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Vinícius e o seu poema preferido

Se criar e coçar é só começar, então vamos lá. Hoje é sábado e amanhã é domingo e a vida vem em ondas como o mar e Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.


Começo estas linhas ouvindo O Dia da Criação, de Vinícius de Moraes, na voz do próprio, com o conjunto de Oscar Castro Neves dando um ritmo jazístico ao poema, e as vozes do Quarteto em Cy respondendo ao poeta como se fossem um coro teatral, ou de igreja. Está no CD Vinícius & Caymmi, uma raridade.
Encontrei-me com Vinícius uma única vez em toda a sua vida. Foi em Ipanema. E no Country Clube, durante o coquetel de lançamento de uma edição da finada Status, que concorria com a Playboy. Adivinha quem era a sexy-simbol da capa e por páginas e páginas? Fafá de Belém, com toda a exuberância que a natureza lhe deu. E qual foi o autor escolhido para louvar-lhe os dotes amazônicos? Ele mesmo: Vinícius de Moraes. O status da dupla permitiu ao Chico Paula Freitas, o braço carioca da editora que publicava a revista, convidar meio mundo das artes & letras para a festa.
Copo vai, canapé vem, avistei o poeta, num momento que se fez uma clareira à sua volta. Marchei na sua direção, célere como um Johnny Walker, o Joãozinho Caminhador. Cumprimentei-o, apertando-lhe a mão. Ele correspondeu, amavelmente. Então lhe contei que estava escrevendo um romance, em que um personagem citava um poema dele. Queria saber se havia algum problema em relação a isso. "Que poema você escolheu?" Recitei de memória A hora íntima: "Quem pagará o enterro e as flores/ se eu morrer de amores?/ quem dentre amigos/ tão amigo/ para estar no caixão comigo?" Ele sorriu e bateu em meu ombro, dizendo: "De todos os que escrevi, este é o meu preferido. Você está autorizado a usá-lo do jeito que quiser."
Agradeci-lhe e me retirei. Passos adiante, encontrei Antônio Callado, aquele lorde que tanta falta nos faz. Reproduzi-lhe o que Vinícius me havia dito. "Já vi que o meu xará não conhece a peça," Callado disse. "Qualquer outro poema que você mencionasse, ele ia dizer a mesma coisa."
Ainda assim, pela vida afora este leitor e ouvinte de Vinícius de Moraes continuaria achando-o um bom sujeito. Quem escreveu e viveu do jeito dele não poderia ser outra coisa. E se o recordo agora, é porque hoje é sabado.

A bela Tônia e o velho Braga

Primeiro, recordo uma noite na Fiorentina, ali no Leme, aqui no Rio, quando a senhora diretora da Casa Laura Alvim, Eliana Caruso, me pôs a uma mesa, ao lado da não menos amável Tônia Carrero, que sempre associei a duas figuras tão ilustres quanto ela: Paulo Autran e Rubem Braga. Associação, aliás, que deriva de sua própria história – de vida e afetos. Mas não foi sobre o sabiá da crônica que conversamos então. Consumimos o tempo numa única rememoração, em torno da vez em que Tônia Carrero e Paulo Autran estiveram na cidade (portuguesa, com certeza) do Porto, para levar à cena a peça Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, num cinemão completamente lotado. O público portuense, contido por natureza, não lhes poupou aplausos.


No dia seguinte, criei coragem e fui procurá-la no hotel em que se hospedara, com uma única fala decorada: “Sou brasileiro e seu fã”. E perdi a respiração ao me ver a poucos passos de distância de uma beleza que só devia nascer a cada cem anos. “Você mora aqui?”, ela me perguntou, com um sorriso piedoso. “Tadinho! Como está agüentando todo esse frio?” Sim, o inverno do Porto é muito longo, sombrio, sujeito a chuvas de granizo, um castigo para quem nasceu nos trópicos. O papo foi rápido porque ela já estava de malas prontas. Paulo Autran ficou. E voltou a subir no mesmo palco, para um recital de poesias, o que sempre fez, magistralmente. Naquela outra noite, porém, sem dividi-lo com a Tônia, ele ficou parecendo um verso de pé quebrado.
Desde aquele encontro com lady Carrero na Fiorentina, venho pensando em contar umas histórias do seu outro amigo. Afinal, também recentemente, ela foi a primeira celebridade convocada para a inauguração de um memorial a Rubem Braga, em Cachoeiro do Itapemirim, a cidade do Espírito Santo onde o célebre cronista nasceu.
A primeira delas se tornou lendária no meio jornalístico carioca. É do seu tempo na revista Manchete, onde escrevia toda semana, assim como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Henrique Pongetti. Um dia, Rubem Braga decidiu ir à sede da empresa, para reivindicar aumento de salário. “O quê? Cinqüenta contos por uma crônica?” – perguntou-lhe o patrão, que se chamava Adolfo Bloch, à beira da apoplexia. Calmamente, Rubem respondeu: “Sim. Por uma crônica e cinqüenta anos de vida”.
Outra: o poeta português Alexandre O’Neill — já devidamente apresentado neste livro — estava num café de Paris, com uma amiga brasileira. Ao olhar em volta, viu um homem sozinho, que tinha a cara de Rubem Braga. “É o próprio”, ela garantiu-lhe. “Mas não vá puxar conversa. Deixe-o na paz da sua solidão”. O’Neill ficou um tempo a observá-lo. Achou-o com um rosto triste. E pensou: “Vai ver é por nunca ter escrito um romance”. Uma conclusão meio doida, de quem, provavelmente, já tinha bebido além da conta.
Há mais uma que entrou para o anedotário como um clássico do gênero. Carybé, o artista argentino que virou baiano, estava de passagem marcada para o Rio. “Rubem Braga vai hospedar você”, disse-lhe Jorge Amado, passando-lhe o endereço da famosa cobertura da Barão da Torre. E assim ele veio, com garantia de casa e comida. Na hora de voltar à Bahia, dirigiu-se ao seu anfitrião, para despedir-se dele e lhe agradecer pela hospitalidade. E acrescentou: “Rubem, durante esses dias aqui, observei todos os seus movimentos. Por isso vou lhe dizer uma coisa: perto de você, Dorival Caymmi é um operário-padrão”.
Na verdade, ele dava duro para viver, como escritor e editor, ao seu tempo de sócio de Fernando Sabino, na Sabiá. Fui levado a conhecê-lo, sem aviso prévio, pelas mãos da pintora Regina Vater. Ela era amiga do velho Braga, a ponto de tocar-lhe na porta, sem telefonar antes.
“Peguem uísque e gelo e se sirvam”, ele disse. Depois, a passos lentos, caminhou para uma rede. E nela, continuou a ler um livro, apanhado no chão. Era o Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, que iria publicar, com o sucesso que se sabe. Saí de perto, para não incomodá-lo mais. Aquele que tinha fama de preguiçoso estava trabalhando, enquanto parecia descansar. Vida de artista.

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