Na cidade do invisível Dalton Trevisan


Alguém que anda por aí Em Madureira, com um guia francês



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Alguém que anda por aí

Em Madureira, com um guia francês

Foi num sábado de feijoada na quadra da Portela, ritmada pela sua Velha Guarda. A este morador da Zona Sul, não chegou a ser uma surpresa o convite de um francês para um passeio a Madureira. Desde 1503, quando adentraram pela primeira vez a baía de Guanabara, os franceses não pararam mais de atravessar o Atlântico em busca de exóticas aventuras nestes trópicos, a ponto de descrevê-los como um paraíso terrestre, habitado pelo povo expulso do Gênesis. Este que havia acabado de desembarcar na cidade, porém, tem pelas coisas nossas um interesse que transcende às míticas visões do passado. Passou a infância e adolescência no Brasil.


Além de dominar perfeitamente a nossa língua, na qual se expressa sem o mais leve sotaque, impregnou-se da cultura brasileira tão bem - ou até mais - quanto qualquer um de nós. Conheço-o de longa data. Ainda assim fiquei surpreso quando ele disse que sabia como chegar à Portela. “É só a gente pegar um ônibus e saltar na esquina da rua Clara Nunes”.
E assim me deixei levar às profundezas da Zona Norte, sábado passado, tendo como guia um psicanalista chamado André Flexor. Dudu, para os íntimos. Sempre que vem ao Rio, o que faz duas vezes por ano, no mínimo, ele entra em conexão com uma roda de samba, quem sabe vislumbrando uma possibilidade de cura coletiva para as neuroses deste mundo.
Em Paris, assim que o último paciente se levanta do seu divã, o doutor André diz adeus aos manuais de Freud a Lacan, e entrega a sua alma à terapia grupal dos ritmos brasileiros. Para, de violão entre os braços, animar um pagode carioquíssimo no restaurante Gevaudan, a poucos passos do metrô Saint-Jacques. E onde o seu proprietário marroquino, o senhor Sallah, passou a ser chamado de mestre Sala.
Agora ele está indo a Madureira para recarregar as baterias, não se incomodando com as voltas do itinerário, os engarrafamentos, os perigos – não maiores do que os da periferia de Paris -, o calor, o suor, a revista à entrada da quadra, o peso da mochila. Presentes. O primeiro deles será para a tia Doca. Alguns bambas o reconhecem de longe. E o convidam a subir ao palco. Agradece-lhes com um aceno. Já passa da hora de encarar as filas da feijoada, que custa a módica importância de R$ 7,00. E não pára de entrar gente, a R$ 5,00 por cabeça. Gente branca, preta, mulata, gorda, magra, nova, velha, feia, bonita. A sociabilidade naquela quadra encanta. Enquanto o samba rola, as filas aumentam, sob um céu descampado. Sol de rachar. Às 4 da tarde encostamos na tenda das panelas. Todas vazias.
Um grandalhão fala grosso. Não vai sair dali sem comer. Cheiro de quebra-quebra no ar. Melhor cair fora. E andar entre o atulhamento de carros, até chegar à engarrafada Estrada do Portela. Calçadas estreitas apinhadas de camelôs, esgotos jorrando, prédios pichados, pés sujos lotados. O poder público passou longe daqui, penso. Mas logo em frente fez-se a visão do paraíso: uma churrascaria. Com ar refrigerado e um verdejante bufê de saladas. Então nos reabastecemos para pegar o ônibus de volta, passando por ruas sujas, de paredes rabiscadas. “Quanto mais pichações nas fachadas, maior é a densidade da pobreza”, diz Dudu. E conclui: “Pelo menos os jovens suburbanos daqui encontram nas quadras das Escolas de Samba uma socialização que os franceses não têm”. Será?
“Venham vê-los em ação à noite, de cano em punho”, diz o jovem escritor Mariel Reis, que conhece tudo lá, por dentro. E atesta: a violência afugentou as fábricas da área. Emprego só nos morros da Serrinha, Congonha e Cajueiro, “onde o bicho come e ninguém vê”. E assim ele fez um resumo da história do Rio.

Na cidade do invisível Dalton Trevisan

Para Elisângela Alves


Tudo que sabia dela era de ouvir dizer. Coisas assim: que no fundo de cada filho de família dorme um vampiro, como o Nelsinho, o Delicado, ou o Dalton, o Contista, suplicantes de beijos das virgens - e de suas carótidas. Mesmo sendo refratários à luz do dia, tornam-se invisíveis, só para contrariar os bisbilhoteiros que a visitam na vã esperança de identificá-los. Quais seriam eles, entre aqueles encostados num balcão, de olho nas meninas que passam, sem lhes prestar atenção? Se é isto o que você quer saber, pode ter certeza de que perdeu a viagem. No entanto, acredite: bem diante dos seus olhos, um deles estará às raias do êxtase, ante a esplêndida visão de uma viúva que acaba de sair de um carro: ''Ela está de preto... Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!''.
Impossível não associar Curitiba ao ritual de seus pequenos vampiros, súditos de Onã, priápicos inofensivos a enxugar conhaques, para afogar os dissabores de uma adolescência espinhenta. Ou a um humorístico jogo de palavras que certamente lhe soa tão espirituoso quanto incômodo: ''Ritiba quer dizer 'do mundo'''. E ainda à definição que lhe cunhou a roqueira Rita Lee: ''Uma cidade arrumadinha, bonitinha, com uma gente educadinha''. Só que esta cidade, justa ou injustamente reduzida a diminutivos, é uma das que mais crescem no país.
Fiz um bordejo por lá, a convite da Confraria da Palavra. Palestras. Na PUC-PR e numa simpática Feira de Livros na Praça Osório. Quando cheguei, Carlos Heitor Cony já tinha pegado o avião de volta. Logo outro carioca talentoso, o Fernando Molica, deu o ar da sua graça para um reforço à programação cultural do evento e, a bem dizer, preencher um pouco a lacuna deixada pelo experiente Cony.
Para mim, foi como ir a Roma e não ver o papa, pois Dalton Trevisan, o sumo pontífice das letras paranaenses, ficou famoso também pela invisibilidade. Recluso sistemático, não se sabe se o ermitão Dalton existe ou é ficção. Modo de dizer. Miguel Sanches Neto, um novo valor que se alevanta no Sul, uma vez me garantiu que costuma bater em seus umbrais, e que ele lhe abre a porta, numa prova inequívoca de que sua existência é real, embora escondida a sete chaves da curiosidade pública.
Esse ourives de palavras - um gênio minimalista - foge do assédio como o diabo da cruz. E nisso faz lembrar o finado Scott Fitzgerald, quando dizia que não podia suportar a visita de celtas, ingleses, políticos, estrangeiros, virginianos, lojistas, intermediários em geral, todos os escritores (evitava os escritores com o maior cuidado, porque eles podem perpetuar a agitação e o desassossego melhor do que ninguém) - e todas as classes como classes, a maioria delas pelos seus membros...
Seja lá qual tenha sido o motivo, o certo é que o criador de O vampiro de Curitiba não foi à feira. Ainda assim, a praça atraiu de poetas a loucos. Nenhum dos autores convidados conseguiu causar mais impacto do que uma mendiga. Esta roubou a cena diante de uma mesa de autógrafos, ao bradar, insistentemente: ''Senhor vereador, eu quero uma saia nova!''. Acabou sendo tratada respeitosamente. Aí dei razão a Rita Lee: em Curitiba há uma gente bem educada, sim senhora!


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