Na Praça dos Paraíbas, onde João Antônio viveu
Seu nome oficial é Serzedelo Corrêa. Por que também tem um outro, o de Praça dos Paraíbas? O dentista Renato Conde, originário das Alagoas, que lá instalou o seu consultório há muitos anos, ainda se recorda de quando os porteiros dos edifícios e as empregadas domésticas, em grande maioria nordestinos, faziam dela um espaço de convivência, nos fins de semana, dando-lhe um colorido popular de quermesse, festa junina, forró e reisado, ao agregarem-se para reviver a sociabilidade de outros tempos, em seus festeiros rincões, alheios ao rótulo pejorativo, sinônimo de sotaque arretado, migrante pobre, mão-de-obra barata.
Desço do 11° andar do Centro Comercial que dobra a esquina da Avenida Nossa Senhora de Copacabana e avança pela Siqueira Campos, já na praça. Neste mês de agosto, uma feira de livros contorna o gradeamento com que a encurralaram. Vou parando de estande em estande, para ver se João Antônio marca uma presença simbólica em algum deles. O autor de Malagueta, perus e bacanaço, Calvário e porres de Afonso Henriques de Lima Barreto e Abraçado ao meu rancor viveu e morreu ali em frente.
Mas não. No terceiro estande desisto da inútil procura. Parto para outra, adentrando a área gradeada da praça. Queria localizar o banco em que o fotografei um dia. Talvez seja aquele onde um senhor, de caneta em punho, e tendo uma revistinha apoiada numa pasta, se distrai preenchendo os quadrinhos de umas palavras cruzadas. Deve ser um discípulo dos irmãos Campos, pensei, me lembrando que era isso o que achávamos que os poetas concretistas paulistanos faziam. Não leve tal desdém a sério. Dizíamos coisas assim de brincadeira, à boca pequena, só para dar umas risadas.
João Antônio, que havia nascido nas bandas de Osasco e se tornou um cronista das zonas de sombra de Copacabana, pegava pesado mesmo em cima dos doutores em letras, que chamava de “sambudos” cheios de pós de vaidade. Quem amava: os merdunchos, a ratutaia miúda que comia o pão que o diabo amassou com o rabo, com a qual, no seu caminhar de sandália, bermuda e camiseta, não temia ser confundido. Mulato de origem pobre como Lima Barreto, identificava-se tanto com ele que acabou se vinculando ao álcool e passando uma temporada numa casa de loucos. E finou-se sozinho, no seu apartamento, na cobertura do edifício n° 15-A da Praça dos Paraíbas. Quem sabe abraçado ao seu rancor.
Atravesso-a passando por um de seus espaços de vida e ficção, lembrando-me do período em que fomos companheiros inseparáveis.
Depois, as circunstâncias nos separaram. Mas cá estou. Chegando ao boteco da esquina onde tantas vezes nos encontramos. Ô, João Antônio, será que um dia esta praça terá o seu nome?
Com Márcio Souza em Manaus
‘‘Emprestar livros é mesmo um problema. Você corre o risco de nunca tê-los de volta. E pior: de não conseguir se lembrar para quem os emprestou. Inclui-se nesse caso a primeira edição de Galvez, imperador do Acre, publicada em Manaus, num volumezinho que cabia no bolso, em papel-jornal e cheio de erros tipográficos. Ainda assim, o leitor aqui não o trocaria por nenhuma outra de suas muitas edições, digamos, profissionais, que passaram a ser distribuídas no Brasil e around the world. Vista num retrospecto da trajetória do Galvez e de seu autor, aquela ediçãozinha tão mal-acabada seria uma relíquia, pelo menos para o descuidado emprestador de livros que vos escreve, e que, se a tivesse mantido a sete chaves em sua estante, agora não precisaria dar voltas à cabeça para se lembrar quando foi mesmo que conheceu Márcio Souza.
Com toda certeza não foi num dia muito distante do firmado no rodapé da dedicatória de outra obra, As folias do látex: 8 de outubro de 1976. Ou teria sido naquela mesma data? Bom, esse livro, contendo o texto de uma peça teatral classificada na capa como vaudeville, pode ter chegado pelo correio, num tempo em que escritores de tudo quanto era canto deste país adentravam as portas do Sul Maravilha dentro de um envelope. Ainda bem que o Folias do látex não teve um destino igual ao do Galvez. Graças a isso posso reler agora as linhas que Márcio escreveu em toda a folha de rosto desse seu outro livro, nas quais consignava uma espécie de ideário, assumindo-se como perseguidor “de um pedaço de nossa identidade perdida”, e essa determinação não o fazia se sentir “isolado na província”, pois reconhecia o mesmo impulso em muitos dos seus pares. Márcio Souza estava entrando em cena consciente de pertencer a uma geração que tinha um projeto. O que hoje parece fora das modas. E essa é outra história.
Foi o estrondoso sucesso de Galvez, imperador do Acre que tirou Márcio do seu isolamento amazônico. Conheci-o antes disso acontecer, por artes de um convite para uma feira de livros em Manaus, e uma palestra num teatro de lá. Fui recebido no aeroporto por uma amável senhora chamada Socorro Santiago, diretora do Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de Educação. Assim que entramos no seu carro, ela propôs me levar, antes do hotel, à Fundação Cultural do Amazonas, para que eu conhecesse o escritor amazonense que havia me indicado para os dois eventos de que ia participar. Não. Até aquele momento eu ainda não tinha ouvido falar de Márcio Souza.
Recordo-o sentado a uma mesa cheia de gavetas, numa sala igual a tantas outras de qualquer repartição pública. Ao vê-lo pela primeira vez, atentei para os seus óculos que me pareceram desproporcionais ao seu rosto magro. Tanto quanto para o fato de ser mais novo do que eu, que já chegara aos 36 anos. Ele estava na casa dos 30, redondos. Depois dos cumprimentos iniciais, ele voltou a sentar-se, puxando uma gaveta e tirando dela um exemplar do seu Galvez, imperador do Acre, naquela ediçãozinha um tanto artesanal. Escreveu a dedicatória e me passou o livro. O primeiro encontro não foi muito além disso.
Na noite daquele primeiro dia, ele me pegou no hotel e me levou para assistir a um ensaio no Teatro do Sesc, do qual era o diretor. Terminados os trabalhos, convocou o elenco para um colóquio em torno do tema “o melhor lugar para levar o nosso visitante”. Decidiu-se por um restaurante à beira de um igarapé e cercado de floresta, fora da cidade. Quando chegamos lá, a casa estava fechada. Mesmo assim, todos desceram dos carros. E ficamos um tempão ali conversando baixinho, de pé, em reverência ao mundo do silêncio e aos milhões de estrelas que o iluminavam. “Manaus fica tão longe de tudo, a começar pelas cidades do próprio estado, que chega a parecer que não faz parte do Ocidente”, ele me disse. E contou de suas viagens pelo Amazonas adentro, levando o seu teatro de cidade em cidade, nas quais só se chegava pelos rios, em dias e dias de navegação. E também falou de Oswald de Andrade, um de seus santos de cabeceira.
Na volta ao hotel, comecei a ler o Galvez, para chamar o sono. E o perdi de vez. Quando me dei conta, já estava no ponto final, a pensar: “Que insólito é esse Márcio. Ele tem uma cara séria de sacristão, mas é um pícaro”.
Na manhã seguinte, ao encarar uma câmera de TV no saguão do hotel, declarei: “Não é a mim que vocês têm que entrevistar”. E mostrei o Galvez, anunciando publicamente o que tinha a dizer ao Márcio Souza em particular, e que aqui pode ser resumido numa palavra: bravo! Reencontramo-nos várias vezes, naquela oportunidade, como se já nos conhecêssemos desde sempre.
E assim começava uma amizade que atravessaria os tempos. Aquela conversa iluminada por milhões de estrelas continuaria aqui no Rio de Janeiro e em longas viagens à Bulgária e a Portugal. E em encontros na Feira de Frankfurt e no Salão do Livro de Paris. Onde estás agora, Márcio? Na tua Manaus ou em Berkeley?
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