e salgados, ficou finalmente às escuras, o que animou os homens
de Cabeludo.
- Põe a cara pra morrê, Zaca! - gritou Jogador.
- Vem me apanha, otário. Pega essa, respondeu alguém, que disparou
lá do alto.
Havia tiros vindos também da esquerda do Salgadinho. Impossível
avançar naquele momento.
- Caralho, temo que vazá daqui. Eles vão pegá a gente, desse jeito vão
quebrá a gente! - reclamou Juliano a Orlando Jogador.
- Manda uma granada. Manda uma granada - gritou Jogador.
- Granada é contigo, Flavinho. Atira neles, atira!
A peça de aço que Flavinho carregava no bolso da bermuda parecia
um pequeno extintor de combate ao fogo. Era uma granada americana,
igual às dos filmes que a Turma da Xuxa assistia sobre a guerra do Vietnã.
Flavinho nunca prestara atenção na técnica dos soldados do cinema
para fazer o lançamento da granada. Teve que aprender sozinho que o
procedimento era a retirada do pino de segurança, que fazia detonar automaticamente
a explosão depois de exatos 15 segundos. Uma vez extraído
o pino, o lançamento deveria ser feito o mais rápida possível. Como
ninguém o orientou, logo que ouviu as ordens de Jogador e Juliano, Flavinho
lançou a granada contra o inimigo como se fosse uma pedra, sem
retirar o pino de segurança. Acertou o alvo, a laje de um barraco, de onde
alguém disparava a metralhadora. Mas como a granada estava com o
pino de segurança, não houve a explosão.
- Obrigado pela granada. Presentão! - gritou um homem, que poderia
ser Zaca, debochando da falha de Flavinho.
Minutos depois, o voluntário Henrique, que veio da Rocinha, foi atingido
com um tiro no joelho e desesperou-se:
- Ai, ai, minha perna. Acertaram minha perna, pelo amor de Deus!
Juliano estava encostado na parede de alvenaria de um barraco, sem
saber o que fazer. Tentou recuar, talvez fugir, mas os tiros vinham de
todos os lados. Não dava para saber qual caminho era o mais seguro.
Queria ajudar o amigo ferido, que estava a três metros de distância, caído
na bifurcação de vielas, um lugar vulnerável aos tiros que não paravam.
Juliano gritou para Henrique se arrastar até a parede, mas ele não conseguiu.
Ficou parado e implorou por socorro.
- Pelo amor de Deus, me tirem daqui!
Mentiroso e Flavinho estavam ali perto e ficaram paralisados pela
cena de horror.
- Pelo amor de Deus, parem de atirá que o cara tá morrendo - gritou
Flavinho.
O apelo foi motivo de mais deboche do pessoal do Zaca:
- Tá pensando que isso aqui é jogo de peteca, moleque?
Juliano interferiu para não deixar o moral do grupo cair.
- Flavínho! Melhó tu vazá daqui. O Mentiroso também. Essa não é a
praia de vocês. Rapa fora, rápido!
Um segundo tiro acertou Henrique, desta vez na barriga.
- Eu vou morrê! Eu vou morrê! Me tirem daquiiiii!
Juliano quebrou o sarrafo da cerca de um barraco e se arrastou para
chegar mais perto de Henrique. A menos de dois metros, sempre junto
à parede, ele lançou uma das pontas do sarrafo para o lado do amigo
ferido. Mas o sarrafo era pequeno. Lembrou de um pedaço de corda de
náilon guardado na mochila. A corda era um pouco maior, e alcançou
Henrique.
- Segura firme, que eu vou arrastar você!
Henrique segurou a corda com as duas mãos, e Juliano conseguiu
puxá-lo aos poucos.
- Vamo saí dessa! - gritou Juliano.
Orlando Jogador, que estava na mesma viela, mais abaixo, correu
para ajudar a socorrer Henrique. Juliano tentava erguê-lo para carregá-
lo apoiado ao seu ombro. Desse jeito, com o corpo na posição vertical,
o peso ficou mais bem distribuído, facilitava ser levado por uma única
pessoa. O problema eram os ferimentos, a pressão circulatória de cima
para baixo poderia aumentar a hemorragia, sobretudo do ferimento da
barriga.
- Tem que carregar com o corpo na horizontal. Senão vai perder todo
o sangue pelo buraco da bala - alertou Jogador.
- Me ajuda, me ajuda - pediu Juliano, com dificuldade para o carregar
no colo.
- Vamos descer que o caminho está livre. O apoio está lá no Guerreiro.
Era tudo o que Juliano queria. Socorrer um amigo era um bom motivo
para sair da linha de fogo sem demonstrar que estava horrorizado com a
guerra. O apoio de Orlando Jogador amenizou o medo. Eles desceram o
morro até o ponto onde dois homens ofereciam ajuda. Jogador aproveitou
o apoio para voltar ao combate, Juliano preferiu continuar na operação
de socorro a Henrique até a base do grupo no pé do morro, o Bar do
Guerreiro.
Mentiroso e Flavinho continuaram traumatizados com o impacto das
primeiras cenas de violência em que se envolveram na vida. Já haviam
assistido antes a algumas brigas, tentativas de homicídio e até tiroteios,
mas sempre como observadores. Conheciam muitas histórias de extrema
brutalidade, mas pelos relatos muitas vezes fantasiosos dos amigos ou
malandros mais velhos. Ao entrar para o tráfico, haviam idealizado uma
vida emocionante, com muitas namoradas e conquistas materiais que os
levassem a uma mudança de classe social, por um caminho menos penoso
que o dos trabalhadores comuns do morro. Precisaram se envolver
no primeiro tiroteio para descobrir que o caminho mais fácil era também
extremamente perigoso.
- Aí, tô na maió tremedeira, caralho! - disse Mentiroso.
- Porra, tu viu? A bala tirô um naco do joelho do Henrique. Meu Deus
-disse Flavinho.
- É foda. Eu tô fora - confessou.
- Essa parada não é a minha, mesmo. O Juliano tem razão, Flavinho.
- E tu viu o Juliano, aí. Tu viu a transformação dele? Virô o bicho.
Caiu dentro com tudo.
- O cara vai longe nessa.
- Tomara que tenha vida longa.
- Aí, Flavinho, qué sabê? Caí fora mesmo! Vamo caí fora já já, antes
que seja tarde.
Henrique era o quinto ferido a chegar no botequim, a única conquista
do exército de Cabeludo no primeiro dia de combate. O Bar do Guerreiro,
à margem da Escadaria, era o mais antigo ponto-de-venda de drogas
da Santa Marta e estava sob controle do inimigo desde o início da crise.
Na madrugada da invasão, foi cenário do primeiro confronto. A desvantagem
em número de homens e armas levou a turma de Zaca a recuar
para a parte alta. Manteve os seus homens entrincheirados no Terreirão,
um concentrado de barracos de madeira, a leste, com boa visão de toda
a área da montanha.
De manhã a favela estava dividida, com vantagem estratégica para
Zaca. Ele dominava a região do pico e a divisa leste, enquanto o pessoal
de Cabeludo controlava o sopé e a região central, de maior concentração
de moradores. A maioria das vítimas era do lado de Cabeludo, cinco feridos
e um morto, Júlio, filho do Zeca Açougueiro.
A notícia da morte do filho de Zeca Açougueiro causou um grande
susto na casa de Juliano. A primeira a saber foi Zuleika, que estava
exausta. Ela passara a noite acordada, atenta aos movimentos lá de fora.
Espiava pelas frestas da parede para tentar ver o irmão no meio daqueles
homens que passavam em frente ao barraco, às vezes correndo, às vezes
devagar, cochichando, disparando suas armas. Menos preocupadas, Zulá
e Betinha dormiram parte da madrugada. De manhã, quando cessaram os
tiroteios, as duas foram acordadas por Zuleika, assim que ela soube que
um homem chamado Júlio havia sido morto.
- Acorda, acorda. Acho que mataram o VP!
Zulá não quis sair da cama.
- Quem mandou se meter onde não deve - disse Zulá.
Betinha colocou o vestido de Zulá, que estava pendurado ao lado da
cama, e correu com Zuleika em direção ao local da morte. Não precisaram
chegar lá. No caminho encontraram Juliano. Ele estava descalço,
com a bermuda suja de barro, sem camisa. Tinha a espingarda em uma
das mãos e na outra a camiseta suja de sangue.
- Que sangue é esse, Juliano?
- É de um amigo. Mas está tudo bem.
- Como, tudo bem? Falaram que Júlio foi morto. Pensei que fosse
você, meu filho.
- Está tudo bem, mãe. Mas vaza já pra casa com a Zuleika. E não sai
mais de lá, que vai ficá muito perigoso.
- Mais perigoso, impossível! - disse Betinha.
- Mãe, a guerra tá só começando - avisou Juliano.
- Vim te buscá, vambora!
- Tenho que ficá, mãe. Tenho que fazê isso.
A ocupação da parte baixa do morro deixou os dois principais acessos
sob total controle do exército de Cabeludo. Ele tentou tirar vantagem
disso, impondo restrições ao trânsito dos simpatizantes de Zaca. Era uma
espécie de bloqueio, para evitar qualquer tipo de ajuda ao inimigo. Por
isso, enquanto durou a guerra, a maioria das pessoas teve que faltar ao
trabalho, com medo de passar pelas barreiras dos traficantes de Cabeludo.
O medo teve uma forte justificativa a partir do dia em que Ronaldo
Maldição passou a prender e a interrogar.
Perto do asfalto da rua São Clemente, a mais de 50 metros dos limites
da favela, Maldição usou uma falsa carteira de policial para abordar
quem considerava suspeito de colaborar com Zaca. No terceiro dia de
combate, Maldição chegou a invadir um ônibus para prender um adolescente
que saíra do morro para buscar mantimentos para a quadrilha
inimiga. Pressionado por Maldição, César, o adolescente, confessou que
era da quadrilha de Zaca.
Pouca gente o viu entrar à força num carro, que o levou até o sítio do
Recreio dos Bandeirantes, onde foi submetido a um interrogatório dentro
de um casarão abandonado. O vizinho mais próximo estava a quase meio
quilômetro dali, longe demais para ouvir os gritos. Maldição e alguns homens
sob o seu comando continuaram o interrogatório à beira da piscina
de água suja. Eles queriam saber qual era o barraco que Zaca usava como
esconderijo e onde ficava o depósito de armas dele.
- Agora você vai saber por que eu tenho este nome - avisou Maldição.
A brutalidade chegou à tortura. Enrolaram uma corda no corpo de
César, da cabeça até a cintura, prendendo os braços rente ao corpo, e o
empurraram para dentro da piscina de água suja.
- Bate os pés ou solta a língua, moleque. Parece que tu qué morrê!
- gritou Maldição.
Mesmo depois de ouvir o nome da família que supostamente dava
proteção a Zaca, Maldição levou as agressões adiante. Usou como instrumento
de tortura a longa vara de alumínio, que tinha na extremidade uma
rede presa por um aro. Era um equipamento usado para retirar sujeira da
piscina. Como o rapaz ainda se debatia, Maldição usou a rede para manter
à força a cabeça de César no fundo até o completo afogamento. Antes
de voltar para a guerra Maldição “desovou” o corpo em um terreno da
avenida Sernambetiba.
As informações de Maldição sobre o esconderijo de Zaca levaram
Cabeludo a formar, em sigilo, um grupo com a missão de atacá-lo de
surpresa pela manhã, período em que os homens costumavam descansar.
Da Turma da Xuxa, apenas Juliano ficou sabendo do plano porque o
chefe do seu bonde foi convocado. Orlando Jogador não revelou muitos
detalhes. Disse apenas que a missão exigia o uso de armas menores, de
precisão para curtas distâncias, pois era provável que o confronto fosse
interno, dentro de algum barraco. Para orgulho de Juliano, Jogador deixou
a 762 sob sua guarda.
- Mantenha a posição no Bar do Guerreiro. Monta essa arma para
impor respeito ali na entrada - disse Jogador.
Mentiroso, cada vez mais impressionado com as atitudes e o desempenho
de Juliano na guerra, ao vê-lo armado com um fuzil, não conteve
a curiosidade.
- Você matou alguém? Onde conseguiu esse troço? - perguntou.
- É do Jogador, ele me emprestô pra segurá a barra aqui.
- Aí o cara, ó. Segurando a barra! Teu negócio não é no Leme, não. A
tua praia é aqui, Juliano!
Estava tudo certo para o ataque ao esconderijo de Zaca, não fosse a
linha branca sob o nariz de Cabeludo. O sinal de que o chefe estava drogado
preocupava aqueles que o conheciam na intimidade. Os aliados que
vieram de fora, sem saber das costumeiras extravagâncias de Cabeludo,
estranharam a ordem que ele deu na hora de partir para a missão.
- Minha mina também vai ficá aqui na contenção do QG. Segura aí,
Carlinha.
A namorada de Cabeludo tinha apenas 14 anos, mas parecia ter 10.
Era uma adolescente franzina, a Carlinha do Rodo. Os dois passaram a
madrugada de vigília no quartel-general, o Bar do Guerreiro. Cheiraram
três gramas de pó enquanto passavam óleo de máquina de costura nas
armas de combate.
Uma delas, um rifle Winchester, Cabeludo deu de presente a Carlinha.
E ao meio-dia, hora de partir, escalou-a para o plantão de segurança
do QG. Juliano tentou convencê-lo a mudar de idéia, pois em pé a arma
alcançava o ombro de Carlinha.
- Precisa não, Cabeludo - disse Juliano.
- Tu tá duvidando da capacidade da minha mina, rapá.
- É que tem gente sobrando. A Turma da Xuxa está aqui.
- Turma da Xuxa é o caralho!
Mentiroso interferiu para tentar,sem sucesso,acabar com a discussão
- Está tudo certo, Cabeludo. A gente reforça a segurança e cuida também
da Carlinha.
- Que papo é esse de cuidá da minha mulher, rapá?
- Deixa pra lá, Cabeludo...
- Vou te mostrá quem é essa mina. Senta o dedo nessa porra, Carlinha.
Manda bala!
Dum! Dum! Dum!
Tiroteio era coisa da noite ou da madrugada. Os disparos do rifle
de Carlinha pela manhã no sopé do morro, respondidas lá no alto pelos
guerreiros inimigos, levaram ao pânico os moradores da Santa Marta. E
acabaram com a possibilidade de um ataque surpresa ao esconderijo de
Zaca. Depois de uma confusa reunião de planejamento, movida a cocaína,
Cabeludo resolveu que iria atacar durante a próxima trégua.
Foram duas horas de tiroteio ininterrupto. Com o cessar dos tiros,
Cabeludo, Orlando Jogador e Ronaldo Maldição, à frente de 15 homens,
partiram para o ataque certos de que iriam acabar de vez com o poder
de Zaca. Ao partir, Cabeludo resolveu levar o rifle e deixou uma pistola
automática com Carlinha. Na hora, chamou sua atenção um grande movimento
de carros da imprensa nas ruas de acesso.
- Uh, os carniceiros tão chegando! Deixa chegá perto, não! Caralho,
aí! - disse Juliano aos que ficaram de guarda na base do Bar do Guerreiro.
A partir deste momento a repercussão da guerra ultrapassaria os limites
de Botafogo e do Rio de Janeiro. Pardal e Nem teriam que consertar
muito “chuveirinho” na favela. Os combates de Zaca e Cabeludo virariam
notícia no Brasil e no mundo.
CAPÍTULO 8 A GUERRA
Tem um AR-15, outro de 12 na mão.
Tem mais um de pistola e outro com dois-oitão.
Um vai de Uru na frente,escoltando o camburão,
tem mais dois na retaguarda, mas tão de Glock na mão.
Amigos, eu não esqueço, nem deixo pra depois,
lá vem dois irmãozinho de 762.
Dando tiro pro alto, só pra fazer teste.
(Funk proibido)
Os homens que podiam mudar a vida miserável dos moradores da
Santa Marta naquele ano de 1987 eram seus vizinhos mais próximos. Os
muros do Palácio da Cidade faziam divisa com a favela. Os barracos de
alvenaria e madeira, que cobriam o morro de cima a baixo, eram a única
vista do gabinete do prefeito, que podia vê-los a toda hora, mas que parecia
nunca lembrar de trabalhar por eles. Ao lado da Prefeitura estavam
as duas ruas de acesso ao morro pelo bairro de Botafogo. Os servidores
poderiam levar a pé ou de carro algum benefício aos favelados. Mas o
morro sempre pareceu longe demais para os homens e as máquinas do
município.
Escondidos no coração da região mais rica da cidade, a zona sul, os
moradores da Santa Marta viviam há 53 anos sem uma única escola ou
hospital e sem ter nenhum dos 84 becos pavimentado pela Prefeitura.
Toda a cobertura de concreto dos becos era obra dos mutirões. Desde
1935, início da ocupação, o esgoto corria em grandes valas a céu aberto e
não havia coleta de lixo eficaz. O trabalho de varredura era feito por dez
garis, selecionados pela Associação de Moradores. Mas no ano de 1987
eles não davam conta da limpeza porque mais de 70 por cento das famílias
de 1.560 barracos jogavam o lixo em qualquer área livre ou dentro
dos valões, formando dezenas de pontos de acúmulo de sujeira na favela.
Os outros acumulavam o lixo na frente de suas casas em latões descobertos,
fonte de insetos. A circulação do ar nos labirintos era difícil, e gerava
um fedor permanente que vinha da mistura letal nas valas de esgoto, lixo
e água das chuvas.
Por isso, as chuvas eram desejadas e indesejadas ao mesmo tempo,
pois de um lado empurravam a sujeira para baixo, mas, de outro, espalhavam
a contaminação do solo.
Sem qualquer tipo de combate, ratos e baratas conduziam mais sujeira,
mais doença. Por causa da falta de higiene, os idosos tinham diarréia
crônica e as crianças sofriam das mesmas doenças dos vira-latas: eram
atacadas por piolhos e pela epidemia de sarna. A mortalidade infantil era
duas vezes maior que a vergonhosa média nacional. Morte de bebês subnutridos
parecia não preocupar quem não morava no morro. As crianças
da Santa Marta, como Carlinha do Rodo, precisaram mostrar que podiam
matar para atrair a atenção da cidade.
A cena de Carlinha do Rodo, uma menina de 14 anos, franzina, um
metro e meio de altura, com uma pistola automática na mão, teve grande
destaque na imprensa e causou espanto no país em 1987. Karla Rose Milor
Satyro deixara a casa da mãe, costureira, e do pai, motorista desempregado,
em Santa Teresa, havia pouco mais de um ano, quando ainda
brincava de boneca e falava que um dia iria entrar para a Marinha, como
uma de suas quatro irmãs. Ela foi levada para o morro quando conheceu
um irmão de Cabeludo numa transação de maconha. A família, quando
soube do envolvimento dela com os traficantes, procurou ajuda de terapeutas,
mas não adiantou.
Na favela, a exposição da foto de Carlinha nos jornais revoltou Cabeludo.
O jornal, com a foto na primeira página, chegou a suas mãos no dia
seguinte ao ataque contra o esconderijo de Zaca, que levou à morte seu
antigo parceiro de assalto, Ronaldo Maldição. Cabeludo estava especialmente
bravo porque o corpo do amigo tinha desaparecido. Ele mandou
comprar um jornal lá na banca do asfalto, para saber se o Instituto Médico
Legal já havia tirado o cadáver do morro. Não encontrou nenhuma
informação, a morte sequer havia sido noticiada. O destaque era para as
fotografias de homens com armas de guerra. Afinal, nunca os jornalistas
haviam visto arsenal tão poderoso nas mãos de criminosos comuns, de
um lugar tão pobre e esquecido. Ao ver a imagem de Carlinha da Rodo
em destaque no jornal, Cabeludo achou que tinha sido traído.
- Quero sabê quem deixô fotografá a Carlinha aqui?
- Ninguém deixô, Cabeludo. Nenhum repórter chegou aqui perto -
respondeu Juliano, que continuava de plantão no Bar do Guerreiro.
- Como não? E esta foto aqui, pistola e o caralho!
- Os viados tão usando umas lentes enormes. É um canhão. Parece
um binóculo aquela porra.
- Ah, é? Então vou mostrá pra esses putos que canhão é o caralho!
Manda lá. Paulista.
Paulista, que descansava sentado no banco do bar, não entendeu que a
ordem era disparar a AR-15 em direção aos repórteres. O chefe teve que
insistir para ele apontar o fuzil. Mesmo assim Paulista mudou o alvo na
hora de acionar o gatilho. Levantou a arma e atirou para o alto. Todos os
jornalistas se jogaram ao chão, enquanto Cabeludo gritava, revoltado.
- Canhão é o caralho!
A chegada da irmã de Juliano, esbaforida, desviou a atenção de Cabeludo
dos jornalistas. Zuleika veio contar que sabia onde estava o corpo
de Maldição, mas teve medo de dar a notícia na frente de todo mundo.
Preferiu falar reservadamente com o irmão, sobretudo porque a história
era mais grave do que eles imaginavam.
- Tem dois corpos lá pra cima da Pedra. Um é o do Maldição...
- E o outro?
- O outro é o do Paulo Henrique...
- Que Paulo Henrique?
- O Henrique do Seu João, aleijado da perna, a mãe lava roupa pra
fora, lembra?
- Sei, sei, cego de um olho. E o Maldição?
- Ele foi baleado perto da Mina... A turma do Zaca barbarizou. Furaram
o corpo com faca. Arrancaram um olho dele e jogaram lá dentro do
chiqueiro.
- O quê?
- Os porcos estão comendo o corpo dele.
- Meu Deus! Como o Cabeludo vai dá essa notícia pra família?
Juliano levou a informação ao pessoal da Turma da Xuxa e pediu
conselhos a sua confidente Luz, que também estava ali no Bar do Guerreiro.
- O que fazê, Luz? O Cabeludo tá doidão de pó, dá pra dá uma notícia
dessa não, aí! - disse Julíano.
- Claro que não. Porcos, é demais! E o cara nem teve tempo de curti
o Miura! - disse Luz.
- Porra, é mesmo! Carrão zero, eu vi.
Dois dias depois da morte o corpo foi levado para o Instituto Médico
Legal. Só na manhã do dia seguinte a família tiraria o Miura da garagem
para acompanhar os funerais de Maldição. Júlio, Paulo Henrique, Ronaldo
Maldição, todos os mortos da primeira semana de guerra eram do
exército de Cabeludo. Os correspondentes de guerra mostravam que a
violência era brutal sem explicar direito de que lado estavam os mortos,
nem qual das duas quadrilhas levava vantagem nos combates. Para os
moradores do morro, sobretudo os envolvidos com o tráfico, a impressão
era a de que os jornalistas simpatizavam com Zaca. Raramente os seus
homens eram filmados ou criticados por usar armas de grande porte. Na
verdade, os repórteres registravam a ação de quem estava mais próximo
deles. Salvo exceções, eles conseguiam chegar no máximo até o final do
pavimento das duas ruas de Botafogo que levam à favela. A Escadaria era
o limite. Por isso, como dominavam a parte baixa do morro, os homens
de Cabeludo ficavam mais expostos às câmeras e apareciam nos noticiários
da TV e dos jornais.
Preocupado com a imagem negativa de seu grupo, Cabeludo tirou
um homem do combate e o transformou em assessor de imprensa, em
porta-voz.
- Aí! O chefe qué tirá uma chinfra, mandá uma letra manera!
A voz não era das mais potentes, mas ele compensava com o assovio
agudo para anunciar a hora da entrevista. Os repórteres de TV reclamavam
que o visual não era dos mais adequados. Francisco de Paula Moura,
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