da irmã de criação de Juliano ser presa na fronteira da Bolívia, ele ajudava
Diva a vender cachorro-quente nas ruas, em um carro improvisado
como lanchonete. Morava com o irmão Vico na casa de um primo no
Méier. Os dois queriam voltar ao convívio da mãe Dalva, no Terreiro de
Maria Batuca, mas ambos tiveram medo de aceitar a proposta de guerra.
Eles nunca haviam empunhado uma arma. Mas Careca prometeu, se houvesse
a retomada do morro, entrar para a quadrilha na condição de piloto.
Andava revoltado com o baixo salário de motorista, que o obrigava a
fazer bicos para sustentar os filhos que tinha com mulheres diferentes e
para bancar o seu consumo de pó.
Vico também queria muito que o morro voltasse ao controle dos amigos,
mas deixou claro que sob nenhuma hipótese poderiam contar com
a sua participação na guerra. No bairro do Méier, continuava envolvido
com samba e futebol, mas sem o prestígio que tinha na Santa Marta. Enquanto
aguardava uma chance de ser músico profissional, ainda trabalhava
como auxiliar geral da empresa VS-Boy. No reencontro com Juliano,
os dois discutiram sobre as opções de cada um.
- Até quando tu vai dá uma de otário, parceiro? O que a empresa te
paga não é salário, é condenação à miséria.
- Na boa, Juliano, tô na idéia de ficá na minha, esperando uma chance,
aí.
- A chance tá no morro, Vico. Vamo tomá, parceiro. Tu pode ficá com
a área do samba, do funk, do baile do sábado... é tua área, cara!
- Mas não pego em arma, Juliano... Minha arma é percussão, cavaquinho,
não tem jeito.
- Careca tá pegado, Vico. Agora tu tem que reforçá a do teu irmão,
parceiro.
- Ele tem que se cuidá sozinho. Você também, Juliano... Vocês tão
cheios de vida, bagulho não é só dinheiro...
Vico só concordaria em acompanhar o ataque a distância. Ficaria no
asfalto dando um reforço de retaguarda.
Juliano nem tentou fazer contato com Jocimar e Soni por dois motivos.
Ambos continuavam morando na Santa Marta. Soni dificilmente
entraria para o bonde porque estava envolvido na contravenção, era apontador
de jogo do bicho. Jocimar nunca deixou de ser amigo, mas Juliano
nem pensou em convidá-lo porque desde os tempos da Turma da Xuxa
nunca deixara de ser trabalhador, era vigilante de uma empresa de segurança.
Também não foi atrás de Paulo Roberto porque ele fora preso em
1988, acusado de ter praticado um latrocínio. Os três irmãos dele, Germano,
Galego e Chiquinho, estavam ativos no crime e em liberdade. Mas
Juliano não gostava deles desde os tempos de infância.
No final do dia da convocação geral, Juliano conquistara a adesão de
cinco dos antigos parceiros de turma. E eles tinham motivos diferentes
para aderir ao bonde da retomada.
O motivo do envolvimento de Du tinha um nome: Juliano. O companheirismo
era ainda forte, mantido pela proximidade dele com a família
dos pais adotivos de Juliano. Como morava de favor na casa deles no
Cantagalo, tornou-se muito amigo dos seus “irmãos de criação”, Santo e
Difé, e nunca perdeu o contato com Juliano, com quem viajou algumas
vezes para o Nordeste.
- Um ano e meio na Bahia, Juliano. Comeu quantas? - perguntou Du
ao reencontrar Juliano.
- As mulheres baianas são maravilhosas, cada morena! Mas os homens...
- respondeu Juliano.
Logo que o amigo chegou da Bahia, Du quis saber dos planos dele e
se ofereceu para lutar, embora não gostasse de guerra nem de se envolver
na disputa de poder no tráfico. Não gostava de Zaca por motivos óbvios.
Mas também não tinha grandes simpatias pelo seu principal oponente
em 1991, Carlos da Praça. Por ser duas gerações mais velho, o “tio” de
Juliano nunca se aproximou do pessoal da Turma da Xuxa. Por isso, antes
de querer voltar à Santa Marta, Du estava indo à luta para ter o amigo
por perto.
A vida de Du nos últimos tempos vinha preocupando seu pai. Ele
deixara de ser office hoy para prestar o serviço militar. Cinco anos depois
ainda não tinha conseguido emprego. De 1987 a 1991, fez apenas
trabalhos temporários, às vésperas do Natal. Primeiro como vendedor
autônomo de uma loja de sapatos em Copacabana. Depois virou camelô
de ferramentas contrabandeadas do Paraguai na banca de um amigo no
Largo do Machado.
Cansou de esperar resposta das agências de emprego, onde preencheu
dezenas de questionários para se candidatar a uma vaga em qualquer tipo
de trabalho no comércio, no turismo, na indústria.
Enquanto aguardava uma oportunidade, era avião dos pontos-de-venda
de cocaína gerenciados por Santo e Difé no Cantagalo. A trajetória de
Du como avião tinha sido problemática. Ele se tornara um consumidor
voraz de cocaína, prejudicando seu desempenho na boca. Tinha dificuldades
em manter a necessária disciplina de vendedor de drogas porque
costumava cheirar com a freguesia. A maioria o tratava como companheiro
das baladas de pó e não o respeitava como homem da quadrilha
do tráfico.
Du também se envolvera em confusões por causa de dívidas de consumo
sem limites. Freqüentemente os fregueses tiravam proveito disso para
lesar a boca. Muitos se sentiam prejudicados na hora de pagar a cocaína,
que Du também cheirava, e acabavam reclamando com os chefes do tráfico
ou mudando de fonte. Du só não fora expulso do Cantagalo porque a
boca era protegida por Brava, que gostava dele e o considerava um jovem
solitário e tímido, merecedor de uma atenção maior dos amigos.
Juliano estava ajudando a organizar a estratégia de guerra e de imediato
designou uma função que considerou adequada para o amigo Du.
Como não havia armamento para todo mundo, combinou de deixá-lo desarmado,
apenas para fazer número, impressionar o adversário com um
grupo maior do que realmente era.
Mendonça aderiu ao grupo pelo desejo de retomar o morro, que considerava
patrimônio da família Fumero. O pai, Luizão, motorista de ônibus,
era amigo do velho Pedro Ribeiro, cunhado de Cabeludo, e lutou
secretamente ao lado dele na guerra de 1987. Por causa da derrota, Luizão
fugiu da Santa Marta, voltando dois anos depois com a mulher Neusa
para trabalhar como gari. Mas o filho, já assaltante conhecido, Mendonça,
continuaria jurado de morte no morro sob comando de Zaca.
Nesse intervalo de quatro anos Mendonça tentou formar uma “quadrilha
de nome”, com a esperança de ocupar o espaço deixado por Cabeludo.
Desejara ser elegante como o tio. Depois de um assalto bem-sucedido,
gostava de usar um terno de linho branco para comemorar. Franzino, estatura
média, tinha o nariz avantajado, mas o que mais chamava a atenção
nele eram as cáries que haviam destruído metade dos dentes da arcada
superior. Costumava sorrir sem abrir a boca, pois sabia que isso dificultava
o sucesso dele com as mulheres. Sonhava ascender socialmente, conquistar
amizades no meio da classe média e dos ricos. Mas nesse tempo
só conquistou um amigo “bacana”, Axel, graças ao vínculo dele com sua
namorada Adriana. Jogador de futebol profissional, Axel era casado com
a irmã de sua namorada. Quando tinha dinheiro, Mendonça adorava convidá-
lo para almoçar em alguma churrascaria, onde sempre tirava muitas
fotos da família reunida em volta do craque.
Ganhara mais de 10 mil dólares com a primeira quadrilha que criou
em parceria com o primo Renan. Usavam moto para assaltar, no meio do
trânsito, motoristas donos de carros de luxo. Com a morte do primo, virou
sócio de outro assaltante nômade como ele, My Thor, que comandava
um bando de “clínica gemi”.
Desde 1989, Mendonça e My Thor vinham planejando seus crimes
de uma maneira que evitasse chamar a atenção da polícia. Começaram
roubando lugares não muito ricos, mas que renderam dinheiro suficiente
para reforçar as armas da quadrilha. As primeiras vítimas foram escritórios
de firmas de serviço da zona sul. Depois passaram a atacar postos de
gasolina e estacionamentos na área do Catete, onde tinham amigos que
ofereciam a casa para refúgio rápido no próprio bairro. Por idéia de My
Thor, aplicaram parte do que roubaram no tráfico. Chegaram a gerenciar
juntos os morros Azul, no Flamengo, e o Santo Amaro, na Glória.
Juliano pretendia usar essa experiência de Mendonça na administração
das bocas de cocaína que pretendiam ocupar na Santa Marta. O plano
era convidálo para a gerência da endolação. Mendonça também tinha a
intenção de fixar moradia na favela, era uma de suas prioridades voltar a
viver perto da mãe, Neusa, e da avó, Antonia, mãe de Cabeludo. E ficar
mais próximo da amiga Luz e dos adolescentes da nova geração, como
Tucano, Tênis e Tá Manero, que começavam a se destacar nas ações de
assalto e de “caxanga”, a invasão de residências. Na véspera do ataque,
Mendonça convidou um antigo parceiro da Turma da Xuxa, Vico, a reforçar
o bonde da guerra, embora ele estivesse debilitado pela tuberculose.
Entre os voluntários, só um, Claudinho, não era muito bem-vindo
por Juliano ao bonde, devido à rivalidade dos tempos da adolescência.
Apesar de terem percorrido caminhos diferentes, nos últimos quatro anos
haviam mantido um vínculo involuntário por causa do envolvimento dos
dois com Carlos da Praça. Disputavam uma posição de confiança do atacadista
de pó por caminhos diferentes.
Enquanto Juliano tentara expandir a distribuição na Bahia, Claudinho
não saíra do Rio e aproveitara a influência do chefe para aos poucos assumir
o controle parcial dos pontos-de-venda de drogas de um morro de
Copacabana, a ladeira do Tabajara.
A condição de frente do Tabajara levou Claudinho a reivindicar com
o chefe Carlos da Praça o posto de comandante do bonde. Sabia que Juliano
levava vantagem sobre ele por causa de seu desempenho ousado em
tiroteios do passado. Por isso, para reforçar sua posição no grupo, trouxe
o seu irmão Raimundinho, que, aos 14 anos, já era afoito com uma arma
na mão. Mas quem estava no centro das atenções do chefe Carlos da Praça
era o guerreiro Alen, que levou ao encontro uma proposta que poderia
mudar os planos da guerra. Em vez do uso de armas, Alen achava que
o melhor caminho para retomar o morro era o da diplomacia. Por isso,
nos primeiros dias após a prisão de Zaca em Americana, interior de São
Paulo, ele manteve contato telefônico com o novo homem forte da Santa
Marta, Pituca. Antigo gerente-geral do chefe preso, Pituca fora promovido
por Zaca à função de frente do morro.
Alen vinha tentando convencer Pituca a realizar uma operação inédita
na história do tráfico de drogas do Rio até 1991. Queria convencê-lo a arrendar
a boca, vender o controle de todos os pontos, uma prática comum
entre contraventores do jogo do bicho, mas até então nunca adotada pelos
narcotraficantes.
A favor dos argumentos de Alen havia a insatisfação dos moradores
com a quadrilha de Zaca, evidenciada pelos trabalhos de macumba encomendados
contra ele no Terreiro de Maria Batuca. Zaca chegara a recorrer
à proteção espiritual de um pai-de-santo da cidade de Americana, no
interior de São Paulo. Foi preso justamente quando tentava se proteger
das energias negativas emanadas do povo da Santa Marta contra ele.
As negociações de Alen eram feitas por telefone e carregadas de ameaças.
Ele vinha alertando Pituca sobre o poderio dos guerreiros de Carlos
da Praça, que tinham o apoio de morros amigos.
Avisou que a ajuda estava chegando na forma de armas e de muitos
voluntários do Comando Vermelho. Alertou, como se fosse um conselheiro,
que diante de qualquer resistência, a guerra seria sangrenta e a
vitória de Da Praça, inevitável. Por isso, Alen insistia que a decisão mais
inteligente de Pituca seria admitir a desvantagem e realizar o negócio, ou
seja, sair do morro o quanto antes.
A maioria não gostava do plano de Alen. Achava que a vitória pelas
armas elevaria o moral na hora de assumir o controle da favela. Estavam
seguros de suas forças, devido ao apoio dos homens do Comando Vermelho,
que não paravam de chegar para a guerra.
Os jovens que chegavam dos morros vizinhos tinham em comum um
fator de motivação representado por uma sigla de duas letras, CV, da qual
todos se orgulhavam. A organização criminosa mais conhecida do Brasil,
o Comando Vermelho, vinha recebendo nos últimos anos a adesão em
massa de adolescentes. Nenhum deles tinha algum vínculo formal com o
CV, que desde a sua criação em 1979 nunca teve organização burocrática,
mesmo clandestina.
Alguns traziam consigo pequenos pedaços de papel usados como embalagem
das porções de cocaína postas à venda nas bocas, com a sigla
e o nome da favela carimbados em vermelho. Usavam como se fossem
figurinhas de coleção infantil. Era comum, nos encontros das quadrilhas,
a prática do troca-troca dos papelotes para guardar de lembrança como
se fossem figurinhas.
Nesta reunião no Cerro Corá, estavam sendo trocados papelotes carimbados
do “CV Borel”, “CV Vidigal”, “CV Turano”, “CV Cantagalo”,
“CV Rocinha” e “CV Complexo”, marcas das favelas que enviaram seus
representantes. A maioria era formada por jovens ou adolescentes na faixa
dos 15 aos 22 anos. Eram da terceira geração CV. Foram seus pais,
tios, irmãos e amigos mais velhos que levaram o Comando Vermelho a
conquistar ao longo dos anos 80 o domínio do tráfico de drogas no Rio
de Janeiro.
O pessoal da Turma da Xuxa já conhecia muitas histórias sobre o
poder do Comando Vermelho nas cadeias do Rio. Desde crianças, todas
foram testemunhas da obediência dos criminosos do morro à antiga regra
do CV, a de enviar aos amigos presos parte do lucro dos roubos e a de
providenciar a contratação de advogados para a defesa deles.
Para Juliano, o Comando representava algo mais próximo. Os adultos
que mais o influenciaram na adolescência, Pedro Ribeiro, Paulista, Cabeludo
e Orlando Jogador, tinham orgulho de dizer que ingressaram no
CV quando passaram pela cadeia. Foi Cabeludo quem pela primeira vez
falou a Juliano da existência das duas faces do Comando Vermelho, a de
fora e a de dentro dos presídios.
- Nas cadeias, o CV luta por paz, justiça e liberdade. Nas ruas, quem
é do CV tá no lado certo da vida errada - um dia lhe explicara Cabeludo
durante a guerra, prometendo no futuro apresentá-lo aos chefes da organização.
Os fundadores eram assaltantes experientes, que roubavam bancos,
caminhões de transporte de valores, grandes empresas. Mas a partir de
1982 as primeiras pichações das letras CV sinalizavam a chegada da organização
aos morros para controlar o tráfico de drogas. Durante toda a
década de 1980, não parou de crescer também em outras áreas lucrativas
do crime, como a do seqüestro. Mas foi no comando das drogas no Rio
que se tornou conhecida em todo o país.
Havia uma euforia juvenil na formação do bonde, parecida com a dos
jovens das torcidas organizadas de futebol antes de um grande jogo. Fora
do universo de cada comunidade, apenas os líderes de cada morro eram
conhecidos dos demais. Os soldados do tráfico formavam uma legião de
jovens anônimos que tinha em comum a mesma origem de pobreza e a
veneração pela sigla CV, a única organização criminosa formada exclusivamente
por favelados no Brasil. A maioria sabia pouco sobre a estrutura
do CV. Mas todos se valiam do impacto e do medo que ela despertava,
quando numa ação armada alguém da quadrilha gritava a palavra de ordem:
- É o Comando Vermelho!
A adesão de dezenas de voluntários de seis morros diferentes era o
resultado dos contatos de Carlos da Praça, que já tinha se consolidado
como o principal fornecedor de cocaína dos morros da zona sul, controlados
precariamente pelos homens do Comando Vermelho. Para dar
provas de sua força, tentava convencer os voluntários de que os aliados
da Santa Marta, facção do CV, sempre estiveram unidos e organizados,
apesar de terem sido expulsos da favela. Por isso, nesses momentos decisivos
da formação do bonde, Da Praça impôs uma regra básica da guerra
nos morros, a de que os homens da comunidade mandavam e os de fora
obedeciam. No comando, um único nome:
- Chegou a tua hora, Juliano. Você vai comandá o bonde - disse Carlos
da Praça assim que reencontrou Juliano no Rio de Janeiro.
Juliano ficou orgulhoso com a missão, mas reagiu como se não desse
muita importância ao papel de líder.
- A verdadeira liderança será a nossa união! - respondeu, sem deixar
muito claro que estava concordando com a tarefa.
Mas na hora de decidir a formação do bonde e a tática do ataque, aos
poucos a voz de Juliano foi naturalmente se impondo.
- Vamo nos dividi em três grupos e assumi posição no alto e no lado
direito e esquerdo da floresta - disse Juliano no tom de quem estava dando
uma ordem.
- E a parte de baixo vai ficá sem ninguém? - perguntou Claudinho.
- Vai ficá livre, sim. Para facilitá a fuga dos alemão - respondeu Ju
liano.
- Mas se a polícia invadi por ali? - perguntou Claudinho.
- Deixa subi, nossos inimigos não são os cana, são os alemão.
- E como vai sê a invasão? - perguntou Du.
- Quem vai respondê isso é o Alen.
- Como assim?
- O plano dele tá dando resultado. O Pituca topô vendê o morro.
- Nunca ninguém vendeu um morro. Isso é caô do Pituca! - disse
Claudinho.
- Se fô um caô, aí a gente invade - respondeu Juliano.
Enquanto Juliano fazia a preleção do bonde, Alen, que havia se deslocado
de táxi para a Santa Marta, já negociava diretamente com Pituca.
Passava da meia-noite quando os dois chegaram a um acordo, a venda
dos três pontos da boca por um valor equivalente a 30 mil dólares. Como
prova da boa intenção nos negócios, Alen pagou adiantado uma “entrada”
de 3 mil dólares ali mesmo na favela e combinou efetuar a quitação
pela manhã, condicionada à saída de toda a quadrilha de Zaca do morro.
Um telefonema de Alen anunciando o fechamento do acordo de venda
foio sinal para o bonde partir para a Santa Marta, numa caravana de
cinco Kombis abarrotadas de homens.
Chegaram ao alto ainda durante a madrugada, divididos em três grupos.
O grupo de Juliano ficou ali mesmo e os outros dois entraram na
floresta. Um avançou não mais de dez metros, até a Cerquinha, de onde
podiam ver a movimentação no lado leste da favela. Os outros se posicionaram
no lado oposto, no Beirute. Do alto, a cada meia hora Juliano
acendia e apagava uma lanterna com luz vermelha para manter uma comunicação
visual com seus comandados e deixá-los atentos, aguardando
o desfecho das negociações. Estavam prontos para atacar se Pituca não
cumprisse o acordo. Às seis da manhã, Juliano deu o sinal de que o prazo
para a saída de Pituca havia se esgotado.
Mandou disparar simultaneamente todas as armas que estavam no
alto. Em seguida, ainda com os tiros ecoando, os grupos do Beirute e
da Cerquinha também dispararam para o alto, iniciando a invasão pelas
laterais. Quem acordou com o barulho não saiu do barraco. Os que estavam
na rua, mas perto de casa, procuraram voltar. Muitos seguiram rumo
ao trabalho, descendo os becos com cautela para não serem confundidos
com o inimigo em fuga.
O primeiro amigo dos velhos tempos que encontraram estava quase
irreconhecível de tão gordo. Era o Doente Baubau, que já pesava mais de
100 quilos, embora mantivesse as pernas magras. A enorme barriga, com
a gordura caída sobre o cinto da bermuda, dificultava os movimentos.
Precisava levantá-la com a mão para poder andar mais depressa atrás dos
invasores amigos e anunciar a novidade.
- É o Comando Vermelho, aí! E o novo dono é o Da Praça - gritava
Doente Baubau pelo meio da rua.
Na primeira hora de invasão não houve uma única resistência, mas
Juliano ainda avançava pelo beco do Jabuti com extrema atenção. O destino
era um velho barraco verde da Cerquinha, o único lugar de onde
era possível ter uma visão do DPO, o destacamento da PM. Dali teve a
certeza de que tudo estava aparentemente calmo, sem nenhum sinal de
resistência do inimigo, nem movimentação da polícia.
A repetição de dois breves assovios era a senha. Juliano encostou-se
à parede para aguardar a contra-senha.
- Minha paixão, você voltou? - gritou uma mulher de dentro do pequeno
barraco de madeira e alvenaria.
- Eu não avisei? Eu não disse que eu ia voltá, mulhé - respondeu Juliano
sem esperar que Luz abrisse a porta para recebê-lo.
Luz demorou alguns minutos para vestir a bermuda, uma blusa de
moletom com capuz e abrir as três fechaduras da porta do barraco. Juliano
já a aguardava dentro da pequena varanda com os braços abertos,
sorridente. O abraço longo, apertado, emocionou Luz, que chorou intensamente,
causando estranheza ao amigo.
- Tudo isso é saudade, minha querida? - perguntou Juliano.
- Tu voltô na hora certa, Juliano. Tô sozinha, doente, fodida. Andei
levando uma surra, cara - disse Luz.
- Como foi isso, mulhé? - perguntou Juliano.
- Alemão, alemão...
- Caralho, caralho! Eu quebro esses putos!
- Deixa quieto, por enquanto... Precisamo falá de outra parada. Como
é que é, sentaram o dedo neles?
Ouvi pipoco pra caramba!
- Na chinfra, Luz. Ninguém trocô, saíram de pinote. Mas deve tê nego
entocado aí.
- Vambora... vamo atrás. Posso achá as tocas deles, aí - entusiasmou-
se Luz.
Nos quase quatro anos de afastamento de Juliano, Luz continuou morando
na favela, dividindo o aluguel de um barraco com a sua namorada,
Índia. Mantinha-se com o dinheiro que ganhava como guardadora de carros
nas ruas de Botafogo próximas ao morro. Tinha poucos amigos, porque
a maioria dos homens fora expulso em 1987. Também ficara ainda
mais isolada da família com a perda da mãe, morta em circunstâncias terríveis
havia mais de um ano. No dia do crime, Luz foi avisada pela avó,
que saiu de Jacarepaguá, distante 30 quilômetros do morro, para procurá-
la e dar a triste notícia. As duas foram juntas fazer o reconhecimento do
corpo no local da execução, na favela de Rio das Pedras. Encontraram o
corpo desfigurado por espancamento e sevícia, a língua cortada antes do
fuzilamento. A mutilação era um sinal de que os matadores foram motivados
por vingança. Eles invadiram a casa atrás do pai de Luz, que teria
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