dos moradores da casa, o Careca. Viram o mascarado receber o primeiro
golpe de cassetete na cabeça e Ouviram qual tinha sido a resposta dele:
- Meu irmão sumiu. Não mora mais aqui. Não sei nada dele, juro!
A voz, os gritos e a informação de que era irmão de Careca não deixaram
dúvidas sobre a identificação do mascarado. Os meninos Nem e
Pardal cochicharam entre si, já se afastando do grupo de policiais.
- É o Vico, cara! - disse Pardal.
- Tu ouviu? Os homi querem pegar o irmão dele, o Careca - disse
Nem.
- Temo que voá pra avisá o pessoal da boca.
Os policiais haviam prendido Vico porque desconfiaram do fato de
ele e o irmão Careca terem voltado a morar no morro justamente na mesma
época em que a quadrilha formada por seus amigos estava assumindo
o comando do tráfico. Também despertara suspeita o ferimento que ele
tinha na barriga. Havia menos de um mês Vico tinha sido baleado ao reagir
a um assalto dentro de um ônibus na avenida Brasil.
- Qual foi a parada? Entrega, que a gente alivia, rapá! - exigiu o policial.
- Não devo. Vocês não vão conseguir nada comigo, nada. Nada - respondeu
Vico.
- Papo de vagabundo, rapá. Alguém te perguntou se deve ou não
deve?
A atividade de Vico no morro também despertara suspeitas. Logo que
assumiu a gerência, Juliano convidou Vico a criar um baile de “funk romântico”
no barracão Ases da Lua, que fora abandonado pela quadrilha
de Zaca. E também ofereceu a ele a administração dos tradicionais bailes
de sexta-feira à noite na quadra da Escola de Samba. Tudo para convencê-
lo a se tornar uma espécie de gerente cultural da boca.
- Tu é o cara, Vico. Tu tem que apoiá a cultura do morro. A rapaziada
precisa desse agito. E tu precisa aprendê a ganhá dinheiro com isso aí -
disse Juliano no dia em que conseguiu convencê-lo a fazer parte da quadrilha,
sem o compromisso de pegar em armas. O irmão Careca também
voltou a morar na Santa Marta e passou a fazer esporadicamente tarefas
de “avião” fora do morro, como motorista.
Careca estava com Cristina dos Olhos na casa da namorada de Vico,
Marilene, quando ouviu os gritos do espancamento vindos da área de
venda dos vapores, o corredor do beco da Dona Virgínia.
Só teve certeza de que a vítima era o seu irmão quando os meninos
aviões levaram a notícia aos principais esconderijos da quadrilha. Quis
sair às ruas para socorrê-lo, mas foi convencido a ficar em casa. A pres
são das crianças e de Marilene seria mais eficaz.
O namoro tinha o tempo do retorno de Vico ao morro, oito meses de
muita diversão, com encontros diários nas ruas e nas festas que ele preparava
nos fins de semana. O romance sem compromisso só se tornou mais
sério porque os dois foram surpreendidos pela gravidez, descoberta havia
cinco meses. A barriga de Marilene já estava saliente e ela achou que
pudesse convencer os policiais a não baterem no futuro pai de seu filho.
As vizinhas de Marilene seguiram atrás e levaram as crianças pequenas
para ajudar a pressionar. No caminho, passaram na casa da madrinha de
Vico, Tia Eda, mãe do falecido Renan, que estava na cozinha preparando
o jantar. Tia Eda deixou a comida no fogo, saiu apressada, descalça, e se
juntou ao grupo para pedir clemência ao afilhado.
Ninguém passaria da barreira policial, que mantinha as pessoas afastadas
mais de 100 metros dos que levavam Vico morro acima, na direção
do Tortinho. Os meninos olheiros Nem e Pardal, quando conseguiam driblar
as barreiras, traziam notícias cada vez piores para quem acompanhava
de longe.
- Tão arrastando, tão arrastando.
- Tem rastro de sangue no caminho!
- Tão falando em quebrá!
Já era noite quando uma testemunha viu os policiais mandarem Vico
arriar as calças e, em seguida, obrigá-lo a correr para escapar dos tiros,
prática muito comum entre matadores profissionais.
- Foge, rapá. Foge.
Os policiais sumiram com Vico pela mata do lado direito da floresta,
perto da rua Mundo Novo.
Um menino encontrou o corpo no dia seguinte, quando procurava a
bola de futebol perdida. Tinha parte dos dentes quebrados, fratura no
pescoço, afundamento na cabeça. Estava ao lado de um latão furado de
bala. O presidente da Associação de Moradores, Zé Luis, e Juliano impediram
que Marilene chegasse perto para protegê-la de ver o namorado
naquele estado. Ela concordou, para evitar um trauma ainda maior. Pela
primeira vez Marilene pensou com tristeza no futuro de Andrezza, nome
escolhido por Vico no dia em que soube que ela estava grávida de uma
menina.
No início de 2003, Marilene continuava morando na Santa Marta
com a filha. Aos 10 anos de idade, Andrezza tinha um sorriso idêntico ao
do pai que não chegou a conhecer. Juliano e Zé Luis também tentaram
impedir que Careca chegasse perto, mas não teve jeito.
Mendonça, Du, Rico, os amigos mais antigos da Turma da Xuxa, já
estavam ao lado dele na hora. Revoltado por ter constatado o que o irmão
havia sofrido, Careca fez uma exigência, aos prantos, falando alto para
todo mundo ouvir.
- Vocês me botaram nessa. Agora vão pô um fuzil na minha mão, que
eu quero me vingá!
A execução de Vico assustou os meninos mais novos. Espinho e PC,
dois dos três irmãos de Nem que já prestavam eventuais serviços de venda
de drogas, sumiram algumas semanas da área da boca. E a mãe, Sueli,
doméstica diarista na Barra da Tijuca, passou a pressioná-lo a procurar
emprego no asfalto.
Aos 13 anos de idade, a única experiência profissional de Nem tinha
sido na função de entregador de remédios de uma farmácia de Botafogo.
O patrão pagava meio salário, o equivalente a 30 dólares mensais, e se
negava a assinar a carteira do Ministério do Trabalho, o que poderia lhe
garantir uma pequena poupança por tempo de serviço. Só depois de virar
olheiro conseguiria ganhar o suficiente para comprar uma cafeteira elétrica,
que deu de presente para a mãe.
Naquele ano de 1991, Nem estava batalhando uma vaga em duas das
maiores empresas de Botafogo, ambas estatais. Em uma delas, na Furnas
Centrais Elétricas, chegou a se candidatar a uma vaga de auxiliar de escritório.
Ele disse para a mãe que fora reprovado por ter tirado nota baixa
no índice moradia.
- Quando eu respondi na entrevista que era favelado, fudeu, aí.
Mas o que Nem mais desejava era trabalhar na Associação Atlética
Banco do Brasil, que já dera as boas-vindas para outros meninos favelados.
Ele queria seguir os passos do amigo Rogério, que no morro era
conhecido por Tênis. Era três anos mais velho e desde os 10 trabalhava
como gandula das quadras de esporte da Associação.
- Quebra essa pra mim. Vou falá pra tu: eu nunca saí do morro pra
trabalhar num lugar bacana.
Ruma um trampo lá no Banco do Brasil. Ruma? - pediu Nem.
- Catá bolinha é foda, tem que corrê o tempo todo. E tu com esse
problema de feridas no pé... E o salário, se compará com a grana que tu
ganha no tráfico, é brincadeira, aí - explicou Tênis, na primeira vez em
que Nem pediu que ele o ajudasse a conseguir uma vaga na Associação.
Nem queria ser catador de bolinha de tênis, sem saber dos problemas
que o amigo enfrentava.
Durante dez horas por dia, Rogério carregava um balde cheio de bolas
de camurça, recolhidas ao redor das quadras. Sua função era correr
atrás delas e devolvê-las aos atletas funcionários do banco.
Com 17 anos, para reforçar o salário ridículo, depois do expediente
na Associação, Tênis corria no final de tarde para pegar bolinhas também
no clube lobinho, de Botafogo. Nos intervalos dos jogos, de tanto praticar
com as raquetes emprestadas, tornouse um jogador dos mais brilhantes
do Banco do Brasil.
O pessoal baba na minha raquete - costumava dizer Rogério na roda
dos amigos.
Ganhou o apelido de Tênis quando virou office-boy da empresa Eternelle
Ao descobrir suas habilidades com a raquete, o patrão contratou-o
também como professor particular, exclusivo. Mas o salário...
Nessa época, Tênis já estava sendo influenciado pelos amigos mais
velhos da favela a buscar uma renda maior pela via do crime.
No ano de 1991, os dois mudariam suas vidas. Ténis entrou para uma
quadrilha de assaltantes, liderada por Tá Manero. E Nem, com apoio do
amigo conseguiu uma curta experiência como catador de bolinhas do
Banco do Brasil. Ambos não deixariam de imediato as suas atividades
anteriores.
Meses depois, no verão de 1992, um episódio na área do Congresso
Mundial do Meio Ambiente mudaria o destino da dupla. Sem ser informado
de que o Rio de Janeiro estava Policiado como nunca para garantir
a segurança da ECO-92, Tênis recebeu um convite para fazer parte do
bonde de Tá Manero.
- A parada é um banco no Centro, que tá dando mole, aí. É chegá e
levá. Vai ou não vai?
Aceitou no ato. Além de Tênis e Tá Manero, mais dois homens es
tavam no bonde quando o carro foi abordado pelos Policiais que faziam
uma das operações preventivas do Congresso Mundial.
- Senta o dedo, Tênis. Senta o dedo - gritou Tá Manero quando percebeu
que os Policiais deram ordens para parar o carro.
- É comigo, aí - gritou Tênis, já disparando a pistola automática.
No tiroteio, um dos homens do bonde foi morto e um policial ficou
ferido com gravidade. Tá Manero e Tênis foram presos em flagrante,
acusados por formação de quadrilha, porte de arma e tentativa de homicídio.
Tá Manero conseguiria fugir da cadeia dois anos depois e voltaria
a viver clandestinamente na Santa Marta. Mas Tênis, na época com 18
anos de idade, passaria toda a sua juventude atrás das grades.
- Essa porra da ECO-92 me levou para a faculdade do crime, aí. Passei
pelas cadeias da décima, décima quarta, Bangu, Polinter, Piragibe e
quando eu completei cinco anos de sofrimento falei assim: tô formado
- disse Tênis quando voltou à liberdade em 1998.
Sem o apoio do amigo, meses depois, Nem desistiria da sua “fase
de experiência” nas quadras de tênis, sua última tentativa de conquistar
a assinatura de um patrão na sua carteira de trabalho profissional. Nem
voltaria ao tráfico e para ficar para sempre.
CAPÍTULO 15 DOUTOR OBSÉQUIO
O relógio de Juliano circulava na favela com a confiança do crédito de
um cheque administrativo. Era um modelo redondo de fabricação japonesa,
à prova d’água e de choque, com função de cronômetro e que acendia
uma luz verde se um pequeno botão de aço da borda fosse pressionado.
Sem dinheiro, mas com o relógio nas mãos, as crianças pagavam lanche e
refrigerante nos botequins e as mulheres trocavam por mantimentos nos
pequenos mercados. Também era garantia de empréstimo ao portador
para a compra de qualquer objeto de casa. Para o credor fazer a cobrança,
bastava procurar a boca e apresentar o relógio ao seu dono. Juliano
liquidava a dívida.
No primeiro ano na gerência da boca, além de fiador, Juliano foi uma
espécie de diplomata. Dialogava com as lideranças do morro, ouvia as
queixas dos jovens do samba, contava longas histórias para os mais idosos,
brincava de empinar pipa com as crianças, visitava as creches, rezava
nas duas igrejas católicas, freqüentava terreiros de umbanda, participava
de algumas mesas de carteado e adorava estar disponível para atender
aos diversos pedidos da comunidade, sobretudo quando eles vinham das
mulheres a quem confiava com mais freqüência o relógio que ele dizia
ser idêntico ao de Che Guevara.
A função de Claudinho na gerência era logística. Apesar de eventuais
confrontos com a polícia, mantinha de forma tranqüila o esquema de
corrupção, que garantia o movimento dos pontos-de-venda e a convivência
relativamente pacífica com os soldados da PM. Praticava a teoria do
dono do morro, que orientava seus comandados a não combaterem a polícia,
mas sim tentarem comprá-la. Claudinho também chamava atenção
por causa do grande número de namoradas. Costumava chamá-las pelo
mesmo nome, “Única”, para não correr o risco de errar seus nomes. Era
generoso com elas. Os objetos que os consumidores trocavam por cocaína
na boca geralmente mandava guardar para sempre nas casas de suas
únicas namoradas.
O irmão de Claudinho, Raimundinho, era o feio e o malvado da gerência.
Adorava expor as armas em público como forma de impor um
poder mais ostensivo. Interferia com violência nas brigas e nas desavenças
que encontrava nas ruas e nos botequins. Dentro da quadrilha, se responsabilizava
pelo controle da disciplina imposta pelo trio da gerência.
Dos três, era o que mais executava as ordens do patrão Da Praça, que
morava longe da favela, na Região dos Lagos, litoral norte do estado. Era
Raimundinho quem aplicava o sistema perverso de punição, os temíveis
tribunais CV.
Os tribunais do Comando Vermelho eram, nos anos 90, uma prática
comum em várias favelas do Rio de Janeiro, mas nunca haviam sido aplicados
na Santa Marta. O primeiro julgamento teve como palco uma área
movimentada, no lado oeste da parte baixa do morro, o altar do Cruzeiro,
que Juliano mandou reformar em memória do amigo assassinado, Vico.
Em dia de sol forte, muita gente de passagem parava ali para aproveitar
o ar fresco da sombra do pé de manga. Também era ponto de encontro de
religiosos, que rezavam à frente de uma cruz branca de madeira de três
metros de altura, coberta com duas linhas de lâmpadas. Ao pé da cruz
havia um canteiro de flores e um pequeno e estreito palco de alvenaria,
cercado por grades de ferro, inicialmente reservado para as velas e oferendas
dedicadas a Vico. A única parede do altar, encostada a um barranco,
era de mármore branco, onde Juliano mandara gravar em baixo-relevo
a oração das 13 almas benditas. Se um dos três gerentes estivesse na
área era recomendável aos passantes cumprir o ritual de reverência: olhar
para o altar e fazer o sinal-da-cruz no peito ou na testa, sob pena de levar
uma bronca e, às vezes, até ameaça de agressão.
- Aí, fiquei bolado com o desrespeito. Que que há, não vai pedi a
bênção? Então sai de pinote, sai de pinote... - ameaçava Raimundinho
quando flagrava alguém passando pelo Cruzeiro sem cumprir o ritual
religioso.
O piso de concreto, construído à frente da grande cruz, estava tomado
pelos curiosos para ver as cenas do tribunal. A acusação era de roubo de
parte do estoque de cocaína do barraco da endolação durante a produção
das embalagem dos sacolés. Um fato considerado grave, pois não havia
hipótese de que o ladrão fosse de fora do morro. Não houvera invasão do
barraco do responsável pela endolação, Marco Ferrô.
Raimundinho fizera pessoalmente uma vistoria. Como encontrara
portas e janelas intactas, deduzira que os suspeitos eram os jovens da
própria quadrilha.
A desconfiança se concentrou em Fabrício e Jairzinho, que passaram
a madrugada preparando o pó amontoado sobre a mesa, com uma minúscula
colher de aço, para a produção de sacolés de um grama de volume.
Eram 400 gramas de cocaína, conferidos no inicio do plantão pelo gerente
da endolação, Marco Ferrô, que também estava sob suspeita. Raimundinho
começou o interrogatório pressionando-o a confessar.
- Aí, tava na tua responsa. õ! Tu deu mole e eles te fizeram de otário
ou foi tu mesmo, mermão.
Por uma ou por outra, tá contigo, Ferrô. Confessa que eu alivio a tua.
Senão, aí, tu vai tê que pagá!
O trabalho deveria gerar 400 sacolés, quase seis cargas completas, e
não cinco como produziram. Alguém teria que explicar o sumiço de 50
gramas, a quebra da produção de 50 papelotes.
O primeiro acusado, jairzinho, assumiu diante de Raimundinho parte
da culpa. Confessou ter desviado duas colheradas de pó, do monte da
mesa direto para as narinas. Jurou que isso fora tudo que desviara. E
que não se afastara nem um minuto do trabalho. Evitou acusar os outros
parceiros de endolação. Em sua defesa, pediu para ser ouvida uma testemunha
de grande credibilidade na boca, a miga confidente de Juliano,
Luz, que tinha livre circulação por todos os pontos reservados, inclusive
a área ultra-secreta da endolação.
O depoimento de Luz foi ouvido em silêncio pela platéia, que sabia
da importâcia que tinha para a definição da sentença. Atraídos pela gritaria
ameaçadora de Raimundinho com os réus, cada vez mais curiosos
paravam para saber o que estava acontecendo ou para ajudar os acusados
a provarem inocência. Apesar de provocar a irritação de Raimundinho,
Luz defendeu Jairzinho e Fabrício.
- Eles tramparam sem pará, na maior responsa. Eu tava colada, de
olho, não dei mole. Firmeza essa rapaziada, podes crê! Pergunte pro irmão
Kevin. Ele tava lá evangelizando a endolação.
Ao chegar ao morro em fevereiro de 1992, o missionário evangélico
Kevin Vargas acreditava que a falta de uma religiosidade empurrava os
jovens da favela para o tráfico. Criado numa família de classe média, aos
21 anos, acabara de prestar o serviço militar na Academia dos Fuzileiros
Navais. Influenciado pelo avô, militar aposentado, pretendia seguir carreira
de pára-quedista e atuar nos grupos especializados em missões de
selva. Por três anos Levou a sério os treinamentos de guerra, chegou a se
especializar em tiro de alta precisão e sonhava em um dia usar seus conhecimentos
bélicos para guerrear em defesa do país ou de uma causa.
A vida monótona de caserna o decepcionou. Influenciado pelos amigos
da Jocum, a entidade evangélica Jovens Com Uma Missão, Kevin
descobriu que a carreira militar o isolava da realidade, representava distanciamento
das questões sociais do Brasil. De repente os evangélicos o
convenceram de que, para quem convivia com a violência da guerra de
classe social, não havia sentido tornar-se um fuzileiro especialista em
batalha militar convencional. Em vez de esperar o futuro, como morava
no bairro do Maracanã, bastava andar alguns quarteirões e subir algum
morro para começar a viver em missões de guerra, de uma guerra de
classe. Foi o que Kevin fez ao deixar o exército. Virou socorrista voluntário
da Cruz Vermelha Internacional nas áreas de conflitos da cidade.
Passou a entrar nas favelas vestindo uma camiseta que tinha uma enorme
cruz vermelha nas costas. Salvou a vida de muitas pessoas feridas, entre
elas alguns criminosos. Um ano de missão o deixou marcado pelos matadores,
que o ameaçaram de morte. Kevin deixaria de usar a camiseta
da entidade por medo de que a cruz nas costas virasse alvo de alguma
arma, mas continuaria socorrista voluntário até virar missionário da igreja
evangélica.
Com 22 anos, Kevin trocou o apartamento confortável onde morava
com a mãe pelo barraco alugado pela Jocum na área do Cruzeiro, onde
estavam acontecendo os primeiros tribunais da Santa Marta.
A prioridade da Jocum na favela era levar mensagens de fé aos jovens
que haviam entrado para o tráfico. Para facilitar a aproximação e serem
aceitos na comunidade, os evangélicos criaram no morro um serviço de
extrema necessidade. Transformaram abarracado bar “Os Caídos” rio setor
Cruzeiro, em um ambulatório de primeiros socorros médicos. Logo
nos primeiros dias de funcionamento, o plantonista Kevin Vargas - que
apreendera as técnicas de enfermagem na Academia de Fuzileiros - foi
chamado às pressas pela gerência da boca.
Juliano o recebeu com o fuzil Jovelina atravessado no peito. Os dois
andaram pelos becos até sentarem sobre a raiz de uma árvore na área da
Pedra de Xangô.
- Aí, tu que é o tal de irmão? - perguntou Juliano ao recebê-lo na
boca.
- Sou eu mesmo, sou da Jocum - respondeu Kevin Vargas.
- Que barato é esse? Parece torcida organizada de futebol... Qual é a
de vocês? - perguntou Juliano.
- Jovens Com Uma Missão. Queremos levar o evangelho para quem
mais precisa de Jesus, para quem não tem motivo para ter fé na vida e que
corre risco de morte, como vocês - respondeu Kevin.
- Que palavra feia. Fale isso aqui, não. Nosso desenrole é pra vivê na
boa, uma vida invocada mesmo. E que igreja é essa, mermão? Tu abre
o olho que esse esporro é de padre católico. Põe na idéia o padre Hélio,
põe na idéia o padre Velloso, põe na idéia Dom Hélder Câmara... eles
brigaram muito, muito contra quem gosta de esculachá favelado - disse
Juliano.
- Nossa missão é de paz, queremos somar, é o evangelho com preocupação
social, essa é a nossa.
- Tá manero. Vamo trocá uma idéia... o povo aí já queria te enquadrá,
sabê qualé a de vocês... E aí?... e o teu pensamento sobre drogas? - perguntou
Juliano.
- Não acho que seja a única saída pra quem é marginalizado como
vocês. Acho que há outros caminhos... - respondeu Kevin.
- Já sei, tu vai falá na palavra de Deus pra rapaziada rapá fora e assim,
aí, tu não vai fortalecê lado nenhum.
- Mas você sinceramente acha que o tráfico é a solução?
- Acho não. Mas tu qué o quê? Convencê essa molecada a sê pedreiro,
encanador, lixeiro, porteiro, tapete pra bacana pisá em cima? No tráfico,
parceiro, já dá pra tirá uma chinfra com as mina, pôr um pisante legal,
tirá uma onda...
- Respeito a tua posição. Mas sou contra, é risco demais pra molecada.
Nós temos que oferecer algo melhor, uma palavra de amizade, de fé
num Criador que um dia vai trazer a justiça pra Terra...
- Vai na tua, irmão, sem idéia sinistra pra ficá no conceito aí da ra
paziada. Depois do entendimento com a gerência, Kevin Vargas foi aos
poucos conquistando a confiança do pessoal da boca. Meses depois, as
constantes conversas com Juliano o habilitaram a ter livre circulação para
levar a leitura da Bíblia aos homens com atividade armada. Passava boa
parte da madrugada em companhia dos olheiros de plantão nos pontos
estratégicos de observação. Demorava-se mais nas áreas secretas e mais
visadas da quadrilha, como o esconderijo da endolação, onde o pessoal
trabalhava sob tensão e medo permanentes.
Kevin dedicara especial atenção à evangelização de Marco Ferrô, o
chefe da endolação, parceiro e seguidor do estilo truculento de Raimundinho.
O principal auxiliar de Ferrô, Cássio Laranjeira, também era considerado
caso preocupante pelo pequeno respeito à vida que já revelara
durante os confrontos armados de que participara. Os dois já começavam
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