- Tô pra receber uma carga manera e aí nós paga. E, sacumé, tem a
garantia do Da Praça. Ele é ponta firme, tem um monte de polícia fortalecendo
a dele e ele a dos cana, tá ligado?
- Abre o olho, mané. Acerto é acerto. Nós vamos te buscar no inferno.
- Tem essa, não... tem essa.
Liberado das algemas, Juliano pediu ajuda para ser posto numa cadeira
de rodas, com cuidado para não romper o tubo que conduzia o soro
para as veias. E, como foi acertado, os policiais o acompanharam pelos
caminhos de saída da favela como se ele estivesse detido. O medo era o
de ser abordado por algum policial militar que desconhecesse o “acerto”
e pudesse prendê-lo.
O advogado foi à frente, levando duas sacolas cheias com os pertences
de Juliano. O carro que iria tirá-los dali estava estacionado na rua
mais próxima da favela. Na hora em que eles já arrumavam as bagagens
no porta-malas foram surpreendidos pelo cerco de um grupo de investigadores
que estava infiltrado na favela, também à procura da clínica
clandestina.
- É a polícia. É a dura. A casa caiu, rapá - gritou um policial ofegante,
certo de que estivesse prendendo em flagrante Juliano e vários traficantes.
- Péra, péra! O flagrante já é, aí. Fala com teu parceiro. No sapatinho...
-disse juliano, numa tentativa de esclarecer que já fora preso e
liberado pelo “acerto”.
Houve uma gritaria, empurra-empurra entre os dois grupos de policiais
na disputa do direito de prender Juliano. Chegaram a apontar armas
uns contra os outros.
Depois de uma rápida confusão, os policiais que chegaram por último,
que trabalhavam na delegacia da área da favela, pediram desculpas
aos colegas investigadores. Mas não perdoaram Juliano.
- Aí! Tu tá liberado, não. Tu troca com os cana, tá pensando o quê?
Pode pôr uns dólares aqui na mão, rapá.
- Tem essa, não. Teu parceiro tá pegado na grana. Dá uma idéia com
ele lá, que eu tô no pinote.
Vambora, doutor! - disse Juliano já de dentro do carro, enquanto o
advogado arrancava rápido sem se render às ameaças do policial, que
ficou esbravejando na calçada.
- Um dia eu te quebro, rapá!
Débora foi pontual. Às sete horas da noite, como havia combinado,
já estava com o carro estacionado em frente ao Shopping da Gávea,
acompanhada por alguém que, à distância de cem metros, não dava para
saber se era homem ou mulher. Juliano chegara meia hora antes para
fazer o levantamento da área. No bar, enquanto tomava um refrigerante,
vira que não havia carros da polícia no trânsito nem nada de anormal no
serviço de vigilância do shopping. A área estava repleta, como sempre,
de homens de terno preto das empresas que prestam segurança em locais
freqüentados pelos ricos. A única coisa intrigante estava dentro de carro
de Débora, que viera para o encontro acompanhada. Juliano resolveu
checar mais de perto.
Apoiou-se numa bengala porque ainda não estava totalmente recuperado
das cirurgias e da atrofia em um músculo da perna direita atingida
por um tiro, e saiu do bar. Aproximou-se a pé, pela calçada oposta, e a
cinqüenta metros do carro já dava para saber que havia uma mulher ao
lado de Débora.
- Oláááá! Não acredito, não acredito que você tenha vindo, que você
esteja aqui! - disse Débora, sorridente, já abrindo a porta, saindo do carro
para abraçá-lo. Juliano respondeu sem entusiasmo, parado na calçada,
sério:
- Oi, algum problema? - disse secamente, com as duas mãos no bolso
da calça jeans.
Débora continuou entusiasmada. Beijou duas vezes o rosto de Juliano
e o convidou a entrar no carro.
- Venha, venha, quero te apresentar a minha irmã, Valéria.
Juliano entrou pela porta traseira e demonstrou inquietude ao ser apresentado
a Valéria. Olhou para os lados, olhou para trás, em silêncio...
- É a minha irmã mais velha, Juliano. Eu havia te dito que eu sou a
caçula da família...
- Caçula precisa de segurança, é? - perguntou Juliano, cada vez mais
sério.
- Como assim, Juliano? Minha irmã veio passear comigo, tenho falado
muito em você... ela queria te conhecer.
- Conhecer... Tu tá é cabrera comigo, Débora. Medo de maldade, querendo
saber qualé a do monstro da favela, é ou não é? Com segurança ao
lado, tô fora! Vaza daqui, me deixa lá em Botafogo.
- Não é assim, não, Juliano. Não estou entendendo qual o problema
de você conhecer minha irmã? Eu, hein?
Juliano não respondeu. Débora partiu em direção a Botafogo, sob
pressão dele, que exigia velocidade maior. Continuava desconfiado,
olhando para trás. Achava que estava sendo seguido e insistia, a toda
hora, para Débora acelerar ainda mais. A ansiedade dele acabou deixando
as duas irmãs nervosas, tensas. As duas se assustaram ao ver as luzes
coloridas piscantes que identificaram o carro da Polícia Militar parado
na rua Jardim Botânico, embaixo do viaduto de acesso ao túnel Rebouças.
Débora girou o volante de forma brusca para fazer uma manobra de
retorno, proibida naquele ponto. Queria evitar passar perto da viatura
policial. Alguns motoristas tiveram de brecar e por pouco não bateram
no carro de Débora, que subitamente invadiu várias pistas, obstruindo o
fluxo do trânsito.
- Tu tá maluca, mulhé! Desse jeito tu tá me dedurando pros homi. Tu
não viu, não, o camburão?
Pára já, vou vazá. Vocês querem me ferrá.
Juliano abriu a porta com o carro ainda em movimento e, assim que
Débora parou, desceu e fechou a porta com uma batida forte.
- Some, porra!
Meia hora depois, Juliano estava chegando ao pé do morro. Ele usava
o aparelho celular para telefonar para Luz e saber dela se a subida da
favela estava livre. Recebeu uma informação preocupante.
- Tem uma figura estranha na área perguntando por você. Te cuida
- disse Luz.
- Homem ou mulhé? - perguntou Juliano.
- Mulhé, uma morena, cabelos longos. Os moleques tão dizendo que
é uma gostosa. Deve sê alguma das tuas piranhas.
Apesar da resistência da irmã, Débora estava decidida a ter uma conversa
definitiva com Juliano.
Dirigiu até a praça Corumbá, no acesso ao morro. Desceu ali e a irmã
seguiu com o carro. Chorou enquanto subia a rua Jupira até o largo do
Cantão, onde parou ao lado de um poste para esperar pela chegada de
Juliano. Havia muita gente passando e jovens conversando, parte deles
olheiros da boca.
Alguns aproximaram-se para tirar informações dela.
- Posso ajudar? Procurando alguém? - perguntou um menino enviado
por Du.
- Obrigado. Estou esperando um amigo, que vai chegar, já já - respondeu
Débora.
- É do morro? Qué que eu suba para avisá lá no barraco dele?
- Obrigado, ele está chegando da rua, o Juliano. Você conhece?
- Juliano? Tem certeza?
O menino correu rápido para informar Du, que ficou desconfiadíssimo
e mandou avisar toda a quadrilha que estava reunida com Raimundinho
ali perto, no Cruzeiro.
- Isso é aplique. Levanta essa mina, cuidado que pode ser cana... Traz
já pra cá que eu dou o aperto - ordenou Raimundinho.
Quando Juliano chegou a pé ao Cantão Débora já estava cercada pelo
bonde de Du, que tentava convencê-la a subir sem precisar do uso da força.
Ele cutucou a bengala nas costas de alguns meninos para afastá-los
de perto dela.
- Qualé o caô, rapaziada? - perguntou Juliano.
- Essa mina, aí. Tá falando o teu nome... Raimundinho mandô arrastá
pro Cruzeiro, aí - respondeu o menino olheiro.
- Arrastá, o caralho! É mina chegada. Área! Área! - gritou Juliano,
gesticulando com a bengala para o pessoal se afastar.
Débora não se abalou. Em nenhum momento percebeu que corria
risco, achou natural a curiosidade dos meninos e dos jovens, sobretudo
porque nenhum deles havia agredido ou feito alguma ameaça, principal
preocupação de Juliano.
- Alguém te machucou? Pode falá. Alguém abusô? - perguntou Juliano.
- Não, não. Me bombardearam com perguntas... só isso.
- É. O pessoal é curioso. E tu é bem maluca, hein? Tu pensa o quê?
Que pode invadi assim na moral? O morro é casa de mãe Joana não, aí.
- Você invadiu a minha vida sem pedir licença. Resolvi invadir a sua
do mesmo jeito - disse Débora.
- Aí a mina, aí. E a tua irmã, tá onde, a mulhé? Vou mandá um moleque
te acompanhá até o carro de vocês...
- Ela já foi embora.Dispenso a tua ajuda. Sei cuidar de mim, falou?
A briga no carro, que para Juliano acabara havia minutos, agora pare
cia não ter existido. Gostou da atitude surpreendente de Débora e estava
de novo interessado em namorar com ela. Preocupado com a exposição
numa área de grande movimento, Juliano a convidou para conversar num
lugar mais seguro, que iria escolher quando estivessem subindo o morro.
Explicou que, por motivos de segurança, ia subir antes dela e, minutos
depois, um grupo liderado por Du a levaria ao seu encontro.
- Seguinte, vamo conversá mais ali. Se a polícia te barrá no caminho,
diz que você é a nova psicóloga da associação e vai encontrá um pessoal
lá.
A subida exigiu esforço de Débora, que às vezes aceitava o apoio de
Du. Ele ia logo à frente dela e às vezes a puxava pela mão ou a segurava
pelo braço para que não perdesse o equilíbrio nos lugares esburacados ou
mais escuros. Mal dava para passar duas pessoas, lado a lado, pelas
vielas, mas os moradores acostumados às particularidades do caminho
andavam rápido para todos os lados.
À beira do caminho, encontrou quase todas as casas com portas e janelas
abertas, mostrando a intimidade das cenas iluminadas da cozinha,
da sala e até dos quartos. As imagens da vida das famílias tranqüilizaram
Débora, que ficou impressionada com a quantidade de crianças nas ruas
e que diziam qualquer coisa quando a viam passar. Os adultos, sentados
nos degraus de entrada das casas ou apoiados nas janelas, esperavam a
iniciativa dela para dar boa-noite, abrir um sorriso ou debochar pelo fato
de ela ser a namorada do “asfalto” de Juliano.
Os barracos de Marina, Cris, Veridiana, Marisa, Kel e Luz eram o
abrigo de Juliano durante este período em que se recuperava dos ferimentos.
Ele dormia um dia na casa de cada uma.
Foram dois meses de recolhimento, em que só era visto nos becos à
noite, caminhando com apoio de uma bengala e acompanhado pelos amigos
de confiança, sempre bem armados, devido às ameaças que vinham
de dentro e de fora do morro.
Juliano ainda era alvo das operações policiais, quase diárias, dos grupos
de Rambo e de Peninha. Uma carta enviada da cadeia à boca pelos
amigos presos o avisou que os dois grupos de PMs estariam disputando
uma recompensa oferecida pelo arquiinimigo Zaca, que continuava preso
e queria de volta o controle da boca. Da cadeia, Zaca estaria oferecendo
o equivalente a trinta mil dólares para quem matasse o trio de gerentes
de Carlos da Praça.
Já as desconfianças internas do pessoal de Juliano derivavam das
brigas recentes com Claudinho, agravadas pelo episódio do cerco aos
policiais militares. Os confrontos com a polícia afastaram muitos consumidores
da boca e em 1995 representavam uma queda de mais da metade
das vendas do pó e de maconha. Outro fator que ajudava a explicar a
perda de usuários era o clima de terror gerado pela brutalidade dos julgamentos
promovidos por Raimundinho.
Enquanto precisou de um matador na gerência para impor o seu controle
na favela, Carlos da Praça garantiu a retaguarda das ações de Raimundinho.
Consolidado no poder, queria tirá-lo da gerência, numa tentativa
de mudar a imagem do grupo e ao mesmo tempo atender aos pedidos
de muitos moradores que tinham medo do matador. Da Praça pretendia
também desbancar Juliano, que fora seu principal homem nos confrontos
com os inimigos desde 1987. Na sua avaliação, o afastamento dele seria
necessário para que a boca da Santa Marta deixasse de ser perseguida
pela polícia.
Débora nem imaginava, mas estava conhecendo o morro numa época
de alto risco para a vida de Juliano. Para se sentir mais seguro, muitas
vezes ele ultrapassava os limites laterais da favela para dormir no meio
da mata, em esconderijos que considerava inacessíveis até para os cães
farejadores.
Precisou ter cuidados especiais para receber Débora. Por motivos óbvios,
não podia levá-la para os barracos acolhedores das ex-mulheres,
muito menos para os esconderijos da floresta. Escolheu um barraco de
um morador de sua extrema confiança, seu Tinta, um velhinho simpático
de 72 anos.
Era um barraco cheio de lembranças dos momentos de glória de seu
Tinta, reproduzidas em vários quadros na parede. Na sala, havia várias
fotos em que ele aparecia com o uniforme de porteiro do hotel Copacabana
Palace, abrindo a porta de um carro de luxo para celebridades: as
cantoras Emilinha Borba, Dircinha Batista, Elizete Cardoso; os jogadores
de futebol Garrincha, Didi, Gilmar e Mazzola, da seleção brasileira
de futebol campeã mudial de 1958; também tinha na parede uma cédula
de um dólar autografado por Nat King Cole, que ganhara de presente do
cantor americano, durante uma passagem pelo hotel em 1960.
De frente para o sofá, que ocupava toda a extensão da parede, havia
um móvel antigo em perfeito estado, com um rádio toca-discos e alto-
falantes embutidos. Na estante ao lado, uma coleção com dezenas de
long-plays de sambas, blues e jazz. Durante 50 anos, seu Tinta tocou
cavaquinho e foi vocalista de uma banda que animava casas noturnas,
festas de fim de semana e bailes de carnaval.
Aposentado, ainda conservava da antiga banda alguns instrumentos
como o cavaquinho, dois violões que estavam guardados no alto de uma
prateleira e parte da bateria, sobre o guarda-roupa do quarto.
Desde o agravamento do reumatismo da perna, seu Tinta só saía do
morro para buscar o pagamento da minguada aposentadoria, equivalente
a 70 dólares mensais. Os passeios na favela se restringiam a uma caminhada
até a boca para buscar um sacolé de pó. Geralmente comprava fiado
e saldava a dívida oferecendo, em dias especiais como este, hospedagem
a Juliano. Dessa vez, acompanhado de Débora, Juliano o presenteou
com uma porção generosa de pó para garantir uma hospitalidade que
impressionasse a namorada. Seu Tinta trancou-se no quarto para deixar
o casal à vontade na sala.
Débora não planej ara entrar na favela, muito menos passar a noite
dentro de um dos barracos que à distância a impressionavam pela pobreza.
Envolvida pela conversa e o namoro, só se deu conta de que era
madrugada quando recebeu um telefonema da irmã Valéria.
- Você está bem, Débora? - perguntou Valéria.
- Tudo bem, estou ótima - respondeu Débora.
- O que aconteceu? São duas da madrugada. Estamos preocupadas
aqui em casa. Eu te deixei naquele lugar. É perigoso, Débora. E o cara
estava tão esquisito...
- Foi um mal-entendido... Agora está tudo bem. Não se preocupe.
- Você tem certeza, você está com ele?
- Estou, estamos na boa.
- Onde, Débora?
- Não se preocupe, irmã. Estou bem, já te disse. Estou na casa de um
amigo dele.
Namoraram e conversaram sem perceber quando amanheceu. Juliano
adormeceu por volta das nove horas, e Débora continuou acordada, sem
sono, curiosa para descobrir cada detalhe da vida na favela. Ainda cedo,
teve um pouco de fome, mas não se animou a comer nada do que havia
na geladeira. As únicas opções eram mortadela e refrigerante. Estava
impressionada demais com as precárias condições materiais da vida do
namorado. Na conversa durante a madrugada, quase não acreditou quando
Juliano disse que estava sem moradia fixa havia cinco anos, desde
a derrota na guerra de 1987. Ele contou que, nesse período, abrigou-se
sempre na casa de parentes e amigos dos morros vizinhos ou em locais
provisórios na própria favela. Que os barracos das ex-namoradas e ex-
mulheres eram os mais receptivos. E quando sofria grande perseguição,
refugiava-se na floresta, no lado oeste do morro.
Naqueles dias, fragilizado pelos ferimentos e correndo risco por causa
das inimizades internas já declaradas por Claudinho, Juliano era obrigado
a reforçar ainda mais os cuidados com a segurança. Evitava a guarda
pessoal até na hora de dormir. Geralmente “dava um perdido”, sumia
da vista da quadrilha antes de escolher o barraco para descansar. E ainda
assim não ia para a cama tranqüilo.
Só dormia vestido e calçado, pronto para sair correndo para a rua a
qualquer momento. Acordada enquanto Juliano roncava em sono profundo,
Débora viu que, mesmo dormindo, ele não se desgrudava da mochila
de lona onde estavam suas coisas inseparáveis: algumas velas usadas,
isqueiro, canivete, uma pequena lanterna, dois livros, sabonete, escova
e pasta de dente, um caderno, algumas canetas esferográficas, uma pequena
bíblia, imagens em cerâmica de alguns santos da Igreja Católica,
granadas, duas caixas de munição para a pistola automática e um pente
de cartuchos para o fuzil Jovelina. Também havia um compartimento
da mochila cheio de mantimentos: salame, goiabada cascão, biscoito de
baunilha e um tubo de vitamina C, que gostava de tomar quando acordava,
logo depois do meio-dia.
Juliano acordou faminto e admirado de encontrar Débora sentada no
chão da sala, ao lado do sofá, vendo um álbum de fotografias que seu
Tinta lhe mostrava. Ele foi para a cozinha preparar o desjejum preferido.
Depois de fazer uma vistoria nas panelas guardadas dentro da geladeira,
começou a preparar um prato com feijão, arroz, macarrão ao molho de
tomate, coberto com três ovos fritos.
- Meu Deus, Juliano. Isso é o café da manhã? E o que você come no
almoço?
- Em vez de feijão, ovo, arroz e macarrão, prefiro no almoço o contrário:
macarrão, arroz, ovo, feijão e um bifão por cima de tudo.
Pôs a mesma bermuda do dia anterior, o mesmo tênis, a mesma camiseta.
Convidou Débora a passear na favela porque precisava trocar
de roupa. Antes de sair às ruas, seu Tinta tomou a iniciativa de abrir as
duas janelas da sala para dar uma olhada no movimento lá fora, depois
saiu para observar um pouco além do ângulo que tinha a partir do ponto
de vista do barraco e voltou cinco minutos depois acompanhado de um
menino dizendo que estava tudo calmo. Juliano a convidou para conhecer
outro lugar seguro na favela, onde trocaria de roupa. Débora imaginou
que fossem a algum esconderijo, onde Juliano teria as suas coisas guardadas.
Mas eles seguiram em direção ao Terreiro da Maria Batuca, a
casa da lavadeira Dalva, mãe do amigo Careca. Antes de partir, Juliano
mandou o adolescente Nem, trazido por seu Tinta, fazer um avião de
segurança pelo trajeto todo.
- Deixa comigo, Juliano. E pá e pá. Os canas tão em toda parte, olha
aí. A gente tem que ficar de olho, sacumé! - disse Nem, que aos 15 anos
era muito magro e ainda parecia um menino de 11,12 anos.
Para agradar o gerente da boca, Nem correu pelas vielas, de ponta a
ponta, até o terreiro e voltou para acompanhá-lo de perto. Manteve-se
sempre à frente e à vista do casal para sinalizar o caminho livre. Embora
fosse uma tarde aparentemente tranqüila na favela, para Débora o passeio
era tenso como se fosse o deslocamento de soldados em campo de guerra.
Tinha consciência de que a única garantia de segurança, naquele momento,
era o aviãozinho, e por isso não conseguia entender como Juliano
poderia estar tranqüilo com a vida dependendo de um frágil adolescente.
A caminhada não durou dez minutos e, como Juliano estava apoiado
numa bengala, pareceu a mais longa da vida de Débora. Só ficou mais
tranqüila ao chegar na casa de Dalva.
- Entrem, meus filhos, querem tomar um café... acabei de preparar
para o pessoal. Entrem - disse Dalva, procurando ser simpática e aten
ciosa.
- Esta é minha noiva, dona Dalva, vamo casá ainda hoje... Vim buscá
uma roupa bacana pro meu casamento aqui com a senhora - brincou
Juliano.
- É, eu acho que tem uma calça jeans tua aqui. Do Careca não é porque
fica grande nele. Só pode ser tua.
Alguns dos grandes amigos de Juliano estavam na casa, reunidos no
salão do centro de umbanda, assistindo a uma partida de futebol na TV.
Débora cumprimentou aqueles que já conhecia, o franzino que tinha falhas
nos dentes, Mendonça e o negro alto, Du. Foi apresentada a Alen e
a Careca.
- Maneira esta sua camisa, Careca - disse Juliano ao amigo, que vestia
uma camiseta azul de algodão.
Careca entendeu o que o elogio significava. Concordou em ceder a
camiseta, mas propôs uma troca do chinelo, que usava, pelo tênis de Juliano.
Negócio fechado, Juliano em seguida pediria emprestado os sapatos
que encontrou ao lado da cama de Careca. Débora tomou o café oferecido
por Dalva, mas Juliano dispensou a gentileza. Estava com desejo
de tomar um suco. Na verdade queria continuar mostrando as boas coisas
do morro para a namorada.
- O melhor suco do Rio é do seu Arnaldo Pernambuco. Tu acredita,
não? Débora adorou o suco de carambola e ainda experimentou o de
cupuaçu, enquanto Juliano tomava o seu preferido do final da tarde, uma
generosa tigela de açaí com banana e guaraná, oferta da casa desde que
se tornou um dos gerentes de Carlos da Praça.
Qualquer hora do dia ou da noite, menos de madrugada ou durante
a sesta do meio-dia, os homens da gerência podiam contar com o abastecimento
de sucos de Arnaldo Pernambuco. Outra fonte de alimentação
gratuita era o Salgadinho, um barraco onde eram vendidos pastéis, coxinhas
de galinha, croquetes e empadas caseiras, tudo preparado por Elza
Salgadinho.
- Quando tô na nóia que o inimigo qué me envenená, só como o que
é feito aqui pela Elza.
Experimenta, Débora, pra senti, aí: é o melhor salgadinho do Rio de
Janeiro. Papo sério! - exagerou Juliano, sentado numa cadeira da cozi
nha, com a intimidade de quem era um assíduo freqüentador da casa.
- Melhor do Rio? Ah! Pensei que fosse o melhor do Brasil...
- Olha aí a mina, aí, dona Elza. Põe uma pimenta ferrada no lanche
dela, põe.
Só saíram do Salgadinho quando Juliano foi chamado para resolver o
problema do pagamento das cervejas do baile funk. O fornecedor queria
receber na hora da entrega, mas não havia dinheiro no caixa. Ameaçava
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