O dono do morro dona marta



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decidiu seguir o mesmo caminho. Resolveu fechar o apartamento, pegar

algumas coisas básicas e mudar com ele para a Santa Marta. A esperança

de Júlia era continuar perto dele e, aos poucos, tentar convencê-lo a sair

do tráfico, conduzi-lo para uma vida mais adequada a um jovem de classe

média. Depois de já tê-lo internado em clínicas de recuperação de dependentes

químicos, Júlia não acreditava mais na solução dos especialistas.

Ela nunca havia entrado numa favela antes de subir as escadarias que

pareciam intermináveis e exigiam um esforço enorme para vencer os degraus,

alguns com meio metro de altura. Ofegante, estava encharcada

de suor por causa do sol forte quando entrou no beco sem identificação,

um labirinto de concreto coberto pelo piso das casas construídas sobre

pilares enormes e que os moradores chamavam de beco das Maravilhas.

Começou a sentir dor de cabeça por causa da sensação de abafamento e

do forte fedor que exalava das valas escuras abertas pelo caminho.

- Não sei se vou agüentar esse cheiro, meu filho. Tem algum esgoto

vazando, não é possível.

- É assim mesmo, mãe. O esgoto corre direto no meio das casas. Com

o tempo a gente acostuma.

Ficou impressionada com a proximidade dos barracos, grudados uns

aos outros, separados pelos estreitos e tortuosos corredores. Pelo cami
nho, a maioria dos barracos tinha portas e janelas abertas, revelando cenas

da atividade das pessoas dentro de suas casas, e Júlia ficou impressionada

com a quantidade de homens desocupados em plena manhã de segunda-

feira... Recebeu as boas-vindas de dezenas deles pelo caminho.

De imediato, ao entrar na sua nova casa ficou chocada com a perda

de cidadania que sofrera. A começar pela ausência dos códigos de referência

de moradia. O seu novo endereço, rua Jupira, 72, não tinha nada a

ver com o barraco onde iria morar no beco da Verinha. Era, na verdade, a

referência postal de todos os moradores do morro, o endereço da quadra

da Escola de Samba.Unidos da Santa Marta, para onde se destinam todas

as correspondências da favela. Jupira, 72, era também a resposta padrão

dos criminosos do morro quando precisavam informar seus endereços à

polícia, à justiça e à imprensa.

A descoberta de que não havia ruas, mas caminhos estreitos, cheios

de pedras e escadarias tortuosas, convenceu-a de que o carro que deixara

na garagem do apartamento seria completamente inútil. Decidiu vendê-

lo para investir na reforma do barraco de três cômodos, repleto de frestas

nas paredes, goteiras no teto e que tinha o banheiro separado, do lado de

fora da casa, sem rede de escoamento até o valão do esgoto. Júlia demorou

a se acostumar a não ter telefone em casa e à falta de água e luz durante

várias horas do dia. No início ficou impressionada sobretudo com a

quantidade de ratos pelas áreas de circulação de crianças e adultos.

Aos poucos foi percebendo as perdas das antigas amizades e da relação

que tinha com os parentes. Eram moradores dos bairros de classe média

e todos se afastaram dela. Como se tivesse mudado para o outro lado

do mundo, perdeu o contato até com os padrinhos de Bruna, sua filha de

oito anos, que moravam a menos de meio quilômetro da favela.

No começo, o barulho de tiros a desesperava. Corria para proteger a

filha embaixo da pia da cozinha, único lugar da casa com dupla parede de

alvenaria. Com o tempo, aprendeu a identificar diferenças importantes no

ruído dos tiros. Descobriu que um disparo isolado ou vários concentrados

num ponto do morro indicavam treinamento dos guerreiros da boca.

Explosões em diferentes áreas eram sinais de invasão da polícia ou de

guerra contra os inimigos.

Descobriu também os códigos sonoros dos fogueteiros do tráfico. As
explosões dos rojões tanto podiam indicar a chegada de uma nova

carga de droga quanto alertar para a invasão da polícia. Morava perto da

boca, mas só depois de mais de um mês, com muita insistência do filho,

foi visitá-lo na sua base de atividade.

Encontrou dezenas de pessoas em volta do ponto da boca e logo identificou

quais eram os traficantes, porque exibiam armas enormes que já

conhecia por foto e imagens da TV. Foi surpreendida pela cena. Imaginara

encontrá-los dentro de um prédio, cheio de trancas e grades de ferro,

com sentinelas por todos os lados. Demorou a acreditar no que viu. Os

homens estavam numa bifurcação de duas vielas, numa área de diâmetro

não superior a quatro metros, de grande movimento, sem delimitação de

espaço, sem uma mesa, cadeira, nada.

- Cadê a boca, meu filho? - perguntou Júlia.

- Isto é a boca, mãe - respondeu Rebelde.

- Mas cadê o esconderijo? Assim, no meio da rua, como é que ninguém

prende vocês?

Era início da noite de uma sexta-feira e havia fila de usuários comprando

drogas. Um dos vapores era a irmã de Juliano, Diva. Tinha dois

sacos de plástico pendurados na cintura: um cheio de cocaína e outro de

maconha. Ao lado dela, um homem se encarregava de recolher o dinheiro

acumulado e levar para longe dali, para o chefe de plantão, Tá Manero.

Júlia nem se deu conta, mas a cúpula da boca estava quase toda ali, inclusive

o próprio dono. Juliano teve que se apresentar:

- Seja bem-vinda, a senhora é mãe do Rebelde? - perguntou Juliano.

- Quem é você? - perguntou Júlia.

- Eu sô o Juliano, amigo do seu filho.

- Ele te chama de patrão.

- Aqui ninguém manda em ninguém... Somo uma irmandade, com a

proteção de nossa santa padroeira.

- Por favor, proteja meu filho - pediu Júlia.

- Teu filho é maravilhoso. Ele terá a proteção dos santos guerreiros.

Júlia achou Juliano mais simpático do que esperava. Mas não alimentou

muita conversa com ele. Logo voltou para casa acompanhada

por Mendonça e Paulo Roberto, que estavam armados com escopetas.

Eles foram escalados por Juliano para protegê-la pelo caminho, para ela
se sentir mais segura num ambiente que ainda lhe parecia hostil e desconhecido.

- Mulhé corajosa, a tua mãe - disse Juliano para Rebelde.

- Quero morrê antes dela, Juliano.Ela é tudo pra mim-disse Rebelde.

- Corajosa e muito bonita, que coroa, hein? - provocou Juliano.

- Por que tu acha que eu só bonito assim? - disse Rebelde.

Aos poucos, mais adaptada, Júlia percebeu que, apesar de todo o risco

e precariedade da favela, ela estava levando uma vida privilegiada em

relação à de outros moradores. Pelo fato de ser mãe de um dos homens da

cúpula, desde a sua chegada sempre teve a sua disposição algum jovem

da boca para fazer consertos no barraco ou carregar pacotes e sacolas na

subida das escadarias.

A rápida ascensão de Rebelde, que, além de chefe das esticas, se

tornou homem de confiança de Juliano, traria também vantagens financeiras.

Sob novo comando e sem conflitos, a boca triplicou o volume de

vendas em meio ano. O filho passou a receber cinco vezes mais do que

ela ganhava como secretária da creche da universidade.

Rebelde trazia para casa sacolas cheias de dinheiro arrecadado nos

plantões de cada gerente. Um dia, em vez de sacolas, trouxe um malote

abarrotado. Juliano e o chefe dos plantões Tá Manero passaram horas na

sua casa fazendo a contagem e a divisão dos valores. Curiosa e preocupada,

Júlia fingiu que estava dormindo e descobriu que o dinheiro viera

de um assalto a banco.

- Meu filho, até onde isso vai chegar?

- Mãe, não tem diferença. Se é tráfico, ou outra parada... Tou nessa,

tenho que ir fundo - explicou Rebelde.

Mesmo sem gastar dinheiro com munição, pois a tomada da boca

tinha acontecido sem tiroteio, Juliano precisava de muito dinheiro para

pagar as dívidas com os matutos de maconha do Nordeste e ainda fazer

compras de armas, para reforçar a segurança contra uma possível reação

dos inimigos. Por isso, aproveitou as informações sigilosas de uma agência

do Banco do Estado do Rio de Janeiro, oferecidas por um funcionário

que morava na Santa Marta, para fazer um assalto.

A ação fora planejada por Tucano e Mendonça. Juliano cedera as

armas da Rocinha, que, desde a retomada do morro, ainda não haviam


sido devolvidas, e convocou três de seus melhores homens: Careca, para

dirigir o carro, Rebelde para dar cobertura armada, e Paulo Roberto para

acompanhar a dupla de comando na invasão ao banco. E também contratou

uma prestadora de serviço, a ambulante Noêmia, para transportar o

malote roubado do Jardim Botânico até a favela dentro de seu carrinho

de venda de pipoca.

No final do dia, reunido na casa de Júlia, o grupo que participou do

assalto assistiu na TV a uma reportagem sobre o roubo. Rebelde vibrou

por se reconhecer nas imagens da reconstituição do assalto.

- Olha lá, Juliano. Aquele que tá enquadrando o vigia sou eu, cara!

- gritou Rebelde.

O assalto rendeu para Rebelde a compra de um aparelho de CD, de

um ventilador para espantar os mosquitos na hora de dormir e de um vestido

que deu de presente para Júlia, com uma exigência.

- Veste. Desfila com ele pra eu vê, mãe - disse Rebelde.

O resto da sua cota no roubo, o equivalente a 1.500 dólares, depositou

numa poupança em nome de Júlia, que ficou assustada com a atitude do

filho.


- Muito obrigada, meu filho, mas isso não é certo, isso suja o meu

nome.


- Na próxima vez vô te dá uma bela casa, mãe - prometeu Rebelde.

Meio ano de vida na favela bastou para Júlia esquecer o choque da

mudança. Já não sofria por causa da separação nem sentia saudades dos

parentes e antigos amigos. Tinha se demitido do emprego na creche porque

cansou de trabalhar dez horas por dia pelo equivalente a 300 dólares

de salário. A atitude pegou de surpresa o próprio filho, que ficou desconfiado:

- O que deu em você pra estar revoltada, assim?-perguntou Rebelde.

- Cansei de ser otária, meu filho - respondeu Júlia.

- Isso é papo de bandido. Quem tá fazendo a tua cabeça?

O homem era um dos dirigentes da boca, o chefe dos plantões, Tá

Manero. Um namoro conquistado com ajuda nos serviços da casa, proteção

nas horas de risco, presentes e gentilezas, muitas gentilezas. Júlia

demorou a falar do romance ao filho. Ela sabia que Rebelde rejeitaria

qualquer namorado do morro.


- Tá Manero, qué dizê que você tá de caso com um bandido? - perguntou

Rebelde.


- Ele é um homem diferente - retrucou Júlia.

- Claro, sete anos de cadeia, assalto, tráfico...

- Mas ele me trata como uma rainha, meu filho.

- Isso até a hora que te dé a primeira porrada.

O romance envolvia a mãe do chefe das esticas com o chefe dos plantões,

ambas funções de confiança da boca. Era um caso para ser julgado

pelo dono do morro. Nos primeiros meses de poder, Juliano já havia

mostrado que gostava de interferir na vida de todo mundo. Tinha convocado

reuniões com os dirigentes da Associação de Moradores e com as

lideranças do samba, do funk, do futebol, das igrejas. Ainda era muito

temido por causa da matança dos tempos em que dividia a gerência com

Claudinho e Raimundinho. Preocupado em mudar a sua imagem, vinha

fazendo o papel de juiz e de conselheiro das famílias em crise. Quase

sempre era chamado para resolver os conflitos. Mas no caso de Júlia,

como envolvia seus homens, Juliano tomou a iniciativa tão logo soube

que Rebelde ameaçou matar Tá Manero. Teve uma conversa a dois com

Júlia.

- Isso é um absurdo, Júlia! Teu filho tem razão - disse Juliano.



- Mas Juliano, o namorado é meu, não é dele - ponderou Júlia.

- Ele é teu filho. Tem obrigação de te protegê dos bandido - disse

Juliano.

- E por acaso meu filho também não é bandido? - perguntou Júlia.

- Por isso mesmo! Ele sabe do perigo que a mãe dele vai corrê! Você

não veio pro morro pra tirá ele dessa vida?

- Agora quem quer ficar sou eu.

- Pois é, quem te viu e quem te vê.

- Nunca tive um homem assim na minha vida, Juliano.

- Mas o Tá Manero é casado, Júlia.

A solução de Juliano para o caso foi o afastamento temporário de

Júlia da favela, com esperança de que ela esquecesse Tá Manero. Tirou

dinheiro da boca para financiar uma viagem dela com o filho Rebelde ao

litoral do Espfrito Santo. Mas não resolveu. Era para ficarem no mínimo

um mês na praia, mas os dois decidiram voltar muito antes. A saudade do
amor e da guerra trouxe os dois, em uma semana, de volta para a Santa

Marta, decididos, por exigência de Rebelde, a cobrar um compromisso

sério de Tá Manero.

- Você tem que prometer: se alguma coisa acontecer comigo, você vai

cuidar da minha mãe - exigiu Rebelde.

- Fica tranqüilo.Ela é a mulher da minha vida!-prometeu Tá Manero.

Júlia também teve que ceder, aceitar que Tá Manero mantivesse uma

segunda mulher. Acreditou na promessa dele.

- Um dia vô me separá total. Mas agora preciso manter o leite das

crianças - explicou lá Manero, que além de casado, tinha dois filhos.

O romance tornado público exigiu mudanças na vida de Júlia. Ela

teve que descobrir no morro um lugar com características de esconderijo,

pois Tá Manero tinha uma vida clandestina, era foragido da justiça havia

sete anos. Escolheram um barraco perto da boca, num terreno com boa

vista e várias opções de fuga.

Providenciaram vários pequenos orifícios de observação nas portas e

janelas. Desenvolveram o hábito de regular o som do rádio e da TV no

volume mínimo. E ensinaram a cadela da casa a aprimorar o faro para

identificar os passos do inimigo.

Júlia acostumou-se a passar a madrugada com a filha de oito anos,

enquanto o amante e Rebelde cuidavam dos plantões da boca. Gostava

de acordar cedo para vê-los subindo as escadarias de volta para casa, com

os fuzis no ombro. Rebelde invariavelmente usava boné com a aba virada

para trás, camiseta e calça de moletom com uma das pernas arregaçada

e tênis branco. E sempre cumprimentava os primeiros trabalhadores que

desciam apressados as vielas rumo à cidade.

Era ainda novata no morro, mas já sabia, pela convivência com o experiente

Tá Manero, que as primeiras horas da manhã eram as de maior

perigo. Tanto os traficantes inimigos quanto os policiais, quando não conheciam

bem a favela, evitavam atacar no escuro da noite. Preferiam agir

de manhã cedo, quando eram maiores as chances de encontrar os homens

exaustos, já em final de plantão.

Tudo andava tão tranqüilo sob o comando de Juliano, que Júlia não

ficou muito assustada ao ouvir alguns tiros na madrugada chuvosa de

uma quinta-feira. Mas os filhos acordaram preocupados com o tipo de
ruído de tiro que ouviram. De folga no plantão, Rebelde, Funfa e Faquir

dormiam na sala da casa de Júlia e não tinham nenhuma obrigação de vigiar

as divisas e os acessos da favela. Imaginaram que fosse um possível

ataque à boca e então resolveram agir sem pensar muito.

- Vamo vazá! Vamos vazá! - gritou Faquir e saiu pela porta, com Funfa

atrás dele.

Rebelde pegou rapidamente o fuzil, um pouco de munição e já na

porta para sair também, avisou à mãe:

- Vou ali rápido na boca ver o que tá acontecendo e já volto.

- Você está descalço, não esquece o tênis.

Em seguida, Júlia viu, por uma das frestas de observação da porta, um

grupo de policiais passando pelos becos apontando as armas para todos

os lados. Minutos depois, a ação dos mesmos policiais era acompanhada

de outro barraco, 200 metros acima, por uma missionária peruana que

trabalhava na favela.

Escondida atrás das cortinas da janela semi-aberta, ela assistiu à prisão

de Rebelde. E o viu ser amarrado a um poste e espancado, aparentemente

porque tinha sido confundido com Juliano.

- Tu é o dono aqui, seu safado. Confessa, porra! - gritou um policial.

Rebelde tentou pedir socorro para os vizinhos.

- Avisem a minha mãe, eles tão me matando - gritou Rebelde.

Um tiro na nuca derrubou Rebelde no chão. Uma rajada de metralhadora

nas costas acabou de matá-lo.

Assustada com os tiros, Júlia correu para o andar de cima da casa e

abriu a janela do quarto. Viu os policiais em frente da sua casa carregando

o filho enrolado num cobertor. Desesperou-se. Correu para a rua gritando

por socorro. Ao constatar que Rebelde estava morto, tentou esmurrar os

PMs. As vizinhas tiveram que segurá-la a força. Enquanto os policiais se

afastavam, Júlia gritou com toda força os nomes dos PMs que levaram o

corpo morro abaixo.

- Nunes, filho da puta! Russão, filho da puta!

A missionária denunciou a execução de Rebelde no Batalhão da Polícia

Militar. E no velório, ao lado da mãe, contou tudo o que tinha visto

para vários repórteres. Revoltada, Júlia também deu várias entrevistas,

omitindo que o filho era da quadrilha de Juliano. E pediu punição severa
para os assassinos.

Juliano decretou luto na favela, liberou os homens das atividades e

pagou as despesas fúnebres.

Não esqueceu de realizar um desejo de Rebelde, o de ser enterrado

com flores brancas. Encarregou a irmã Zuleika de encher o caixão de rosas

brancas. E de providenciar a compra de roupas e sapatos brancos da

Toulon, a preferida do amigo.

Nenhum parente estava entre as dezenas de amigos e namoradas que

foram ao cemitério São João Batista. Mas o velório estava cheio de amigos,

e principalmente de amigas. Júlia contou 22 meninas da Santa Marta

que a chamaram de sogra no enterro. Pelo menos duas, Fabiana e Nicole,

estavam grávidas havia mais de meio ano.

Meses depois da morte de Rebelde, as duas namoradas grávidas deixaram

os herdeiros para a avó criar. Fabiana abandonou o bebê na própria

maternidade e sumiu do morro. E Nicole foi morar em Paris, sem a

criança, a convite de uma organização religiosa francesa.

Até ser preso, dias antes da virada do século, Tá Manero cumpria o

pacto que fizera com Rebelde.

Continuava gentil e apaixonado por Júlia. Embora não tivesse prometido,

assumiu criar os órfãos, Dager Rafael e Nicole Cristine, como se

fosse o verdadeiro pai. As duas crianças, aos três anos de idade, já eram

muito apegadas a Tá Manero. O menino assistiu à sua prisão na favela e

reclamou muito.

- Pulixia não presta, mamãe. Pulixia prendeu papai Tá Manero. Pulixia

matou papai Rebelde.
Parte 2 TEMPO DE MORRER
CAPÍTULO 21 WELCOME MICHAEL JACKSON

Rebelde pintado em letras vermelhas de sangue sob o fundo preto

de luto. Juliano passou uma semana desenhando o nome do amigo e de

outros 23 homens de sua geração mortos na guerra do tráfico de sua

comunidade. Depois os mandou imprimir numa camiseta, uma singela

peça de marketing da maior festa de todos os tempos da comunidade: as

gravações de um clipe de Michael Jackson na Santa Marta.

Para recepcionar o astro americano, Juliano usou seus conhecimentos

de desenho para escrever numa faixa, que seria fixada no alto do morro,

o que gostaria de falar diretamente a Jackson:

“Welcome to the world... not the wonderful world... but humble world

of the poor people.” (Bem-vindo ao mundo... não a um mundo maravilhoso..,

mas ao mundo humilde dos pobres.)

A Santa Marta ainda disputava com a Rocinha a escolha como cenário

das gravações do clipe da música “They don’t care about us”, de

Michael Jackson. Juliano achou que o nome da música - “Eles não se

importam com a gente - sintetizava a condição de quem mora nas favelas

do Brasil.

Empolgado, convenceu seus homens de que o clipe era importante

porque mostraria para o mundo as condições miseráveis da vida de suas

famílias. Mesmo antes de saber qual seria o morro escolhido pelos americanos,

exigiu o empenho de todos para transformar as gravações de

Jackson num grande evento comunitário, como a marca da chegada de

sua geração ao poder da favela.

Juliano tinha conseguido eliminar seis favelas concorrentes da lista

de oito pesquisadas e fotografadas pela Skylight, a empresa brasileira

encarregada de produzir as gravações do clipe. Faltava apenas o diretor

de cinema Spike Lee decidir qual das duas escolheria. Contava ponto a

favor da Santa Marta o bom relacionamento de Juliano com o produtor

Jorge Ben, encarregado pela Skylight de fazer o contato com o dono do

morro.

Juliano o conhecia dos tempos em que Jorge era adolescente infrator



e morava na favela do Jacarezinho. Depois de seu último roubo bem-su
cedido, comprou uma caminhonete e passou a trabalhar como produtor

independente de cinema. As afinidades entre Jorge e Juliano se estendiam

à linguagem e aos códigos de honra. Como Juliano “empenhou a palavra”,

garantindo tranqüilidade e segurança para as gravações de Michael

Jackson, Jorge escreveu no seu relatório de produção que, se dependesse

dele, a favela escolhida seria a Santa Marta.

A equipe de filmagem americana concordou com a escolha dele.

Preferiu as condições de segurança oferecidas pela Santa Marta, além

de outras vantagens adicionais: estava perto da produtora Skylight, com

sede em Botafogo, o que facilitaria as comunicações via rádio durante as

gravações.

Também pesou na escolha o fato de a favela ser menor, sendo mais

fácil controlar os curiosos do que na enorme Rocinha com seus 200 mil

habitantes.

O fator decisivo, prioridade do diretor Spike Lee, foi a paisagem deslumbrante

com seus contrastes: à frente do morro está o espelho da lagoa

Rodrigo de Freitas, cercada de prédios luxuosos; atrás, o mar da baía de

Guanabara; à esquerda, a montanha banhada pelo mar, que forma uma

das imagens mais conhecidas no mundo, o Pão de Açúcar; e à direita, outro

cenário carioca famosíssimo, o Corcovado e várias favelas, entre elas

a Santa Marta, que nunca aparecem nos cartões-postais embora estejam

aos pés do Cristo Redentor.

Dias antes das gravações, a vinda de Jackson ao Brasil ainda não estava

confirmada devido à polêmica diplomática gerada pelo clipe. O então

secretário estadual de Comércio e Turismo do Rio de Janeiro, Ronaldo

César Coelho, e o ministro dos Esportes da época, Edson Arantes do Nascimento,

o Pelé, promoviam uma campanha contra a gravação do clipe

na favela. Alegavam que a exposição da pobreza dos morros brasileiros

era negativa para a imagem do país no exterior. Juliano usou o sistema de

alto-falantes da Associação de Moradores para protestar contra a posição


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