O dono do morro dona marta



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foi ferido nas pernas quando saltava para o lado. Tentou proteger-se

na casa mais próxima. Mas ninguém abriu a porta. Esmurrou uma janela

ao lado, gritou, insistiu para alguém o socorrer enquanto os tiros tiravam

lascas da parede e furavam seu corpo. Juliano conseguiu recuar alguns

passos, o suficiente para vencer a curva que o protegeria dos tiros frontais

por alguns segundos.

Os soldados da equipe do major Camilo, chefe de P-2 do Segundo

Batalhão, avançaram para checar se todos estavam mortos. Correram aos

gritos de “Policia! Polícia! enquanto Juliano recuava em silêncio, tentando

chegar à área da boca. Como todos os barracos estavam fechados,

tentou proteger-se atrás de um poste de concreto, que sustentava caixas

de ferro enferrujadas, velhas proteções de relógios medidores de energia

quebrados havia anos. Era um escudo, de onde podia disparar a Jovelina

e conter o avanço dos PMs. Juliano trocou tiros por alguns minutos, até o

momento em que ouviu o ruído da chegada do reforço de seus inimigos.

Era o Águia da Morte, o mesmo que fuzilara Rafael no Tortinho.

Havia chegado mais uma vez pelo pico do morro e voava em círculos

para dar cobertura a uma patrulha de cerca de cinqüenta soldados, que

iniciava uma grande operação na favela. O barulho do tiroteio e as indicações

pelo rádio do Águia levaram todos os policiais para o lado oeste
do morro, para fechar o cerco a Juliano. Já localizado pelo helicóptero

que estava parado no ar, exatamente sobre o ponto onde tentava se esconder,

Juliano voltou a correr em direção à dona Virgínia. Na primeira

descida, aproveitou o desnível do beco para arrastar-se até a marquise de

um barraco e sair da visão do helicóptero, que passou a voar em círculos

para indicar às patrulhas o seu novo esconderijo. Minutos depois, já sob o

cerco de soldados num raio de 100 metros, Juliano passou do porão para

dentro do banheiro da casa pelo buraco imundo da latrina. A moradora,

uma prima de Flavinho, o antigo líder da Turma da Xuxa que virara taxista,

fazia o almoço das duas filhas crianças.

Assustou-se com a invasão, mas quando viu que o fugitivo era seu

velho conhecido, tentou ser solidária. Apontou em silêncio a escada da

sala que levava para o andar de cima, onde ficavam os dois quartos. Não

demorou muito para o esconderijo ser localizado pelo Águia. O piloto

estabilizou o aparelho lá no alto a uns 50 metros do barraco e pelo walkie

talkie avisou ao sargento que corria atrás de Juliano pelos becos que o

foragido estava ali.

- Pegamos, pegamos! Ele está aí, neste barraco da parabólica. Pode

invadir, detonar! - disse o piloto.

O sargento invadiu a casa pela cozinha com o fuzil em posição de

tiro, seguido por dois soldados.

O barraco já estava cercado por um grupo de uns vinte PMs. As crianças

correram para os braços da mãe. Em silêncio, os policiais avançaram

pé ante pé, para vasculhar o banheiro, a sala. O sargento subiu vagarosamente

as escadas de acesso ao segundo andar com a arma sempre apontada

para a frente. Viu que no primeiro quarto, o das crianças, não havia

espaço para um homem se esconder.

Procurou com mais cautela ainda no aposento do lado, o do casal.

Olhou embaixo da cama, dentro dos armários e atrás da cortina de tiras

coloridas de plástico que separava o quarto do banheiro. Não imaginou

que o fugitivo estivesse escondido atrás da caixa de amianto, o reservatório

de água da casa fixado nas vigas de madeira, no teto do banheiro.

Juliano ainda ouviu o piloto do Águia insistir com o sargento.

- Ele entrou no porão desta casa. Só pode estar aí, positivo? - disse o

piloto.
- Dei a geral em tudo aqui, Águia. Negativo! - respondeu o sargento.

- De um a dez, aposto onze que tá entocado aí - insistiu o piloto.

Os gritos dos soldados desviaram a atenção do sargento, que foi chamado

para ajudar alguns colegas em apuros lá fora. O barulho era de um

grupo de PMs que arrastava pelos pés e pelas mãos os três jovens feridos

em direção à parte alta do morro, sob o protesto de uma pequena multidão

de mulheres e crianças.

- Assassinos. Estão levando para o pico! Assassinos! - gritava uma

mulher.

Pelas leis da Santa Marta, o pico era local de execução e desova. Por



isso, a multidão rapidamente foi crescendo até impedir que os PMs continuassem

a subida. Os policiais tentaram convencê-los de que Popeye,

Podre e Formigão já estavam mortos e que lá do alto os corpos seriam

levados de helicóptero para o Instituto Médico Legal. Diante da revolta,

resolveram largá-los ali mesmo, no chão, a poucos metros do barraco

onde Juliano se escondera, e se dispersaram no meio da favela. Em minutos

apareceram vários cobertores para facilitar a ação do grupo, que

levou os corpos morro abaixo em busca de socorro. O missionário Kevin,

que estava no ambulatório da Casa da Cidadania, havia sido chamado

com urgência e encontrou o cortejo no caminho, já perto da Associação

de Moradores. A caravana parou e, com cuidado, tiraram os cobertores e

os puseram no chão para Kevin examiná-los melhor. A experiência como

socorrista da Cruz Vermelha Internacional deu a Kevin o conhecimento

prático para poder afirmar, com segurança, depois de examinar o corpo

de Popeye, esfacelado, se ele tinha alguma chance ou não.

- Popeye já era, pessoal. Não tem mais jeito.

O corpo de Formigão, atingido na cabeça, estava frio e começava a

apresentar a rigidez dos cadáveres.

- Já era! Já era! - repetiu o missionário.

Com Podre, havia alguma esperança. O missionário teve dificuldades

em encontrar batimento cardíaco no pulso, mas achou que o corpo ainda

estava quente. Por isso, pediu que alguém providenciasse um carro que

o levasse às pressas para o hospital mais próximo, enquanto no caminho

tentaria estimulá-lo com respiração boca a boca.

A multidão, agora revoltada com as mortes, dividiu-se em dois gru
pos. Alguns seguiram com Kevin levando Podre ao hospital. A maioria

ficou em volta dos corpos de Popeye e Formigão até a chegada dos parentes,

que decidiram levá-los para o velório na quadra da escola de samba.

No caminho, enquanto os adultos carregavam os corpos enrolados em

cobertores, algumas crianças jogavam pedras nos policiais que passavam

pelos becos, ainda envolvidos nas operações de busca a Juliano.

Uma hora depois, o mesmo carro que conduzira Podre ao hospital

estava de volta com ele já morto. Nem chegou a receber atendimento

no pronto-socorro porque os médicos constataram que era tarde demais.

Kevin preferiu levar o corpo direto para o velório coletivo na quadra. A

chegada do último corpo aumentou a revolta dos parentes, dos amigos,

das crianças, dos adolescentes. Todos começaram a ofender e a provocar

os PMs, que observavam a movimentação da quadra bem de perto, a uns

40 metros,

Goteiras caiam de vários pontos da rede de tubulação de água, furada

pelas balas da polícia. Mas desta vez ninguém iria consertar o “chuveirinho”

tão cedo. O especialista Pardal estava abalado demais para pensar

nisso diante dos corpos dos amigos de infância. Popeye era amigo mais

distante.

Podre e Formigão não moravam na mesma viela dele, mas cresceram

juntos. E do início da adolescência até os 15 anos de idade, sempre

estiveram unidos no mesmo grupo, sem nunca terem saido do morro.

Mesmo nos períodos em que a boca estivera tomada pelos inimigos, eles

continuaram na atividade de olheiros. Para disfarçar, criaram um grupo

de funk e usavam os bailes como elo para passar as informações estratégicas

aos amigos escondidos nos outros morros. Os caixões dos amigos

foram postos lado a lado, junto à parede da quadra, que estava cheia de

cartazes com os artigos da Declaração dos Direitos do Homem. Os voluntários

da Casa da Cidadania transformaram o velório num ato público

de protesto contra a violência policial. Alguns sambistas e jovens do

tráfico improvisaram um show no palco em homenagem aos funkeiros

mortos. Nos intervalos de cada exibição, transmitiram pelo sistema de

alto-falantes mensagens de protesto, que foram ouvidas em todo o morro,

inclusive pelos PMs. Alguns reagiram, invadiram a quadra para tirar o

microfone do missionário Kevin no momento em que ele acusava a po
lícia. Empurraram as pessoas para abrir caminho no meio da multidão e

chegar até a parede onde os corpos estavam sendo velados. Quebraram as

velas, pisotearam as flores, ameaçaram derrubar no chão os caixões que

estavam sobre tripés de madeira.

- Vítima é o caralho. Aqui tudo é bandido, tudo é traficante - disse um

soldado.


O missionário Kevin protestou.

- Isso é um crime. Respeitem as famílias.

Ele ligou para o número de denúncia da Ouvidoria de Polícia. Em

seguida telefonou para os repórteres dos principais jornais e televisões

da cidade, enquanto os policiais eram cercados por crianças e mulheres,

parentes dos mortos, que choravam e gritavam revoltadas. Com a chegada

de mais dois grupos de PMs, o missionário foi levado detido ao posto

de polícia da Escadaria. E só seria liberado com a chegada das equipes de

reportagem, minutos antes da hora marcada para o enterro.

Pelo menos 500 pessoas, a pé, levaram os caixões da sede da escola

de samba até o cemitério São João Batista.

Juliano só reapareceu no começo da noite, quando a operação já havia

acabado havia mais de uma hora e algumas pessoas ainda voltavam do

cemitério. Só então teve certeza de que havia perdido mais três homens,

todos do novo grupo que tentava formar.

- Vingança! Vingança!

Os gritos de Juliano voltaram a agitar os moradores no final de um dia

cheio de tiroteios, perseguições, tumultos, mortes. De um lado, Careca,

Alen e Manero tentaram acalmá-lo porque o chefe parecia transtornado

com a notícia. contada com detalhes exagerados por Luz. A amiga estava

revoltada e foi a primeira a sugerir retaliação.

- Isso pode ficá assim não, Juliano. É um massacre! Se a gente dé

mole, vão continuá, vão quebrá um por um. Quem vai ser o próximo?

- perguntou Luz.

Havia duas granadas nas mãos de Juliano. Careca percebeu que estavam

sem o pino de segurança, prontas para explodir. Juliano precisava

segurar firme a alavanca de disparo para que ela não explodisse em

suas mãos. Ele partira do coração da favela, da área da Primeira Mina e

caminhava, decidido, para o ataque, com os amigos em volta tentando
contê-lo.

- Isso é suicídio, Juliano. Cuidado com essas granadas na mão. Se caí,

já é, aí! - avisou Careca, sem conseguir ser ouvido pelo chefe.

Desceram pelo beco Padre Hélio, o de maior movimento à noite, com

Juliano andando à frente do grupo e falando palavrões para si mesmo.

Dali em diante dezenas de curiosos seguiram atrás, incitados por Doente

Baubau, que saudava pelo caminho o “bonde do VP boladão”. E todos

sabiam que o plano era lançar as granadas sem pino dentro do posto da

Polícia Militar da Escadaria. A 100 metros do alvo, Juliano subiu as escadas

laterais de um barraco, chegou até a laje e dali andou por cima das casas

para surpreender os policiais pelo alto. Careca e Tá Manero seguiram

atrás dele e logo teriam a companhia do missionário Kevin. Avisado pelo

pessoal da boca, que temia o ataque de Juliano à polícia, Kevin percorreu

o mesmo caminho pelas lajes, apressado, para alcançá-lo.

Um grupo de PMs estava conversando em frente à entrada principal

do posto no momento em que o missionário encontrou Juliano e em seguida

ficou à sua frente para evitar o lançamento das granadas.

- Tu enlouqueceu, irmão. Que loucura é essa? - disse Kevin.

Juliano chorava enquanto tentava tirá-lo de sua frente.

- Foi muita covardia, Kevin. Vô arrebentá com esses puto!

- E aí eles vão matar você e o morro inteiro. Isso não pode ser assim,

não, Juliano!

- Que se foda! Que se foda! Qual que é?

- Já fiz a denúncia na Ouvidoria. Vamos pressionar, mostrar que foi

covardia... Eu seguro essa onda, aí - insistiu Kevin.

Durante a discussão, outros homens chegaram para acompanhar o

ataque. Como a maioria apoiou o missionário, aos poucos Juliano foi

mudando de atitude. Sentou na mureta de uma laje e exigiu que o deixassem

só para chorar à vontade. Mas ainda tinha as duas granadas na mão

sem os dispositivos de segurança.

- Põe o pino, Juliano. Caralho, põe o pino! - gritou Careca.

Inconformado, Juliano ainda choraria durante quase uma hora a poucos

metros do inimigo. E quando concordou em voltar para a área mais

segura da boca, andou sem rumo pelos becos ainda com as granadas nas

mãos, sem os pinos de aço, com o risco de explodi-las.
CAPÍTULO 27 A TOCA

A Toca era o esconderijo mais secreto de Juliano. Foi construído especialmente

para protegê-lo do cerco da polícia e dos ataques dos inimigos,

que também se intensificaram. As quadrilhas do antigo rival, Zaca,

e de Carlos da Praça, tentaram tirar proveito das últimas perdas no comando

da Santa Marta com ataques durante a madrugada. A estratégia

de guerra de Juliano era evitar confrontos com a polícia, sem nenhuma

resistência às operações de busca. E para enfrentar a pressão das quadrilhas

rivais, procurava o apoio dos principais assaltantes que moravam

no morro. Quase todos os dias, Juliano saía da Toca às cinco horas da

madrugada para organizar a resistencia armada nos três pontos de acesso

à favela. Quando o inimigo recuava, geralmente na hora em que os trabalhadores

saíam de casa para o trabalho, voltava ao esconderijo e dali

não saía mais.

A Toca ficava embaixo de um barraco dos mais antigos, erguido sobre

colunas de madeira e paredes de estuque, mistura de barro e fragmentos

de tijolo. Os donos da casa tinham o perfil das famílias da Santa Marta.

Era um casal idoso com sete filhos, dos quais dois eram casados, e três

netos. Eram descendentes de escravos que vieram da zona rural de Minas

Gerais. Nenhum deles jamais teve nenhum vínculo com o tráfico.

Cederam o espaço da Toca em nome da amizade com a mãe de Juliano.

Nos tempos da birosca, Betinha nunca deixou de vender mantimento

fiado à família, que viu Juliano crescer brincando com as crianças da

casa.


A entrada da Toca era “invisivel”, ficava ao lado da vala de esgoto

que passava por baixo do velho barraco. Era preciso entrar agachado no

canal, andar três metros com os pés afogados na lama, rastejar um pouco

no porão até a porta, um buraco com menos de um metro de diâmetro.

Dentro, não dava para ficar em pé. Era um retângulo da altura da velha

geladeira depositada ali havia anos. Três das quatro paredes eram barrancos

de terra e a outra era uma chapa de ferro, que isolava o porão da rua.

A luz era a natural, assim como a ventilação, que vinha de grandes frestas


do teto de madeira, o assoalho do barraco. Por uma portinhola escondida

embaixo da pia da cozinha da casa, recebia água várias vezes ao dia e, na

hora das refeições, era abastecido com o seu prato obrigatório de arroz,

feijão, farinha e carne acompanhado de refrigerante ou suco de fruta,

pipoca e bolinhas de amendoim cobertas com chocolate.

A pequena porta também era um canal de comunicação da casa com

a Toca. Nos dias em que estava mais ansioso, coisa não rara, Juliano implorava

para alguém conversar com ele pela portinhola.

O apelo era sempre por novidades, qualquer novidade.

- Qual a fofoca de hoje? Conta, conta - insistia Juliano com Luz, sua

interlocutora mais freqüente.

Alguns objetos ajudavam a passar as horas. Juliano ficava a maior

parte do tempo no estrado de madeira, sobre um colchonete, envolvido

com a leitura dos livros de filosofia, de sociologia e de alguns sobre

grupos guerrilheiros da Colômbia e do movimento zapatista do México.

Tinha imagens de Nossa Senhora Aparecida e de São Judas Tadeu ao

lado da cama e uma folha de cartolina fixada no barranco com um texto

escrito à mão. Era uma oração de Santo Expedito que ele rezava no mínimo

dez vezes por dia.

“Vós que sois o padroeiro das missões impossíveis, protegei-me nos

momentos de extremo risco, nas horas de grande perigo, frente às ameaças

do mais vil inimigo. Protegei-me da ponta das espadas, dos ataques

e das traições...”

Outro conforto da masmorra era uma televisão de 14 polegadas, com

videocassete. Juliano passava horas assistindo sozinho a filmes de aventura

alugados em uma locadora de Botafogo.

Às vezes tinha a companhia da amiga Luz. Além dela, somente os

donos da casa e os principais gerentes da boca sabiam onde ficava a Toca,

mas raramente tinham o acesso autorizado. As eventuais saídas noturnas

eram geralmente orientadas pelo missionário Kevin, que informava a distância

pelo celular qual era a situação no morro.

As saídas se tornaram freqüentes quando Juliano criou um “diálogo

permanente” entre traficantes e intelectuais. O tema central das conversas
era a violência que atingia os moradores do morro e assustava a cidade.

Ele também tinha esperança de encontrar nesses debates idéias para o seu

grupo sair da crise, algum apoio para mudar de vida ou, pelo menos, para

escapar da morte, sua e de seus homens. Alguns contatos foram feitos

pelo missionário Kevin, que também providenciava a estratégia de acesso

dos convidados à favela. Os primeiros convidados foram os escritores

que fizeram livros sobre os jovens de vida parecida com a dele, como o

romancista Paulo Lins, que escreveu Cidade de Deus. Juliano tinha esperança

de ouvir dos escritores propostas para salvar os jovens do risco de

morrer no narcotráfico.

Os encontros com o compositor Marcelo Yuca, do grupo O Rappa,

eram uma tentativa de Juliano de trazer para a Santa Marta o trabalho

social que o convidado desenvolvia numa outra grande favela da zona

norte. Havia três anos, os adolescentes de Vigário Geral vinham recebendo

aulas de percussão de Yuca e orientação musical de outros artistas

do grupo. Assim como Lins, Yuca ficou amigo de Juliano, mas recusou a

proposta para não vincular o seu projeto ao narcotráfico. Nesses encontros,

Yuca aproveitava para discutir o papel nefasto dos traficantes entre

os jovens. Juliano manifestava o desejo de algum dia abandonar o crime,

mas argumentava que sua geração tinha um papel a cumprir no morro.

Sabia do risco de morrer a qualquer hora, mas tinha esperança de vencer

a fase difícil e virar uma espécie de herói dos favelados. Acreditava que

os jovens precisavam de sua liderança e que a vida na comunidade seria

pior e sobretudo mais violenta se o chefão fosse outro. E fez uma revelação

a Yuca.

- Meu sonho é fazê uma revolução dentro do Comando Vermelho, pôr



em prática o lema da paz, justiça e liberdade dentro de meu morro.

As boas relações com a Casa da Cidadania levaram Juliano a ampliar

os seus diálogos com os intelectuais do “asfalto”. O missionário Kevin

era procurado quase todos os dias por algum repórter que queria subir o

morro atrás de informações sobre histórias de violência. E se a reportagem

envolvesse drogas ou o tráfico, o missionário sempre providenciava

o contato com algum porta-voz autorizado por Juliano a dar entrevista.

Por causa da traição do passado, Juliano exigia que o escolhido se apresentasse

aos repórteres com o rosto encoberto e um codinome.
Durante o período de caçada mais intensa a Juliano, o porta-voz mais

freqüente da boca foi um gerente, que se apresentava a cada dia com

um apelido diferente. Numa mesma semana ele chegou a ser personagem

de reportagens de destaque em dois jornais do país. Em uma delas,

publicada em O Dia , falou como se fosse chefe dos vapores, Zé do Pó.

Na outra, onde apareceu numa foto armado com fuzil, deu entrevista ao

repórter Marcos Uchoa, do jornal O Estado de S. Paulo, como se fosse

o traficante Tá Manero, que se queixava das execuções praticadas pela

polícia no morro.

Impressionado com a força do funk no Rio e do rap em São Paulo,

Juliano também se aproximou de suas maiores lideranças. E passou a incentivar

esses movimentos culturais no morro, com a injeção do dinheiro

da boca para recuperar o antigo prestígio do tradicional baile das noites

de sexta-feira na quadra. O baile virou uma festa que misturava rap, funk

e pagode, mas dava enormes prejuízos.

O paulistano Mano Brown, líder do grupo Racionais RCs, maior sucesso

do rap nacional nos anos 90, também queria conhecer o traficante

com preocupações sociais. Quando soube disso, Juliano encarregou o

amigo Kevin de fazer um contato com ele urgente:

- Esse Mano Brown é o revolucionário dos pobres. Preciso conversá

com ele de qualquer jeito. Te vira, Kevin - exigiu Juliano.

O encontro aconteceria de surpresa, por iniciativa de Juliano. Organizou

um bonde para furar o cerco da polícia e levá-lo até o morro do

Salgueiro, onde Mano Brown e os Racionais iriam se apresentar num

sábado à noite.

A pressa de Juliano em encontrar Mano Brown tinha uma justificativa.

Ele fora informado de que, durante a temporada de shows no Rio,

os integrantes dos Racionais haviam planejado uma visita à cadeia para

conversar com uma liderança de seus inimigos do Terceiro Comando, o

ex-chefão do morro do Juramento, José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha.

Preso havia mais de dez anos,

Escadinha se tornara compositor e sonhava ter uma de suas músicas

gravadas no disco dos Racionais, que a princípio gostaram da idéia.

- Aí! Eu sou o Juliano VP, com muita paz, justiça, liberdade. Vamo

levá uma idéia? - apresentou-se.
Acompanhado do missionário Kevin, Juliano assistiu a uma parte da

apresentação dos Racionais no salão do Salgueiro, mas deixou para abordar

Mano Brown na hora em que ele estava conversando no meio de uma

grande concentração de jovens da comunidade, a maioria seguidores do

rap e alguns dirigentes do tráfico local. No começo da conversa, Mano

Brown achou estranha a surpresa, mas acabou gostando da conversa conduzida

sempre num tom de gravidade por Juliano.

- Porra, Mano. Tu tá sabendo que o Escadinha é do Terceiro Comando?

Aí! A galera do Comando Vermelho é maioria, rapá. Vai odiá se tu

gravá um rap desse alemão inimigo. Teu coração tem que batê CV, cara.


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