O dono do morro dona marta



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estava a caminho. Por ordem dele, o pessoal passou o telefone para as

mãos de Careca. E ele não teve coragem de falar do rompimento da guia

de Exu.


- E aí, então? - perguntou Careca.

- Chegou a tua hora, Careca. Tu tem que nos panhá aqui. Vembora!

Vembora! - ordenou Juliano.

- Aqui onde? - perguntou Careca.

- Tamo cercado na subida do morro pela Mundo Novo. Temo que

esperá a hora certa pra sair daqui.

- Vô descolá um carro, deixa comigo.

- Espera o nosso sinal. Só vem se tivé limpeza.

Perto da meia-noite, pela visão que eles tinham no alto, a situação parecia

tranqüila no lado do acesso de Laranjeiras. Pelo celular eles informaram

ao chefe que também não havia nenhuma invasão policial pelas

laterais, nem pelo lado de Botafogo. Convencido de que a policia tinha

desistido da busca, Juliano telefonou a Careca para dar a ordem:

- Venha! Tamo atrás da amendoeira.

Careca desligou o telefone, abraçou Cristina dos Olhos já ao lado do

carro emprestado por um birosqueiro do Cantão. Era um Fiesta 92, meio


surrado, já bastante familiar pois tinha sido usado em outras missões do

piloto da quadrilha.

Para evitar o forte ruído do motor, Careca iniciou a descida da ladeira

com o câmbio em ponto morto, para levar socorro aos parceiros.

Minutos depois era inútil erguer os braços para se proteger dentro

do Fiesta. Sentado no banco de trás, Paranóia, numa reação instintiva,

tentou se defender levantando o fuzil. Uma das balas que vararam o carro

bateu no cabo da arma. Paranóia viu o momento em que outro tiro jogou

a cabeça de Careca para trás. O impacto do tiro de fuzil no rosto levou à

morte instantânea o melhor motorista da favela.

Para Juliano, a morte de Careca representou também a perda do último

amigo de infância que o acompanhava na trajetória do crime. Eles

cresceram juntos, freqüentaram as mesmas igrejas e terreiros, estudaram

na mesma escola e, na adolescência, se destacaram como integrantes de

uma gangue de surfistas, a Turma da Xuxa.

Na madrugada, os primeiros curiosos que se aproximaram para ver o

corpo no carro ouviram dos policiais um comentário:

- Liga, não. Tudo que é bandido acaba desse jeito.


CAPÍTULO 3 TURMA DA XUXA

Desafiar um ao outro era a diversão predileta da dupla Careca e Juliano.

Competiam nos campos de terra de futebol da favela, nas brincadeiras

de guerra de ovo, no vôlei praticado sobre a cerca dos varais, nas

salas de aula em dia de prova e até nas atitudes mais íntimas, como no

concurso particular que promoviam para ver quem praticava sexo solitário

com mais freqüência. As vezes o irmão de Careca, Vico, participava

das brincadeiras no salão do Terreiro da Maria Batuca.

Era Juliano quem anunciava o resultado dos desafios, para quem quisesse

ouvir. Que viado, puto!

Que viado, puto! - gritava, se fosse o perdedor. A vitória também

era anunciada de forma não muito diferente. - Viu, seu viado, puto! seu

viado, puto!

De tanto ouvi-lo repetir os palavrões, o amigo passou a chamá-lo pelas

iniciais VP, que aos poucos foram incorporadas ao nome:Juliano VP.

O apelido, embora fosse motivo de deboche entre os amigos, nunca o

incomodou. Por maior que fosse a provocação, Juliano não ia muito além

de uma resposta padrão:

- Já que tu me chama de viado, posso dormi com a tua mãe hoje?

Pelo menos uma mãe do morro aceitou a provocação. Embora casada,

Maria Madalena, a Madá, aproveitava a ausência do marido Osmar,

dono da maior birosca do beco das Maravilhas, para conversar na janela

durante horas com o vizinho Juliano. Um dia o convidou para assistir à

televisão na sala. O casal de filhos, Veridiana, de 10 anos, e Alen, de 15,

estava na escola. Estratégicamente sintonizou o programa infantil Xou da

Xuxa, apresentado pela modelo Xuxa Meneghel, que nos anos 80 fazia

sucesso no Brasil. Madá aumentou o nível do volume da TV e foi desafiar

Juliano no quarto.

- Me mostra que você não é VP, mostra?

Durante alguns dias Juliano trocou a escola pelas aulas secretas de

Madá, a mulher de sua iniciação sexual. Um segredo só revelado na épo
ca ao amigo de infância Mentiroso, que era três anos mais velho e mesmo

assim ficou impressionado com a aventura amorosa.

- Ela mesma tirô a minha bermuda, cara. Baixô até o chão e passô a

mão nimim, assim, por cima da cueca - disse Juliano.

- E aí, o que você fez? - perguntou Mentiroso.

- Fiquei loucão, mas fiz nada, não. Ela foi fazendo tudo... Devagar

enfiô a mão esquerda pelo lado da cueca e me pegô por baixo. A outra

mão entrô por cima do elástico da cintura...

- E você falô o quê?

- Fiquei gemendo, sentindo um barato, um choque enquanto ela não

parava um segundo e me beijava, me beijava... Eu já tava quase enlouquecendo

quando, de repente, ela parô tudo e pediu que eu ficasse calmo.

- E você tava nervoso?

- Nervoso eu fiquei quando ela tirô a minha cueca. Começou tudo

de novo, com mais liberdade. Você não vai acreditá, cara... Tava demais,

demais, e de repente...

- Você gozô?

- Não, não. Ela parô de novo. Perguntô se eu tava mais calmo e se eu

aceitava um presente diferente.

- Que presente?

- Eu tava na mão dela, sabia o que falá não! E nem precisô. Doidão,

doidão.


- Que presente, cara?

- Que lábios. Que mulhé, mermão! É, parceiro. É uma coisa muito

séria, dá para explicá, não.

A generosidade era uma outra virtude de Madá. Os carinhos, que tanto

impressionaram Juliano, despertaram o interesse dos amigos adolescentes.

Todos diariamente assistiam à televisão na casa dela e alguns, como

Flavinho, Renan e Soni, também experimentaram as virtudes da Gostosa

da Paraíba, como falavam. Com o tempo, Juliano encontrou outro forte

motivo para freqüentar a casa de Madá. Tornou-se amigo do filho dela,

Alen, já líder da maior gangue de adolescentes da favela. Os programas

na casa de Madá deram ao grupo de adolescentes o apelido de Turma da
Xuxa. Eles gostavam de chamar atenção, de levar à favela os modismos

de quem morava nas áreas nobres do Rio. No universo restrito da comunidade,

a maioria deles podia se considerar um privilegiado, que morava

na “zona sul” do morro, área mais próxima do asfalto, que dispunha de

água potável, energia elétrica e esgoto parcialmente canalizado.

Os principais líderes, Alen e Flavinho, filhos de birosqueiros, se achavam

de classe média. Freqüentavam academia de judô, iam ao cinema lá

na cidade, tinham em casa aparelhos de som de boa qualidade. Viviam de

mesada. Era pouco dinheiro, mas dava para comprar produtos falsificados

de grifes famosas no comércio barato do centro da cidade, o que no

morro era considerado um privilégio.

Alen e Flavinho traziam as novidades. Depois toda a Turma da Xuxa

dava um jeito de usar uma camiseta da “Abidas” e uma bermuda ou tênis

da “Nique”, imitações das famosas marcas multinacionais.

Os que trabalhavam, como os boys Vico, Careca, Jocimar, Mendonça

e Paulo Roberto, usavam a maior parte do salário para reforçar a renda

da família. Quando sobrava dinheiro também compravam roupa e acessórios

da moda que apareciam na televisão ou que observavam na rua.

Menos Paulo Roberto, que não ligava para moda. Era um dos mais maduros

do grupo e um dos mais pobres. Órfão de pai, morava em um barraco

de madeira de três cômodos, na parte alta do morro, com quatro irmãos,

três homens e uma mulher. A mãe sustentava os filhos lavando roupa

por encomenda para o asfalto. Paulo Roberto tentou introduzir os irmãos

Galego, Chiquinho e Germano na Turma da Xuxa, mas eles não foram

aceitos porque viviam maltrapilhos.

Os estudantes Juliano, Mentiroso, Du, Claudinho estudavam na Escola

México e faziam cursos profissionalizantes gratuitos. As escolas técnicas

tiveram pouco valor para Claudinho quando começou a procurar

emprego. Só conseguiu vaga como faxineiro na empresa Mercúrio Conservadora

e Administração, em Botafogo. Era um serviço pesado em troca

de meio salário mínimo, algo como trinta dólares mensais, valor que

o deixava ainda mais revoltado com as atitudes sovinas do pai, Zé Lima,

dono de uma birosca bem “surtida” na esquina do Repente com o beco

Padre Hélio. O pai se negava a dar mesada e o agredia com violência


desmedida se houvesse algum pedido insistente de Claudinho. Juliano

tinha problemas parecidos com o pai Romeu, nordestino como Zé Lima

e igualmente duro e intransigente com os filhos. Muitas vezes Juliano foi

surrado na frente dos amigos por se recusar a carregar sobre os ombros

os sacos de mantimentos que o pai comprava no pé do morro e exigia

que ele levasse pelas escadarias até a birosca no beco Padre Hélio, 200

metros acima.

Claudinho tinha uma certa inveja de Juliano porque desistiu de estudar

bem antes dele. E por causa das disputas por namoradas, quase sempre

vencidas pelo concorrente. Dos 15 aos 16 anos Juliano fez um curso

de desenho e ficou encantado com o que aprendeu. Mostrou o seu talento

ao vencer o concurso promovido pelo grupo cultural ECO para a escolha

de um ícone para o programa de colônia de férias da entidade. Juliano

venceu com um desenho da família Smurf, personagens de programas

infantis de televisão, reproduzido nas camisetas do ECO, entidade ligada

à Associação de Moradores. Animado pelo sucesso no concurso, tentou

convencer os amigos a seguirem o seu exemplo.

Apenas Carlos Eduardo Calazans, o Du, o acompanhou no curso e

num projeto de arte e pintura que levou os alunos a colorirem as casas de

alvenaria. O projeto foi um fracasso quase absoluto. Juliano escolheu o

muro da casa de um cego muito conhecido no morro, seu Ananias, como

base para a sua obra: o desenho de Nossa Senhora Aparecida, em vários

tons de amarelo e azul. Apenas o cego elogiou a pintura.

Os artistas mais talentosos da turma, os irmãos Careca e Vico, também

se destacavam por outras habilidades. Eram bem diferentes um do

outro, mas tinham uma afinidade de almas gêmeas. Careca também era

chamado de Abscesso por alguns amigos por causa de uma pequena perfuração

que tinha na face, cicatriz de uma infecção mal curada. Usava um

bigode fininho, tinha a pele sempre coberta por espinhas. Baixinho, um

metro e sessenta e quatro centímetros, era extrovertido, bem-humorado,

ao contrário de Vico.

Embora fosse gago, o que dificultava se aproximar com naturalidade

das meninas, Vico fazia sucesso com elas. Era alto, tinha um metro e

oitenta e oito centímetros de altura. Tímido e sério, seu raro sorriso mos


trava dentes perfeitos. O corpo era de um atleta que jogava diariamente

futebol e basquetebol, antes ou depois de “pegar onda” nas praias do

Leme e do Arpoador. Como o irmão, gostava de samba, era o mestre-sala

da escola Império de Botafogo. Mas o seu desempenho em todas as suas

atividades dependia sempre da companhia do inseparável irmão Careca.

Numa tarde de sábado Vico atraiu a curiosidade dos moradores ao

subir o morro carregando pendurado às costas um objeto que muita gente

achou estranho. Ao lado dele, o irmão Careca respondia às perguntas dos

curiosos que se aproximavam para vê-lo de perto. Era seguido pelo amigo

Luís Carlos, o Doente Baubau, que anunciava a novidade aos gritos

para todo mundo ouvir.

- Na moral, olha aí!

Era uma prancha de surfe, de quatro cores, roubada nas areias do

Arpoador. A prancha de Vico, a primeira do morro, mudou a rotina da

Turma da Xuxa. Nos fins de semana, surfe virou programa obrigatório

e com todos os rituais dos praticantes do esporte das áreas nobres da

cidade. Antes de descer para o mar, os integrantes da Turma passaram

a descolorir os pêlos dos braços e das pernas com uma mistura de água

oxigenada e Blondor, uma tintura química. Embora a maioria soubesse

apenas deslizar sobre as ondas na beira da praia, brincadeira conhecida

como “jacaré”, eles queriam ganhar a aparência loira dos jovens de classe

média que praticavam surfe nas praias da zona sul. E principalmente

conquistar alguma garota deles.

Os morenos-loiros Du e Juliano VP eram os que mais abordavam as

meninas das praias do Leme e de Copacabana. Vico era mais bonito que

os dois. Mas, longe do ambiente que lhe era familiar, ficava mais gago e

isso o intimidava. Preferia enterrar a ponta da prancha na areia e ficar em

pé com os amigos em volta dela. A prancha representava uma espécie de

troféu para o grupo. Dali observavam, com grande interesse, o desempenho

da dupla Du-Juliano em suas investidas. Do sucesso dos mais ousados

dependiam as futuras abordagens de cada um. Haveria regra para o

favelado conquistar uma menina inacessível da sociedade?

A fórmula de Juliano era camuflar as diferenças de classe social. A

abordagem por exemplo, tinha que ser na praia, um raro espaço demo


crático da cidade. Na areia, as diferenças desapareciam se alguns detalhes

estéticos não fossem esquecidos. Modelos e marcas das bermudas,

sungas, óculos ou qualquer outro acessório poderiam ser, de preferência,

rigorosamente iguais aos usados pela maioria.

Precisavam também reprimir qualquer comportamento mais extravagante.

Gargalhadas, brincadeiras de luta, futebol, frescobol, ginástica,

guerra de areia ou de água eram consideradas atitudes excludentes, coisas

de favelado.

Era necessário senso de oportunidade. A primeira investida certeira

de Juliano começou numa situação de emergência, com a praia do Leme

lotada numa manhã de sábado. A menina estava em apuros, sem conseguir

vencer o repuxo” das ondas, que a empurrava para longe da areia. O

povo gritava pelo grupo de salva-vidas. No mar, surfistas deitados de bruços

sobre as pranchas “remavam” com os braços para tentar socorrê-la

o mais depressa possível. Mas eles estavam longe, a mais de 50 metros,

quando Juliano saiu do meio da multidão e se jogou no mar.

- Segure firme no meu pescoço, princesa. Eu sô bom nisso!

Vencidas as ondas mais altas, Juliano recebeu o apoio de Du e de dois

estranhos para levar a menina até a areia. Era uma filha de japoneses com

cidadania brasileira. Da família, talvez devido ao desespero, apenas a

irmã, Haruno, reconheceu o gesto e agradeceu o salvamento.

- Não sei nem como te agradecer.

Foi a primeira frase do namoro que durou pouco mais de um mês,

sempre com encontros que começavam ao meio-dia nas areias do Leme.

Haruno parecia apaixonada até o dia em que Juliano não conseguiu mais

esconder onde morava.

- Santa Marta!

- Onde fica?

- Em Botafogo!

- Em Botafogo? Eu moro em Copacabana, como eu não conheço?

- Fica lá em cima, no morro.

- Então você mora na favela Dona Marta.

- Dona Marta é o nome do morro, onde tem o mirante, a floresta e a
favela. A favela chama Santa Marta.

- Santa Marta ou Dona Marta... Não importa! Você é um favelado,

entendeu? Minha mãe vai me matar!

As razões para querer o fim do namoro iam muito além da provável

dura reprovação da mãe. As melhores amigas condenaram antes dos pais.

Sugeriram a Haruno evitar o namoro com um jovem que cometia erros de

português. Algumas, as que o conheceram pessoalmente, riam de Juliano

sempre que ele trocava a pronúncia de algumas letras ou quando convidava

a namorada para passear:

- Haruno, vamo dá uma volta na avenida Atrântica?

- Atrântica?

Os erros de Juliano não eram o que mais a incomodava. Afinal, ela

também quase nada sabia das gírias da favela. Um se divertia com a ignorância

do outro e gostavam de trocar informações.

- Você disse que está bolado comigo. Bolado? O que significa?

- Adivinha!

- Gamado, apaixonado...

- Craro que não, Haruno. É bravo, incomodado.

- Não é craro. É claro, certo, Juriano?

- Sem caô.

- Caô?

- Sabe o que é caô não, aí. Já é demais. Tu nunca entrô numa favela



na sua vida, não?

- Eu, não. Dizem que só tem bandido lá em cima...

- Apelá não vale!

Haruno estava sendo sincera. O medo de uma simples aproximação

de alguém da favela superava qualquer preconceito. Ela escreveu numa

carta as razões que a levaram a acabar com o namoro.

“Querido Juliano:

Choro por ter tomado esta decisão. Estive pensando demais e não encontrei

resposta para muitas perguntas:

Como namorar alguém que eu não posso visitar?


Como faríamos no dia do seu aniversário?

Festa no morro antes ou depois do tiroteio? Eu morreria de medo!

E para conhecer a sua mãe, o seu pai?

Que futuro teríamos? Casar? Ter filhos?

Você me disse que na favela não tem escola, não tem hospital, não tem

pracinha, não tem cinema... Me perdoe, mas não seria um bom lugar para a

gente viver.

Você mudaria de vida? Sairia do morro para ficar perto de mim? São tantas

dúvidas, O certo é parar por aqui, antes que eu venha a te amar. Talvez algum

dia a gente se aproxime. Hoje não dá nem para a gente ter uma amizade. Seus

“amigos”, convenhamos, jamais seriam amigos dos meus. Apenas dois quilômetros

separam a minha casa da sua, mas a distância entre nós parece infinita,

você não acha?

Haruno”


Embora soubesse que o namoro não teria futuro, Juliano ficou triste

ao receber a carta. Estava gostando de conviver algumas horas por dia

com uma menina que, sem saber, estava apresentando a ele um mundo

que desconhecia. Aprendeu a entrar num bar e pedir uma mesa ao garçom.

Conheceu as filas para a compra de ingressos de shows de rock.

Descobriu a graça de parar nos corredores dos shopping centers apenas

para ver o movimento e ser visto.

Voltou para a favela com uma sensação de perda e foi direto para o

barraco de Luz, a amiga confidente. Queria mostrar a carta que recebeu.

Com orgulho a leu em voz alta para observar a reação da amiga e pedir

sua opinião. Luz ouviu atentamente. Depois pediu para Juliano reler a

parte final, a que se referia aos amigos: “...

Seus “amigos”, convenhamos, jamais seriam amigos dos meus.

Luz pediu para ver a carta e ter certeza do que tinha ouvido. Ficou

revoltada ao constatar a palavra amigo entre aspas.

- Saca a maldade, Juliano.Cafajestada.Tá esculachando teus amigos.

- Tem certeza? Deixa eu vê.

- Que bagulho é esse aí: essa palavra amigos com aspas. Quer dizê:

tá nos chamando de ladrão, trombadinha, vagabundo, muquirana. E tu
gostô dessa grã-fina?

- Não exagera, Luz.

- De onde é esta grã-fina?

- Copacabana.

- Tinha que sê de Copacabana. Porra, Copacabana, cumpadi? Juliano!?

Juliano sabia que Copacabana, para Luz, significava discriminação,

violência, crueldade. Eles se conheceram no bairro, e ficaram amigos no

dia em que ele foi preso pela primeira vez. Juliano era balconista de uma

loja de jóias de prata. Luz viu quando os policiais o levaram, sob acusação

de também vender trouxinhas - pequenos pacotes de maconha - à

freguesia. Luz avisou à família. E, com a mãe de Juliano, passou a noite

no banco da delegacia para pressionar os policiais, numa tentativa de intimidar

possíveis maus-tratos, tortura. Nos intervalos dos procedimentos

burocráticos do inquérito sobre a prisão Luz conversou longamente com

Juliano. Queria avisá-lo dos riscos que iria correr no xadrez. Passou a

ele um pouco da experiência de quem já havia sofrido algumas vezes os

horrores das detenções temporárias e prisões. Convenceu Juliano de que

era absolutamente normal o nervosismo naquela situação, diante da iminência

de entrar pela primeira vez num xadrez. Sugeriu que ele demonstrasse

tranqüilidade e que ficasse atento aos movimentos dos parceiros de

cela. Que não se deixasse surpreender diante de alguma agressão física

ou moral.

Os conselhos da primeira conversa mais profunda que tiveram não

chegaram a ser necessários naquele dia. Mas seriam bem aplicados por

Juliano no futuro. Como era menor, tinha 16 anos, Juliano não chegou a

dividir cela com ninguém. Libertado na manhã seguinte, bem cedo, saiu

da delegacia já amigo de Luz, que o convidou a caminhar em Copacabana.

Para protelar a volta para casa, onde com certeza seria duramente

criticado pelos pais, Juliano passou o dia conversando com Luz, que o

levou para conhecer o primeiro lugar onde morou na rua, quando tinha

nove anos, uma marquise da Hilário de Gouveia. Ali encontraram um

velho conhecido, também morador de rua, Romerito, lutador de boxe

aposentado. Os três fumaram um cigarro de maconha. E conversaram
sobre o passado de Luz, que viveu parte da infância e adolescência nas

ruas do bairro.

Os anos de infância vividos nas calçadas de Copacabana deixaram

cicatrizes no corpo de Luz e ferimentos na alma. As piores marcas foram

causadas pelos agressores disfarçados de gente civilizada, que se

escondiam no escuro dos apartamentos, de onde lançavam pela janela o

balde com água fervendo sobre o seu corpo e os das outras crianças que

dormiam no chão.

Muitas madrugadas acordou com a dor das queimaduras e os gritos

de horror das amiguinhas. A única vingança possível era tentar acordar

alguém com um choro agudo de criança apavorada, a implorar socorro,

alguma proteção contra o ódio que vinha lá de cima. Às vezes percebia

que algum curioso espiava pela fresta da cortina o seu sofrimento.

Alguns acendiam a luz e apareciam na janela. Eram os solidários. Luz

descobriu logo que uma lâmpada que se acende no prédio às escuras é o

máximo de atenção que uma criança de rua desperta nas madrugadas de

Copacabana.

- Luz! Veja! Luz, luz!

De tanto as amigas chamarem a atenção para as luzes que eram acesas

nos prédios, Luz virou o apelido da menina que odiava o nome de Cleonice,

escolhido pelo pai de tristes lembranças. Só quando alguém acendia

a luz, Luz parava de chorar. E saía soluçando pelo meio da rua em busca

de remédio para as feridas da queimadura. Quase sempre buscava a proteção

de Romerito, o ex-lutador de boxe que virou morador de rua desde

o dia em que foi nocauteado pelo alcoolismo. Embora invariavelmente

bêbado, Romerito a acompanhava até o hospital. Se o ferimento não fosse

grave, cedia a sua cama de papelão e oferecia o melhor remédio para

as dores de Luz: promessas de vingança. Ela adormecia vendo o ex-lutador


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