perguntei para o missionário, em voz baixa, qual dos dois caminhos era
o mais seguro para a gente seguir. Ele respondeu que o melhor seria ficar
calado para não chamar a atenção das patrulhas da PM, que estavam circulando
pelo morro.
Paranóia nos acompanhou até a bifurcação para indicar o caminho
da direita. As marcas do piso indicavam que era lugar de passagem, o
principal caminho que levava ao miolo da favela, de maior concentração
de barracos. Depois de uns cinco minutos de subida íngreme, mais um
susto: de repente estávamos cercados por uns vinte homens armados.
Tínhamos entrado numa área mais aberta, um círculo com dois grandes
caixotes de alvenaria em volta de uma pequena queda-d’água, uma mina
natural, a praça das Lavadeiras.
Nossa chegada movimentou uma parte do grupo, que veio ao nosso
encontro. Ninguém se apresentou, mas um deles chegou mais perto.
- O general já tá esperando vocês, aí. Dá um güenta que já vamo lá
- disse o menino, que aparentava uns 15 anos e carregava uma espingarda
quase do tamanho dele.
Soube, minutos depois, o nome de guerra dele: Pardal, o especialista
no conserto dos chuveirinhos e que era bem mais velho do que eu pensara:
tinha 20 anos.
Pardal ficou calado ao nosso lado. Percebi que estávamos dentro da
boca, que na Santa Marta se deslocava em função das circunstâncias.
Naquele ano de 1999 a base mais freqüente ficava acima dali, numa área
mais aberta e usada em alguns pontos para o depósito de lixo, a região da
Pedra de Xangô. Mas, por causa das patrulhas policiais, havia se deslocado
para a primeira mina porque era um ponto de convergência de vários
becos e vielas, facilitava o acesso dos usuários e significava também mais
opções de fuga.
A primeira impressão foi a de que só os olheiros pareciam extremamente
tensos, pois os inimigos deles podiam chegar a qualquer momento
por todos os lados. Os homens de Juliano estavam reunidos em pequenos
grupos. Alguns mexiam nas armas, como se estivessem cuidando da
manutenção. Os jovens com saquinhos de plástico amarrados na cintura,
os vapores, estavam praticamente parados, era pequeno o movimento de
compradores de pó e de maconha. O grupo mais agitado estava ao redor
de um sentinela, que segurava um bicho morto pelo rabo.
- É um gato ou é um rato? Quem acertá leva de presente pra casa -
dizia o sentinela.
A distância, na escuridão, pensei que fosse um gato ou cachorro pequeno.
- É rato - garantiu o missionário Kevin, e completou -, este é o único
lugar do mundo onde as ratazanas são maiores que os gatos.
Caminho liberado, entramos à direita e em seguida descemos algumas
vielas, agora orientados por Pardal. No caminho, perguntei pelo amigo
de infância dele, o Nem. A resposta foi o silêncio; ele parecia realmente
atento aos riscos do caminho. Várias vezes fomos obrigados a parar por
ordem de outros dois olheiros, que seguiam mais à frente.
Percebemos que estávamos chegando ao esconderijo pela quantidade
de sentinelas espalhados nas lajes e nas curvas de um beco cercado de
barracos geminados, a maioria com mais de dois pavimentos.
Fizeram sinais para entrarmos depressa num prédio que já estava com
a porta aberta. Era uma casa de alvenaria, com a cozinha e a sala equipadas,
cheias de eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos, como se fosse
de uma família de classe média. Os donos da casa eram trabalhadores.
A mulher dormia. O homem estava acordado, de bermudas, sem camisa
e assistia a um filme na TV, sentado no sofá. Alguns jovens dormiam no
chão, um deles ao lado de um fuzil. Pardal nos levou até a área de serviço,
onde subimos uma escada bem estreita até a laje do terceiro andar.
Juliano estava nos esperando na varanda, um espaço parcialmente
coberto, com uma churrasqueira e
muitos varais cheios de roupas penduradas.
- Tudo tranqüilo?Aqui você tá seguro, não se preocupa-disse Juliano
- É mesmo?
- Teus amigos tão aí atrás. Chega aí, vô te mostrá - disse ele, agachado
atrás da mureta da varanda para apontar, discretamente, um prédio branco
para o lado da Escadaria.
- Tá vendo, é o DPO!
Estávamos a uns 150 metros do único posto da Polícia Militar do
morro em 1999. A brincadeira de Juliano tinha um significado.
- E aí? Li aquele seu livro sobre os crimes dos PMs lá de São Paulo,
o Rota 66. Não vai escrevê sobre os crimes dos homi daqui, não? É papo
sério, aí!
Percebi as marcas do tiro de raspão na testa, o ferimento ainda não
estava bem cicatrizado. As histórias do último tiroteio, que levara à morte
do piloto de sua quadrilha, Careca, também estavam muito vivas na
cabeça dele. Já no começo da conversa deu para perceber que esse era o
motivo de ele ter me chamado para conversar.
- Não dá mais, eles estão matando os meus guerreiros, um por um.
Perdi oito nessa caçada deles.
- Oito?
- Pode contar aí: o último foi o Careca. Antes mataram o Podre, o
Pimpolho, o Taruga, o Borroso, o Noco, o Bira, o Tibet, o Marquinho, o
Rafael, o Caveirinha.
Eram onze. Reclamei do erro na soma e ele disse que nunca foi bom
em matemática. Erraria novamente os números ao falar do caso de 17 dos
seus homens presos naquele ano.
- Já prenderam mais de vinte. Isso é perseguição. Não dá mais, aí!
- Bom, prender traficante é obrigação da policia. Você queria que ela
fizesse o quê? - perguntei.
Ele queria me convencer a fazer uma reportagem sobre a violência
dos últimos meses na favela, patrocinada pelo seu inimigo Carlos da Praça.
Embora estivesse preso na Delegacia do Leblon, segundo Juliano, Da
Praça conseguia permissão para sair da cadeia e acompanhar as incursões
da polícia na favela.
- Ele põe uma máscara e vem junto para apontar quem é quem da
minha rapaziada. E está pagando 100 mil pela minha cabeça.
Achei um exagero e aproveitei para perguntar sobre a história mais
recente: esclarecer o motivo do último combate contra a quadrilha de
Carlos da Praça, que resultou no tiroteio com a polícia e a morte de Careca.
O missionário Kevin o ajudou a explicar que no centro da briga com
o atacadista Da Praça estava o controle de quatro lucrativas esticas do
asfalto. Elas foram criadas por Juliano nas ruas próximas à favela, nos
bairros de Botafogo e de Laranjeiras, para facilitar o acesso dos usuários
às drogas quando o morro estivesse cercado.
As esticas eram uma forma de evitar a sua falência no tráfico, limitado
pelas caçadas policiais permanentes desde a sua fuga cinematográfica
da Polinter. Espécie de minibocas, funcionavam nas esquinas mais
movimentadas dos bairros de classe média e exigiam a atuação discreta
dos vapores, que vendiam os sacolés nos bares e para os motoristas que
passavam pelo ponto. Os sentinelas davam a cobertura, com armas escondidas
sob as roupas, geralmente misturados aos frequentadores do
botequim mais próximo.
Sem a proteção geográfica dos morros, eram de fácil repressão para
a polícia e vulneráveis ao ataque de inimigos como Carlos da Praça. Ele
aproveitou a fragilidade da quadrilha de Juliano para tirar dele, com mão
de ferro, duas de suas esticas mais rentáveis. Foi para recuperar esses
dois pontos que os guerreiros fizeram o ataque fracassado da rua Assunção,
em fevereiro de 1999.
- Tava tudo certo, o problema foi encontrar lá os homi da P-2 no acer
to com os alemão. Aí deu no que deu - explicou Juliano.
Paranóia, considerado o “herói” do tiroteio por ter salvo a vida do
chefe, ouviu calado a história contada por Juliano. Ainda se recuperava
dos ferimentos nos braços e mostrou que uma das balas continuava alojada
no corpo. Fiquei impressionado com a aparência dele, o modo de se
vestir, o jeito de falar, parecia que eu estava diante do meu filho, que é da
mesma geração. Quis saber de onde ele tirou coragem para enfrentar a
polícia numa situação tão adversa.
- Foi a certeza da morte, cara. Aí peguei o AR, botei na reta e fui
dando. Tava com uma cinta de 70 (projéteis). Só via o fogão na viatura,
na traseira, na lateral.
Ele agradecia por estar vivo graças ao “milagre” de uma santa. Ele
me mostrou a imagem dela, que carregava pendurada na corrente de ouro
do pescoço.
- Tá aqui o meu escudo: Nossa Senhora do Bom Jesus.
Aproveitei para saber como eles conquistaram a confiança do médico
que se dispôs a subir o morro, em época de guerra, para levar socorro aos
feridos do combate.
- Um cara manero, sangue bom limitou-se a explicar Juliano.
O missionário Kevin foi além.
- Esquema de mulher, de uma mina de fora do morro que só namora
com dono de boca.
- Como assim?
- A família dela tem grana, mora em Laranjeiras. Mas ela gosta dessa
vida, já foi mulher do Cagado, quando era o chefe do Vidigal.
- Mas o que isso tem a ver com o socorro ao Juliano?
- O pai dela tem dinheiro e ela também, porque só transa com os
frentes do morro. O médico é do esquema dela, conhece a família, essas
coisas, fica mais fácil. Bem, médico é profissional, tem que salvar a vida,
seja de quem for.
- Ele veio de graça?
- Não. Cobrou uma puta grana. Aí também não. Tirou o dele, óbvio.
- Meteu a faca?
- Não sei, parece que cobrou uns 1.000 dólares.
Eu conduzira a conversa para um assunto que não era do interesse
de Juliano, pelo menos naquela madrugada. Ele só queria falar das operações
supostamente comandadas por um prisioneiro. Eu disse que iria
verificar se, de fato, Da Praça estava saindo da cadeia dentro de alguma
viatura para comandar operações no morro. E, se fosse verdade, voltaríamos
a conversar.
Meses depois, sem que eu tivesse descoberto se a acusação era verdadeira
ou não, ele queria conversar comigo novamente. Dessa vez o esconderijo
era em outro lugar, fora da Santa Marta. A caçada continuava.
Mas com a mudança do governo estadual, em 1999, a polícia mudara de
tática.
Sob a orientação de um antropólogo, o subsecretário de segurança
Luiz Eduardo Soares, a policia deixara de matar no morro. Em vez de
operações truculentas, adotara a ocupação pacífica da favela, enquadrada
no Projeto Vida Nova. As patrulhas do Bope, em circulação permanente
pelos becos e vielas, afastariam os usuários, inviabilizariam parte
de atividade dos vapores na venda de drogas, levariam à falência quase
completa da boca. Os principais gerentes de Juliano foram presos, como
Tá Manero, que era um foragido da Justiça havia sete anos. Procurei a
namorada dele, Júlia, para saber o que tinha acontecido. Depois de ter
abandonado o apartamento de Botafogo para morar com o filho traficante
num barraco da favela, Júlia já falava com desenvoltura sobre a vida no
morro. E explicou que a prisão do namorado tinha uma causa simples,
objetiva.
- Nós temos dois cachorros bravos, que latiam quando a policia subia
atirando pra todo o lado. Mas agora, com a ocupação, os cães se acostumaram
com os homi. Esse foi o problema - disse Júlia.
- Como assim?
- Agora, com o morro ocupado, os policiais andam pra cima e pra
baixo sem correria, sem bangue-bangue. Aí os nossos cachorros não estranharam
mais. Não latiram pros homi quando vieram prender o Tá Manero,
entendeu?
A maior parte da quadrilha teve que fugir para os morros dos amigos
do Comando Vermelho que não estavam sob ocupação do Bope.
O esconderijo de Juliano passou para o complexo do morro do Turano,
onde voltamos a conversar. Por coincidência, estivera lá semanas an
tes para fazer uma reportagem sobre os jovens que viviam uma outra realidade
na favela. Depois de autorizado por um dos donos das bocas, o PC,
gravamos ali um programa para a TV sobre os profissionais, formados na
Universidade Estácio de Sá, vizinha do morro, que decidiram exercer a
profissão em benefício dos moradores de sua própria comunidade.
De volta para falar com um foragido da justiça, entramos no morro
como passageiros de uma Kombi que fazia o serviço de lotação. Muitos
universitários também usavam a linha para comprar drogas direto na fonte.
A maioria, para não correr riscos, preferia contratar os serviços dos
aviões do pó que faziam a ponte universidade-morro.
Juliano estava escondido no Turano sob a guarda de PC, que estava
viajando para a Colômbia.
Ele escalara sentinelas armados para proteger o seu hóspede foragido
24 horas por dia. Sabíamos que Juliano tinha liberdade de circular pelas
várias favelas do complexo, espalhadas pelos morros Escondidinho, 117,
Caixa D’água e Turano, onde moram quase cem mil pessoas. Obedecíamos
a regra básica de segurança para encontro com foragidos, a de não
ter conhecimento prévio do local do encontro. Tudo que fora combinado
era seguir até o fim da linha do lotação. No ponto final, eu e o missionário
Kevin já éramos aguardados por uma jovem, de uns 15 anos de idade,
que nos levou até o alto do morro e nos deixou à sombra de uma árvore.
Juliano chegou minutos depois. Parecia ter pressa de voltar para o lugar
de onde viera. Fomos objetivos.
- Tenho uma proposta. Quero que você escreva um livro sobre a história
da minha vida.
O missionário Kevin e outras pessoas já haviam me falado desse projeto
de Juliano. Já refletira um pouco sobre a idéia e resolvi recusá-la por
princípios. Interpretei que o desejo dele era de um livro que fizesse a sua
defesa pessoal ou algo que legitimasse a sua trajetória no crime, como
se fosse derivada apenas do processo de exclusão social que sofrera. O
outro motivo para recusar a proposta era mais sério, e de imediato falei
para Juliano:
- O problema de um livro desse é a conseqüência da notoriedade.
- Não entendi.
- Como você prefere ser chamado? De traficante, de criminoso...
- Bandido. Bandido!
- Lembra do Lúcio Flávio, do Meio-Quilo, do Bolado, do Brasileirinho?
- Lembro. Lembro.
- E o que acontece com os bandidos no Brasil quando ficam mais
conhecidos? Alguns são presos e tudo bem. Mas muitos são mortos. Não
quero ser instrumento da morte de ninguém.
Juliano reagiu indignado com a minha franqueza.
- Que isso, cara? Tira essa palavra da sua boca, isso nunca vai acontecê
comigo - disse ele enquanto fazia três vezes o sinal-da-cruz com a
mão.
Juliano ainda lembrava da primeira conversa que tivemos na carceragem
da Polinter, em 1996, quando eu falei do meu interesse em fazer
uma reportagem dentro de uma boca de cocaína. Expliquei que eram
coisas diferentes e que o meu interesse não havia mudado.
- Minha contraproposta é um livro sobre a tua quadrilha inteira, acho
que a sociedade precisa conhecer melhor a vida de vocês.
- Isso dá mais que um livro. Dá vários!
- Topo fazer um!
- Mas por que não sobre a minha vida? Tenho muita história, cara.
Quero que um dia meu filho ponha na idéia que esse bagulho do tráfico
é foda.
- Que idade ele tem?
- Doze, tá na idade foda!
- Você tem medo que ele siga o exemplo do pai?
- Muito, muito. Isso não pode acontecê de jeito nenhum.
- Por que você não escreve? - disse eu.
- Sô muito ocupado, cara. É muito bagulho pra tomá conta.
- Mas agora você é um foragido, aproveita o tempo...
- Não tem clima. Começamos fazendo o teu, depois eu dô um jeito
de fazê o meu.
Combinamos cada um pensar melhor nas propostas. Imaginei que
ele não tivesse muita noção da complexidade de um trabalho de apuração
jornalística com personagens fora-da-lei, condenados e foragidos da
justiça. Era sem dúvida um desafio, cheio de implicações éticas, morais,
legais. Antes mesmo de assumir. comigo mesmo, o compromisso de enfrentá-
lo, eu já deduzira que seria a reportagem mais difícil de meus 25
anos de profissão. Mas quando voltei ao esconderijo pela terceira vez eu
já estava decidido a conhecer de perto as histórias dos homens do CV da
Santa Marta. Deixei cartas na chefia da redação do meu trabalho na TV,
explicando a natureza da reportagem que faria. Era a maneira de fazer
um esclarecimento prévio aos meus colegas para a eventualidade de ser
preso na companhia de traficantes foragidos.
Os primeiros instantes de apuração deste livro confirmaram minha intuição.
Juliano promovera um “banquete” no coração de uma das favelas
do Turano para receber a visita da namorada Milene e de alguns amigos
da Santa Marta. Era começo de uma noite de sexta-feira, e a mesa, montada
sobre a laje de um barraco, estava cheia de frangos assados, farofa e
vinhos de garrafão, de preço popular. Havíamos chegado de táxi menos
de 50 metros dali e no caminho fomos monitorados, via telefone celular,
pelos sentinelas de Juliano em contato com o missionário Kevin.
Fiquei preocupado com a segurança. Achava que a qualquer momento
poderia haver uma invasão da polícia ou de alguma quadrilha inimiga.
Ninguém parecia preocupado com isso. O, missionário Kevin explicou
que eu não havia percebido, mas, em todo o acesso, a mais de uns 500
metros dali, já havia olheiros armados de plantão escondidos nos telhados,
que avisariam com antecedência qualquer movimento estranho.
Pretendia começar a ouvir depoimentos de Juliano naquela noite
mesmo e deixar combinado meu livre acesso à Santa Marta, sem necessidade
de consultas prévias. Queria também deixar claro qual seria o
meu método de trabalho e falar de minhas expectativas sobre os critérios
fundamentais de conduta minha e dos homens que pretendia entrevistar.
- Por exemplo: vocês não poderão me falar nada sobre seus planos,
qualquer ação futura. Caso contrário, tenho a obrigação de intervir...
- Como assim?
- Não posso saber dos crimes do futuro, muito menos do presente...
Se isso acontecer, terei que parar imediatamente o trabalho sob pena de
virar um cúmplice de vocês.
Fiquei com a sensação de ter falado para mim mesmo, Juliano não
parecia interessado nessas questões ou talvez elas não fizessem sentido
para ele. O ambiente também não era propício para uma conversa mais
séria. A todo instante ele era abordado por algum traficante do Turano
que se aproximava para conversar, manifestar preocupação com as buscas
da polícia a ele.
Esperei cerca de duas horas para conversar com mais calma. Afastamo-
nos do “banquete” e fomos até a mureta de proteção da laje. Voltei
para o tema dos pré-requisitos, sem conseguir impressioná-lo muito.
- Que papo é esse? Tu é esquisito, cara. Tô na confiança, na moral
mesmo, aí. Sem essa de pé atrás...
- Mas é isso. Sobre o futuro, nada. Presente também. Mas sobre o
passado quero saber tudo! Até o que vocês não vão querer contar.
- Que passado, cara. O passado já é, foi ontem. Não vale mais....
A gente procurava um meio de se fazer entender, quando a chegada
de um carro desviou a minha atenção. Agora era eu que não prestava
atenção na conversa de Juliano. Era um Vectra prata que se aproximava
devagar, com os faróis desligados. As luzes internas acesas mostraram
que o motorista era um adolescente e estava sozinho. Estacionou a menos
de 30 metros do barraco da festa de Juliano, tão perto que deu para eu ver
que não tinha placa de identificação.
Na época havia uma onda de assaltos nos sinais de trânsito da zona
norte, principalmente na área do Estácio, região onde estávamos. Minhas
suspeitas se confirmaram quando alguns homens armados se aproximaram
do Vectra e começaram a tirar dele alguns acessórios. Um senhor
idoso, algumas mulheres e atê crianças levaram alguma coisa do carro
para suas casas. O exemplo não podia ser mais didático.
- Tão depenando o carro ali, tá vendo? - disse eu, apontando para o
Vectra, que estava sendo desmanchado ali bem perto de nós.
- É o jeito. Esse moleque deve tê dado um banho no pessoal aí. E
agora veio pagá a dívida, sacumé?
- Está aí um exemplo justamente do que eu estava falando. Há um
crime acontecendo ali e estamos aqui em cima vendo tudo. Não gosto de
ser omisso.
- Não exagera, o crime foi lá embaixo, na hora do assalto...
- E ele continua acontecendo aqui, com o desmanche...
- Tu que o quê, cumpadi? A polícia aperta em cima, a rapaziada rouba
embaixo.Se dão a dura no assalto,vão para o furto, voltam para o tráfico
- Seja como for, eu quero ouvir os depoimentos sobre as histórias, não
posso assisti-las. Nesse caso, é o único jeito de trabalhar.
- Mas assim é foda. No morro ou tu tá no crime ou tá no caminho
dele. Todo mundo tem que tirá algum de alguém. Tu acha que a rapaziada
qué vivê de salário mínimo, cumpadi?
- Assim vai ser complicado, muito complicado.
Depois da primeira experiência tumultuada, Juliano quis falar de seus
planos de sair do Brasil, mas eu me neguei a ouvi-los. Combinamos um
novo encontro para ouvir uma série de depoimentos dele.
Disse que esperaria um contato para conversarmos onde ele estivesse,
no país ou fora. Enquanto aguardava, iria começar a produção do livro-
reportagem na Santa Marta e ouvir os depoimentos dos homens que estavam
lá ou foragidos em outros morros.
Subi a Santa Marta com a curiosidade de quem queria conhecer o lugar
de maior concentração de pessoas do Rio de Janeiro, talvez do Brasil,
talvez do mundo. O espaço de 61.000 metros quadrados ocupado pelos
barracos era relativamente pequeno, do tamanho da famosa Cinelândia,
no centro da cidade. Mas em número de moradores era proporcionalmente
três vezes maior que a favela do morro do Borel. E superava até a
gigante Rocinha, maior favela da América do Sul. Segundo levantamento
do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a densidade
demográfica da Rocinha era de 178 mil habitantes por quilômetro quadrado,
abaixo da concentração de 196 mil da Santa Marta, a comunidade
que eu queria conhecer.
Os números frios da estatística me ajudaram a entender, nas primeiras
visitas, a sensação de falta de ar, de aperto, num lugar onde as pessoas
vivem literalmente oprimidas pela falta de espaço.
No começo tive dificuldade em aprender a me situar no meio de um
amontoado de barracos sem nome, com becos e vielas sem placa de identificação
e sem nenhum prédio público para servir de referência. Precisei
mais uma vez da ajuda do missionário Kevin para conhecer a primeira
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