para a área do lixão, perto da Pedra do Xangô. Surrada pelo caminho,
pediu socorro aos moradores do morro.
- Pelo amor de Deus. Eu posso perder o meu bebê.
Grávida de cinco meses, obrigada a se ajoelhar, Berenice cruzou os
dois braços sobre a barriga para se proteger. Por instantes ficou em silêncio,
talvez para acalmar Faquir, que gritava enfurecido para ela calar
a boca. A partir do primeiro tiro, Berenice voltou a gritar com todas as
forças.
- Isso é covardia. Eu não posso morrer! Meu bebê...
Depois de Faquir, quase todos dispararam suas armas e erraram muitos
tiros porque Berenice lutava, se debatia.
Foram mais de dez minutos de agonia. O ruído da execução chamou
a atenção da outra turma de traficantes, que correu para avisar Henrique.
Quando o frente chegou ao lixão, Berenice ainda agonizava e já estava
sendo enterrada para acabar de morrer mais depressa.
- Que loucura é essa, Faquir?
- Essa filha da puta não quer morrê, cara.
- Mas que é isso, cara. Essa mulhé tem nada a vê com isso, porra.. Ela
é a mulhé do Tonhão, caralho! Caralho! Tu ficô maluco!
A notícia da execução por engano na Santa Marta chegou no mesmo
dia àcadeia e foi muito mal recebida pelos presos. Juliano teve que dar
muitas explicações e prometer que iria esclarecer as circunstâncias do
crime e, se fosse o caso, punir os culpados.
Juliano ainda tentava explicar por que as funkeiras não tinham sido
mortas quando um carcereiro apareceu no corredor, batendo com um cacetete
de madeira nas grades de aço para anunciar a terrível novidade
sobre a identificação da vítima. Parou ao lado da cela onde estava Juliano
e chamou um dos presos que estava deitado no alto de um beliche.
- Tonhão! Chega até aqui na grade. Tenho que te dá uma notícia.
A chamada dos carcereiros para uma conversa reservada, num tom
respeitoso, por si só já era um indicador de que trazia notícia ruim de casa
ou da família. Tonhão saltou do beliche. Vestia apenas cuecas. Não pôs
a bermuda e a camiseta, como mandava a disciplina, e foi assim mesmo
até a grade.
- Lamento te dizê, mas mataram a tua mulher - disse o carcereiro.
- Mas como? Minha mulhé é uma santa. Minha mulhé tá gravida. Não
pode sê ela - disse Tonhão.
- Ela estava morando na Santa Marta? - perguntou o carcereiro.
- Santa Marta? Nós somos sangue do Turano! - disse Tonhão.
- Então te acerta aí com o Juliano. Foi lá no morro dele.
Tonhão aguardava julgamento na mesma carceragem da Polinter desde
que fora preso em flagrante por tráfico de drogas no morro do Turano.
Conhecia Juliano por causa da amizade comum dos dois com o seu chefe,
Playboy. Imediatamente ele começou a cobrar explicações, aos gritos, e a
jurar de morte Juliano, que ainda não sabia dos detalhes da execução.
Por pouco, muito pouco, Juliano não foi punido no mesmo dia. Foi
salvo porque partilhava a mesma cela com o chefe do tráfico de uma das
maiores favelas do Rio, a do Jacarezinho. Amigo de longa data e parceiro
do plano de fuga previsto para os dias seguintes, Lambari saiu em sua firme
defesa e, para acalmar o clima de vingança na carceragem, prometeu
providenciar um julgamento de Juliano na “suprema corte”, a diretoria
do Comando Vermelho.
A sentença veio pelas mãos de um advogado, escrita em carta reme
tida da cadeia de Bangu. Juliano foi julgado culpado e a sentença era tão
grave quanto seria a sua própria morte. Os homens do CV exigiam dele
uma atitude que pudesse representar a dimensão de seu arrependimento
pelo erro cometido.
“Você tem que tomá uma única atitude. E você sabe qual deve sê”,
escreveu o “presidente” do CV.
Antes de tomar a atitude Juliano consultou as suas duas mães, que
foram contra. A irmã Zuleika disse que o apoiaria em qualquer circunstância,
mas achava a idéia péssima. Na ausência de seus ídolos, que já estavam
mortos, Juliano não quis consultar mais ninguém, nem mesmo os
homens mais experientes, seus seguidores, que também estavam presos.
Mas eles mandaram um bilhete à carceragem da Polinter, expressando
revolta contra seus próprios companheiros em liberdade no morro pela
execução da mulher grávida.
Irmão Juliano,
Ficamos ligados no acontecimento, atitude tomada no caso da B (com círculo
em volta) que mandaram viajar, sabendo que a B tinha filho e era comadre
dos nossos irmãos que se encontram no sofrimento, podendo antes nos deixar
ciente se ela estava realmente vacilando, só chegando ao nosso conhecimento
depois do acontecimento. Não tiveram essa consideração por nós e nem pelo
filho de cinco meses que carregava na barriga, tu fecha com esta atitude?
O bilhete era assinado pelos prisioneiros Chiquinho, Zorro, Marechal,
Macas, Cadu, Fifa, Cowboy, Osório, Nego Pedrinho, Ramom, Osvaldo,
Viana, Pé Grande, Luiz Henrique. Godinho, Ká, Vovô, Coruja, Pneu, todos
nascidos e criados na Santa Marta e, como Juliano, integrantes da
facção CVRL, Comando Vermelho Rogério Lengruber.
Ao acabar a leitura do bilhete, Juliano decidiu cumprir a sentença do
CV. Mandou matar o homem de sua maior confiança naquele tempo, o
companheiro de guerra que saiu da Rocinha para ajudá-lo a retomar o
poder da Santa Marta. o amigo que tinha a simpatia de sua família e que
fora leal até o dia da sua sentença.
O fuzilamento de Henrique matou também suas esperanças de viver
em paz. No nosso último encontro na Argentina, eu falei para Juliano de
minhas descobertas no morro sobre a morte de Berenice. Juliano não
encontrou justificativa para o crime. Chorou copiosamente e não foi além
da repetição de sua frase preferida, herança dos velhos ídolos do Comando
Vermelho. Era a decisão certa da vida errada.
NEIN
O Águia fez o trajeto dos helicópteros que partem da lagoa Rodrigo
de Freitas para mostrar aos turistas, por mil dólares a hora, os lugares de
beleza exuberante do Rio de Janeiro. Passou primeiramente pela praia
de Ipanema voando baixo, chamando a atenção da multidão à beira-mar.
Subiu para 300 metros e contornou à direita no Leblon, onde o piloto
costumava flagrar mulheres seminuas tomando banho de sol nas coberturas
dos prédios. Aos poucos foi subindo em direção ao Cristo Redentor.
Na favela, orientados por Juliano, os homens de plantão no pico andavam
muito atentos ao movimento dos helicópteros em volta do Cristo
Redentor. Eles chegaram a notar vários deles bem perto do monumento
mais famoso do Brasil. Acreditaram que estivessem cheios de turistas
estrangeiros.
- Esses gringos adoram o sovaco do Cristo - disse Paranóia ao parceiro
de plantão ao ver três helicópteros voando em círculos ao redor da
estátua gigante do Cristo Redentor com os braços abertos. O outro plantonista,
Binha, aproveitava a calmaria para abrir a marmita com o almoço
que a mãe trouxera até o pico.
Desde a emboscada em que morrera Rafael, irmão de Rivaldo, no
começo do ano, Juliano vinha falando da importância de ficar atento ao
movimento dos helicópteros da polícia. Nunca mais havia escalado um
novato para função de plantonista no pico sem antes dar uma aula sobre
técnicas de controle do espaço aéreo” da Santa Marta. Orientações básicas,
repetidas uma, duas, três vezes.
- Um olho no Pão de Açúcar. outro para o Corcovado. Uma virada
para o lado da bala, outra para o Cristo. Atenção na lagoa, mas sem esquecê
o Cristo. Um olho na ponte, outro no Cristo Redentor.
Os novos homens treinavam tiro contra o barranco do Tortinho quando
a emboscada começou. Os fogueteiros estavam posicionados em todos
os pontos de acesso à favela, tinham a seu dispor um bom estoque de
fogos, mas nenhum deles teve tempo de acendê-los. O pessoal experiente
guardava posição à sombra de uma grande rocha do pico do morro, mais
perto da área dos barracos.
Alguns deles, como Juliano, aproveitavam para consertar as armas
emperradas pelo excesso de poeira. Mostravam para os mais jovens que
era um erro usar lubrificantes em excesso para a manutenção das armas.
- Puseram WD demais e olha no que deu. A poeira gruda, emperra
tudo. E aí, na hora do pipoco, fudeu! - disse Juliano.
Ninguém viu seus inimigos chegarem silenciosos pelo céu. Só perceberam
quando os primeiros tiros disparados do ar atingiram o chão do
Tortinho.
- Dum! Dum! Dum!Dum! Dum!
Um dos tiros acertou a cabeça de Binha, que caiu de bruços como
rosto sobre a marmita de comida. Teve morte instantânea.
O Águia tinha se aproximado do morro por trás da montanha. Bem
perto da Pedra do Xangô, o piloto desacelerou o motor para diminuir ao
máximo o ruído. Só depois de contornar a grande pedra voltou a acelerar.
Os atiradores estavam nas portas laterais abertas. Sentados sobre chapas
de aço blindadas, com as pernas para fora, portavam fuzis de longo alcance.
Os alvos dos primeiros disparos foram os meninos que corriam
para todos os lados do Tortinho.
Todos correram em direção ao beco que levava à área dos barracos,
menos Nein, o primeiro a ser ferido.
Nenhum amigo parou para socorrê-lo. Os adultos que estavam sob a
rocha, com as armas desmontadas, não tiveram tempo de reagir. Juliano
escapou morro abaixo, em direção ao barraco de Luz. Os outros correram
para a floresta, em direção às matas do Corcovado, perseguidos pelo helicóptero.
O Águia voava em círculos para o vento das hélices abrir espaço
entre as folhas das árvores e facilitar a perseguição. Cinqüenta metros de
área descampada separavam Nem do depósito de água potável do morro,
o Caixão. Conhecia bem aquela área, consertara muito chuveirinho ali.
Ainda estendido na terra, parecia morto. Mas ao perceber que o helicóptero
voltava em sua direção, levantou-se e por um instante ficou parado
sozinho no meio do campo. Olhou para o lado do Caixão, jogou fora a
arma e os chinelos. Tentou fugir pelo meio do campo. Não era dos mais
velozes, mas escapou de vários tiros. Correu em ziguezague, tentando
se esquivar dos dísparos que levantavam pontos de poeira cada vez mais
perto dele.
Ele conseguiu escapar do Tortinho. Mas, em seguida, foi atingido por
um tiro de fuzil na perna, quando corria em direção à casa da sogra, onde
estavam a sua mulher e a filha. Elas viram quando ele passou pela frente
da casa arrastando uma das pernas, sempre perseguido pelo helicóptero
que continuava a disparar lá de cima.
Nem perdeu o equilíbrio algumas vezes nas escadarias. Bastante machucado
e sujo de sangue, parou em frente ao barraco da endolação. Bateu
na porta, bateu na janela, mas nenhum dos amigos estava lá dentro.
Outros tiros acertaram o corpo de Nem quando ele estava quase chegando
no ponto de venda de drogas. Alguns amigos acompanharam a
perseguição pelas frestas dos barracos. Todos acharam que Nem queria
morrer perto deles. Naquele dia, os vapores estavam concentrados no
meio da praça Raímundinho, onde Nem acabou de ser fuzilado.
Quando os tiros cessaram, as crianças foram brincar embaixo das goteiras
que pingavam dos canos furados pelas balas da polícia. O helicóptero
havia pousado.
A mulher de Nem pegou a filha no colo e correu junto com as vizinhas
para fazer a pressão de sempre contra a prisão de algum morador. A
mãe de Nem também correu muito. Mas já era tarde.
Enquanto os parentes e amigos tentavam chegar perto, os policiais já
providenciavam a retirada do corpo. Poucos conseguiram ver o momento
em que o Águia levantou vôo da praça, levando o corpo dele amarrado
num cabo de aço.
Da janela do barraco de Luz, Juliano e a amiga viram quando o helicóptero
deu uma volta sobre a favela com o adolescente de 15 anos
pendurado pelo cabo de aço.
- Que é aquilo, Juliano? Quem é o parceiro? - perguntou Luz.
- É o Nem do Chuveirinho! - disse Juliano, sem desviar os olhos lá
do alto.
- E agora, quem vai consertá os nossos cano? - perguntou Luz, sem
ouvir resposta de Juliano.
Saíram para rua e se misturaram no meio de muita gente horrorizada
com a cena. Luz correu até o grupo de mulheres que choravam em volta
do amigo de infância de Nem, Pardal. O parceiro de conserto dos chuveirinhos
apontava para o céu e não parava de repetir.
- Tão levando o cara embora, aí!
O helicóptero se afastou para o lado do Pão de Açúcar e, aos poucos,
visto do morro, o corpo de Nem foi diminuindo de tamanho até desaparecer
dos olhos dos homens de Juliano, passando para o outro lado da
encosta da Santa Marta.
FIM
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