O dono do morro dona marta



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eram essencialmente comerciantes que não pagavam impostos e que usavam

armas para enfrentar a concorrência e, eventualmente, os policiais

honestos. Tinham vida sedentária, tediosa, burocrática. Precisavam entender

de contabilidade, a atividade exigia liquidez, ter sempre dinheiro

à mão para comprar a matéria-prima. E ainda tinham que administrar a

contratação e demissão dos vendedores. E a mais importante das tarefas,

providenciar pagamento diário ou semanal dos olheiros, aviões e sentinelas;

a mesada dos parentes dos parceiros que estivessem presos; a manutenção

e renovação do armamento da quadrilha; a oferta de propinas

atraentes aos policiais desonestos. O traficante ainda assumia os papéis

de conselheiro, padre, delegado, carrasco e juiz das questões mais corriqueiras

da comunidade.

Os assaltantes não gostavam de ter tanta “responsabilidade”. Preferiam

a vida incerta, no comando de quadrilhas formadas de improviso,

de acordo com a necessidade da ação, e desfeitas logo depois da divisão

do dinheiro faturado no crime. Ao contrário dos traficantes, assaltantes

como Cabeludo viviam cercados de amigos, mas nem sempre gostavam

de tê-los como companheiros de assalto.

O estilo de vida dos assaltantes também contrastava com o dos traficantes.

Cabeludo sempre foi um nômade, que circulava por morros diferentes

para dificultar a sua prisão ou morte. Quando faturava um bom

dinheiro, dava-se ao luxo de viajar para mais longe, para outras cidades,

outros estados ou para algum lugar que fosse impressionar a mulher da
ocasião. Odiava fazer planos, para não correr o risco de ser delatado pelos

parceiros. Preferia viver intensamente o presente, sempre em busca

da oportunidade de tirar proveito do fator surpresa, a maior arma dos

assaltantes. Nos roubos nas empresas e agências bancárias, na companhia

de no máximo três homens armados, costumava dominar sempre um

número maior de vigilantes, dezenas de funcionários e, às vezes, mais de

cem clientes usando como principal arma a forma surpreendente de atacar

com um grito de apenas três palavras: é um assalto! No comando do

tráfico, a natureza da atividade era o avesso de coisas imprevisíveis.

Era a primeira vez que Cabeludo se obrigava a viver o dia-a-dia de

uma comunidade. Passou a ter um esconderijo fixo além da base de referência

da quadrilha e dos consumidores de drogas, a boca. A dificuldade

do novo chefão só não estava sendo maior por causa do seu carisma.

Cabeludo transformou a Santa Marta numa referência de abrigo para os

assaltantes mais ativos da cidade.

Alguns, como Luis Carlos Trindade, o Paulista, o ajudaram a organizar

a direção da boca. Físico forte, quase um metro e oitenta de altura,

Paulista era um migrante nordestino, nascido em Natal, no Rio Grande

do Norte, prestigiado na favela por ter sido acolhido na casa do velho

chefão Pedro Ribeiro desde a sua chegada ao Rio de Janeiro. Foi parceiro

dos maiores assaltos praticados por Cabeludo e sempre na função

de planejador. Era um estrategista, que nunca partira para a ação sem a

colaboração de um informante próximo da vítima ou sem antes ter feito

um minucioso levantamento do alvo do roubo. Na direção da boca, não

seria diferente. Paulista atuava na retaguarda de Cabeludo, orientava-o

sobre a melhor maneira de dividir o poder com Zaca sem perder a voz de

comando. Uma tarefa quase impossível, devido à instabilidade natural de

Cabeludo.

Em vez de ele aprender a se enquadrar às regras do tráfico, eram os

traficantes que tinham que se adaptar às leis de Cabeludo. Ganhar muito

dinheiro e tentar sair fora no menor tempo possível era o objetivo de

Cabeludo nos primeiros dias no comando. Contava com a orientação de

Paulista, que achava o risco de morte muito alto entre os chefes do tráfico.

O caminho para atingir a meta de enriquecimento rápido fora definido

por Paulista numa reunião com os gerentes do preto e do branco dos três
pontos-de-venda de cocaína.

- Temo que ativá a quadra para os ensaios de carnaval, dá uma força

para todos os grupos de pagode, reforçá as bancas de carteado, empurrá

a juventude pros bailes. Agitá, agitá, agitá...

Em poucos meses Cabeludo transformou a favela numa festa quase

permanente, o que fez aumentar o faturamento como nunca havia acontecido.

Além de estimular bailes e festas, mandou os vapores oferecerem

quantidades generosas de pó aos consumidores. Segundo Cabeludo, fartura

era indispensável para a “boa reputação” da boca, que ele próprio,

voraz consumidor, freqüentava antes de virar chefe. Quando voltava dos

assaltos bem-sucedidos ele sempre deixava com os vapores parte do dinheiro

roubado. Em vez de comprar um sacolé, um saquinho de plástico

com um grama, como faziam os compradores comuns, arrematava a

carga do vendedor de plantão. Na Santa Marta a carga em geral tinha 70

sacolés de um grama, volume criticado por Cabeludo, que sempre queria

mais.


Droga tinha que ser pura, outra prioridade de Cabeludo nos seus

primeiros meses no poder. Nos barracos da endolação, onde a cocaína

era preparada para a venda, ele proibia que muitos componentes fossem

adicionados ao pó para aumentar o volume e o lucro. Só liberava o uso

de xilocaína, produto químico que aumentava a sensação anestésica nas

narinas. A fórmula de Cabeludo levou a cocaína da Santa Marta a ficar

conhecida naquele ano de 1986, entre os viciados, como a mais “pura” da

zona sul do Rio de Janeiro. Por causa disso, os usuários de classe média

formavam fila no morro. Quem era da favela pagava a metade do preço

ou, dependendo das circunstâncias, menos ainda.

A forma de poder de Cabeludo atraiu, entre outros jovens, o pessoal

da Turma da Xuxa para a boca. Ele sabia que a turma fazia sucesso com

as mulheres. Por isso sempre os convidava para as festas que promovia,

desde que garotas os acompanhassem. Como forma de atraí-los, Cabeludo

oferecia a oportunidade de cheirar de graça, numa determinada hora

da noite, a hora da bandeja. O ritual da bandeja era a diversão predileta

de Cabeludo desde seus tempos de consumidor. Ele cobria a bandeja

com grossas fileiras paralelas de cocaína e escolhia alguém ou um grupo

para compartilhar. Perambulava de festa em festa e adorava ser seguido e
chamado de rei pelos grupos de usuários radicais, que o cortejavam para

cheirar à vontade.

Doente Baubau, Soni e os dois parentes de Cabeludo, os sobrinhos

Renan e Mendonça, se envolveram na “corte da bandeja”. Era a única

forma que tinham de se drogar sem gastar dinheiro. A novidade mudou

a vida de todos eles. Renan e Mendonça usaram o pó como meio de se

aproximar do tio, que admiravam como ídolo. Ao lado dele, conheceram

alguns dos criminosos mais atuantes da cidade. Tempos depois passaram

a receber os primeiros convites das quadrilhas para assaltos.

Os sobrinhos tornaram-se assíduos também na área da boca, onde

prestavam serviços esporádicos como vapores, mas sempre desarmados.

Desde os 12 anos, Renan vinha pedindo uma chance de ingressar numa

das quadrilhas do tio. Nunca fora atendido. Ao contrário, Cabeludo o

aconselhava a estudar, achava que ele não tinha jeito para se aventurar no

crime. Parecido com Cabeludo, cultivava uma longa cabeleira, imitava-o

no modo de se vestir. Sempre que tinha oportunidade, tentava convencer

o tio a abandonar o tráfico para se dedicar ao que, na sua opinião, ele

sabia fazer melhor: os grandes assaltos.

Mendonça já tinha praticado alguns furtos e pequenos roubos. Quando

Cabeludo soube de suas façanhas o convidou para a função de soldado

de sua segurança pessoal. Ele queria ver o filho de sua irmã Neusa, com

quem tinha maior afinidade, sempre perto dele. Mendonça estava com 15

anos e já havia trabalhado como entregador de quentinhas nas áreas de

classe média da zona sul. Às vezes aproveitava os descuidos dos clientes

para levar alguma coisa das casas onde entrava. Sua primeira meta, no

tráfico, era economizar dinheiro para comprar a primeira arma, principal

ferramenta para a atividade que pretendia ter no futuro.

- Quando eu tivé um ferro na mão vô saí por aí e não volto nunca mais

- costumava dizer aos amigos.

Mendonça iria esperar pela primeira grande guerra da Santa Marta

para realizar o seu sonho. Soni tornou-se um consumidor sistemático.

Embora acompanhasse Cabeludo em todas as festas, nos salões não demonstrava

interesse em encontrar e conversar com os amigos, nem em

ouvir música, dançar, namorar. O que o atraía era a hora da bandeja, a

chance de cheirar, encher o cérebro com as sensações de poder que a
droga dava. Tornava-se mais falante, passava a achar importantes seus

pensamentos, sensação que animava, mesmo Solitário, suas noites sem

dormir.

A maior transformação foi a de Luis Carlos, o Doente Baubau. Filho



de uma família de cinco irmãos, durante a infância inteira raramente saía

da favela. Só descia o morro para ir à escola, onde chamava a atenção

das professoras pela apatia. Geralmente demorava mais que os outros

para copiar as lições e sempre era o último a deixar a sala de aula. No

final do período, ficava no pátio da escola enquanto houvesse alguém

para conversar. Voltava para casa a passos lentos e, como se distraía pelo

caminho, geralmente chegava no começo da noite. A marca da lentidão

estava em todas as suas atividades.

Era uma figura de destaque nos mutirões, porque sempre era o último

a sair da obra e o que mais se empenhava. Freqüentava a Igreja Católica

do pé do morro e depois do fim da missa do domingo continuava rezando

por mais uma hora, sozinho, de joelhos na frente do altar de Nossa

Senhora Auxiliadora. Nas festas e nos bailes, gostava de acompanhar o

fechamento do salão até a hora em que o pessoal dos serviços se despedia

para ir embora.

Nos dias de chuva ficava em casa assistindo aos programas de esportes

na televisão. Só desligava o aparelho depois que aparecia a imagem

do “formigueiro”, sinal de que a programação estava saindo do ar. Tinha

dificuldades em acabar com o seu envolvimento nas histórias, mesmo as

mais banais.

Queria sempre mais. No começo da adolescência amanhecia na rua,

acompanhando o movimento da boca. Depois de cheirar cocaína, essa

tendência se acentuou. Passou a freqüentar as filas de compra da droga

para observar o movimento dos consumidores, com a esperança de ser

convidado para cheirar junto. Se não houvesse uma oferta espontânea,

pedia. Tornou-se um mendigo do pó, a ponto de procurar no chão os

saquinhos vazios de cocaína. Tudo para lamber os resíduos grudados na

embalagem de plástico.

Abandonou os estudos e perdeu o interesse pelos programas dos amigos

de fora e de dentro da comunidade. Em menos de meio ano engordou

mais de 30 quilos, passou de 55 para 85, um exagero para os seu metro
e setenta centímetros de altura. A obesidade o excluiu do serviço militar

obrigatório, que havia planejado prestar junto com os amigos da Turma

da Xuxa. Ele chegou a se apresentar no quartel da Escola de Educação

Física do Exército ao lado de Vico, Juliano, Jocimar, Soni e Alen. Foi o

único dispensado por “incapacidade física”. Nessa época os pais o internaram

por três meses numa clínica para recuperação de dependentes

químicos. Voltaria da clínica ainda mais gordo e com sérios distúrbios

mentais.

Du, Mentiroso e Claudinho passaram a ganhar dinheiro em volta da

fila da cocaína que se formava diariamente na Escadaria. Tornaram-se

olheiros prestadores de serviço, com a missão de criar grupos de bate-

papo em pontos estratégicos, dissimulando a verdadeira função na Boca.

Eram encarregados de avisar os vendedores sempre que a polícia entrasse

na favela.

Claudinho era o que menos precisava de dinheiro, porque o pai, Zé

Lima, era dono de uma birosca bem sortida. Mas tinha um péssimo relacionamento

com o pai e, por isso, evitava ao máximo pedir dinheiro a ele.

Prestar serviço para o tráfico representava o primeiro passo para quem

desejava romper o elo com a família. Inclusive já pedira a Cabeludo uma

vaga de olheiro também para o seu irmão caçula, Raimundinho. Ambos

alimentavam um crescente desprezo pela mãe, Tiana, conhecida no morro

pelas suas crises de alcoolismo nos fins de semana. Ela trabalhava

cinco dias por semana na cozinha de uma escola, responsável pela preparação

da merenda das crianças. Nos dias de folga, sábado e domingo,

costumava beber de forma compulsiva, principalmente quando brigava

com o marido Zé Lima. Bebia até perder as forças para andar. Claudinho

e Raimundinho a carregavam no colo para casa. Os dois odiavam a cena,

que consideravam constrangedora demais.

Os primeiros a entrar para o tráfico tentaram atrair os amigos. Mendonça,

Juliano e Claudinho pressionaram sobretudo os irmãos Careca e

Vico, com quem tinham grande afinidade. As primeiras propostas foram

para atuar na função de vendedores do principal ponto da boca, com a

promessa de ganhar o equivalente ao triplo do valor da pensão que o pai

Tibinha, motorista de um deputado na assembléia Legislativa, dava para

a família depois da separação. A oferta também representava muito mais
que a renda do padrasto deles, feirante em Caxias, na Baixada Fluminense.

E mais do que a mãe ganhava no Terreiro da Maria Batuca. Embora

fosse herdeira do terreiro mais freqüentado da Santa Marta, Dalva nada

cobrava dos fiéis. Por tradição, em geral as pessoas deixavam uma oferenda

em troca da bênção ou do passe recebido. A família deles sempre

teve um papel de destaque na comunidade, mas não tirou proveito disso

para ganhar dinheiro. A avó, dona do terreiro Maria Batuca, também era

parteira. Assistiu ao parto de muitos de seus amigos e conhecidos. E o

pagamento que recebia era na forma de amizade e presentes de agradecimento,

nunca dinheiro. Sem nenhuma renda dentro do morro, para criar

os filhos se obrigava a lavar roupa para as famílias de classe média em

troca de um ganho médio equivalente a 100 dólares por mês. Juliano foi

incisivo com os dois irmãos:

- Vocês precisam ajuda a dona Dalva. Ela faz um sacrifício do caralho

em troca de uma mixaria, é ou não é?

Primos distantes dos temidos Irmãos Coragem, Careca e Vico a princípio

não queriam envolvimento com a boca devido ao estigma da família.

Preferiam ajudar a mãe com os trabalhos comuns. Careca era office-

boy do hotel Novo Mundo, no bairro do Flamengo. E estava fazendo

um curso técnico de bombeiro hidráulico, com esperança de trabalhar

numa empresa desentupidora de rede de esgoto. Na época com 19 anos,

já habilitado a dirigir, pretendia arranjar emprego na função de encanador

motorizado.

- Isso é futuro, Careca? Seja realista, parceiro. O que essa porra desse

hotel te deu até agora? - perguntou Mendonça.

- Experiência e a merreca, que tá quebrando o galho lá em casa.

O salário de Careca era equivalente a 80 dólares. Vico ganhava menos

como auxiliar da empresa VS-Boy de Botafogo. Mas conseguia se

manter, como fizera desde criança quando tinha uma “sociedade” de carrinhos

de rolimã com Juliano. Dos 8 aos 12 anos, algumas vezes os dois

faziam plantões no mercado da Cobal, uma das poucas atividades permitidas

pelo pai de Juliano. Prestavam serviço de carregadores das compras

e com o dinheiro dos “carretos” compravam pião, pipa e muito suspiro.

- Minha vocação é para aquele trabalho de otário que a gente fazia

na infância - disse Vico para Juliano ao recusar a primeira proposta da
boca.

- Sai dessa, parceiro. Tu é um puta artista, caralho! Mas tem que ganhá

dinheiro. Tá na hora, Vico.

Assim como o irmão Careca, Vico era passista criativo, participava

dos grandes espetáculos do carnaval. Alto e elegante, fora escolhido três

anos antes para a função de mestre-sala, sambista de maior destaque da

escola de samba Império de Botafogo, a preferida de sua família. A prima

Rose, uma das morenas mais lindas do morro, era a sua parceira de

desfile, a porta-bandeira. A mãe Dalva desfilava na ala das baianas da

escola e o tio Zé Preto era o principal compositor. Nenhum deles jamais

ganhara um único centavo com a festa do Carnaval, que atraía os dólares

dos turistas do mundo inteiro, coisa que revoltava o amigo e ex-parceiro

de samba Juliano. Careca, Vico e Juliano foram parceiros de Carnaval

na infância, estrelas da ala mirim do Bloco da Onça, de Botafogo. Eram

compositores e venceram o concurso de melhor samba no Carnaval de

82, com a letra Menor abandonado neste mundo de ilusão. Em vez de

dinheiro, como desejava Juliano, na época com 12 anos, receberam um

troféu, que deixaram exposto no terreiro ao lado da imagem do Preto-

Velho.

Revoltado com a exclusão dos artistas das riquezas do Carnaval, Juliano



deixou de desfilar e tentou convencer os irmãos a seguirem o seu

exemplo.


- Prefeitura ganha dinheiro, televisão ganha dinheiro, dono de hotel,

dono de avião, dono de cerveja, todos ganham, e a gente, por que não?

Tu é o cara, tu é o sambista... e nada? Safadeza! Cai fora! - disse Juliano

em uma tentativa de convencê-lo a entrar para o tráfico.

- É o samba, Juliano. O pagamento é a alegria de desfilar pros bacanas.

Eles babam no meu pé, aí! - argumentou Vico.

- Nem tem idéia, Vico. É a maior festa do mundo, parceiro. A festa

não é nossa? Por que o dinheiro não?

Mendonça, como sempre, sugeriu apelarem para o caminho das armas.

- Qué tomá dinheiro dos bacanas, Juliano? Tem que sê na mão grande.

Eles só respeitam a lei do ferro, aí!

Vico e Careca não alteraram a trajetória de músicas e sambistas. Os


dois continuaram na função de percussionistas do terreiro e todos os anos

animavam a Folia de Reis, uma festa religiosa tradicional da favela. Seguiram

a tradição da família. O avô e o pai deles também faziam parte do

Terno de Reis os Penitentes da Santa Marta. E também nunca deixaram

de freqüentar a laje do Helinho do Mira Bode, no beco dos Poetas, ponto

de encontro preferido do tio Zé Preto e outros compositores do morro.

Vico também era bom de bola, o melhor jogador de futebol da turma.

Foi atacante titular do Imperial nos dois anos em que o time participou

dos campeonatos oficiais da federação carioca. O pai Tibinha e

os amigos mais próximos, como Juliano, sonhavam com uma carreira

profissional brilhante para Vico. Ele chegou a treinar algumas vezes nas

categorias de base da equipe profissional do bairro, o Botafogo Futebol

Clube. Mas não esperou por muito tempo a chance de ser contratado.

Até 1986, ganhar dinheiro jogando bola ainda não havia passado de um

sonho distante.

Carlos Eduardo Calazans, o Du, virou olheiro por influência e fidelidade

ao seu melhor amigo, Juliano, que já era avião da boca. A amizade

substituía a ausência do pai, que morreu de cirrose quando ele tinha 14

anos. Du não tinha grandes ambições, vivia conformado com o emprego

numa ótica, onde ganhava um salário mínimo. Era pouco, mas achava

bom poder ajudar a compor a renda da casa, com o trabalho da mãe, a

passadeira Marlene. Ela estava com 40 anos e havia mais de 20 passava o

dia em pé, com o ferro elétrico na mão, ao lado de uma montanha de roupa

dos fregueses do asfalto. Du ajudava a buscar e levar as encomendas.

Du era um dos mais elegantes da Turma da Xuxa. Moreno, magro,

um metro e oitenta e sete centímetros de altura. Influenciado por Juliano,

já tentara seguir a carreira de modelo fotográfico. Na verdade, a pretensão

era muito mais do amigo do que dele. Embora tivesse um metro

e setenta e dois de altura, incompatível com a carreira, Juliano queria

seguir a profissão de modelo fotográfico. Os dois chegaram a posar para

uma fotógrafa, em um estúdio improvisado na sede da Associação de

Moradores. Encaminharam um caderno com as fotos para o catálogo de

uma agência especializada.

Na época em que entraram para o tráfico, pelo menos Juliano ainda

tinha esperança de algum dia ser chamado para desfilar nas passarelas.
O avião do tio Carlos da Praça e do velho Pedro Ribeiro logo virou

vapor de Cabeludo. Se Juliano, na Turma da Xuxa, pouco chamava a

atenção, no tráfico cedo começou a se destacar. Sentiu-se engrandecido

ao assumir a tarefa de vapor. Era um cargo de maior responsabilidade

e mostrava que o novo chefe confiava nele. Afinal, dependendo do movimento

da boca, recebia várias cargas de cocaína para vender por dia.

Cada carga com 70 sacolés valia o equivalente a 350 dólares. Nas noites

de sexta-feira, pico de vendas, era comum o faturamento chegar a 1.500

dólares. A divisão do dinheiro obedecia a uma hierarquia: 10 por cento

ficavam com o vapor, 30 por cento com o gerente e a maior parte, 60 por

cento, com os donos da boca, Zaca e Cabeludo. Os dois se encarregavam

de pagar pelos serviços dos soldados, dos olheiros e dos fogueteiros e por

eventuais propinas e ajudas aos moradores.

Uma idéia prática de Juliano ajudou a superar ainda mais os recordes.

Para evitar a ansiedade dos usuários, ele passava por toda a extensão da

fila de espera com uma caixa de sapato cheia de pó.

- Qual é a boa? Olha aí, é pra cafungá aqui mesmo - gritava Juliano

enquanto pegava o dinheiro ou devolvia o troco da venda.

No começo, Juliano escondeu sua atividade da família. Para justificar

o dinheiro cada dia mais farto, disse que havia conseguido emprego na

loja do tio Carlos da Praça, em Copacabana, como vendedor de jóias de

prata. Os pais ficaram felizes, não sabiam que o tio era um dos maiores

atacadistas de drogas da zona sul, a mais rica da cidade. De fato, durante

parte do dia Juliano ficava na loja, mas sem compromisso de permanecer

atrás do balcão. A principal função era incrementar as vendas de pó no

asfalto. Entre os fregueses do ponto estavam Luz e seus parceiros de rua,

que não eram poucos. A loja também era um ponto de receptação, que

trocava as jóias que ela roubava dos motoristas no trânsito por cocaína

ou maconha.

A loja virou referência para os encontros, fora do morro, dos amigos

da Turma da Xuxa. A partir do meio-dia os grupos de Luz e Juliano,

juntos, formavam grandes rodas de bate-papo, que atraíam outros adolescentes


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