O dono do morro dona marta



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no Cantagalo. A boca mudaria de dono várias vezes, mas, por causa do

prestígio interno do pai, os filhos Santo e Difé se mantiveram na gerência.

E Juliano seguiria como parceiro inseparável de Carlos da Praça, na

nova função de traficante interestadual, matutos que faziam a ponte do

pó Rio-Bahia.


CAPÍTULO 10 MATUTO

Eram cinco quilos de cocaína, padrão Santa Marta de qualidade. Metade

prensada no tamanho da brochura do livro Barra pesada, de Octávio

Ribeiro. Os outros dois quilos e meio prensados no formato de Malagueta,

perus e bacanaço, romance de João Antônio. Eles chegaram ao

Aeroporto do Galeão como se fossem um casal de estudantes, com dois

livros nas mãos, um deles embalado com papel-presente de uma livraria.

Julíano com o livro de Octávio Ribeiro e a irmã Zuleika com o de João

Antonio. Carlos da Praça, que iria viajar junto, providenciou o check-in

para os dois, que nunca haviam voado, nem mesmo saído do Rio de

Janeiro.

Depois do check-in, Juliano e Zuleika puseram os livros verdadeiros

e os de cocaína dentro de duas sacolas de plástico da livraria do aeroporto.

Na hora de passar as bagagens pela máquina detectora de metais, as

sacolas foram colocadas junto às mochilas e dois casacos de algodão que

levavam pendurados nos braços. Carlos da Praça, que passara pela esteira

sem nenhum miligrama de pó, ficou observando a distância, fumando

um cigarro atrás do outro. Já estava combinado entre Juliano e Carlos da

Praça que o risco da missão era todo do casal. Se a policia descobrisse,

eles assumiriam integralmente a responsabilidade pelo tráfico, conforme

previsto no contrato verbal.

- Mil dólares livres de despesas para cada mula. Mas tudo por conta

e risco de vocês, certo? - disse Da Praça a Juliano no dia do acerto do

serviço.


A responsabilidade e o risco eram de Juliano e Zuleika, mas a preocupação

deles era bem diferente. Passaram pelos seguranças com naturalidade.

Chegaram observados pelos agentes da Polícia Federal que

fiscalizavam a movimentação de passageiros no Galeão, sem demonstrar

nenhum sinal de nervosismo. Eles só sentiram medo quando duas moças

uniformizadas, sorridentes e gentis os chamaram para entrar no avião e

escolher os assentos.

Zuleika sentou na poltrona próxima à janela, com Da Praça ao lado.

Juliano ficou na poltrona de trás, também junto à janela. Precisou de
orientação da comissária de bordo para ajustar o cinto de segurança. Já

acomodada, Zuleika assustou-se quando a mulher apontou para a sacola

onde estava o livro de cocaína, que ela havia deixado sobre o colo.

- Você quer me dar? Eu posso guardar aqui em cima, no bagageiro

- disse a aeromoça.

- Me dar o quê? - perguntou Zuleika.

- A sacola. Ficará melhor aqui em cima.

- Não, não. Eu vou pôr aqui embaixo do banco.

- Aí não pode. Você está sentada no lugar da saída de emergência.

Tem que ficar desimpedida.

Da Praça interferiu.

- São livros. Nós vamos ler durante a viagem. Eu ponho aqui, no

canto do banco.

Juliano chegou a suar frio. Pusera a sacola sobre o banco do lado,

que estava vago. Quando a aeromoça se afastou, cutucou o ombro de Da

Praça e pediu um conselho, cochichando.

- O que eu faço se a mulher quisé a minha sacola também?

- Não dê, a sacola é sua. Não entre na conversa dela.

- Sente o cheiro aí na frente?

- Que cheiro?

- Sei lá, parece que todo o avião tá sentindo.

Juliano só ficou mais tranqüilo depois da decolagem. Pela janela tentou

identificar os morros que via lá embaixo, com ajuda de Da Praça.

- Aquele é o da Mineira? - perguntou Juliano.

- Providência, do Rogerinho - corrigiu Da Praça.

- Será que vamo passá em cima da Mangueira?

- Fica pro outro lado. Mas dá pra ver aquela torre do relógio, conhece?

- Claro! Central do Brasil.

Os dois mudaram do assento da esquerda para ocupar dois lugares

no lado direito, onde podiam ver mais favelas próximas à área central do

Rio.

- Turano do PC, tá vendo? No lado, o Escondidinho do My Thor - disse



Da Praça, bem informado sobre o comando de cada morro.

- Caralho! Um morro grudado no outro. Por isso somos unidos, Da


Praça. União à força. Não sobra espaço nem pra um mosquito - disse

Juliano, impressionado com o amontoado de barracos vistos já de uma

altura de 500 metros.

A voz de uma mulher anunciando o nome completo de Juliano no

alto-falante do avião desviou a atenção dos três.

- Senhor Júlio Mário Figueira. Queira se identificar à comissária de

bordo, por gentileza.

- Fudeu! Fudeu! E agora? - perguntou Zuleika.

- Foi o cheiro. Falei, caralho! - disse Juliano.

- Calma, calma! - ponderou Da Praça.

- Calma, um caralho! Ouviu? A comissária tá chamando: é polícia. É

polícia! - retrucou Juliano

- É polícia, nada. Comissária é a mulher, a aeromoça. Calma, porra!

- disse Da Praça.

- Dá pra desistir? Quero sair desse troço! - queixou-se Zuleika.

Para evitar surpresas, Da Praça orientou Juliano para a hipótese de

um flagrante da policia.

- Vá até o banheiro com a sacola na mão, para conhecer o ambiente.

Não esqueça o canivete.

- Canivete?

- É, se pintar sujeira, você tem que dar um jeito de enfiar todo o pó

dentro do sanitário e apertar a descarga.

- Mas são dois quilos e meio, Da Praça - avisou Juliano.

- Por isso o canivete. Abre rápido a embalagem e joga tudo no buraco.

A descarga é violenta, num segundo engole todo o pó.

- E vamo perdê tudo? Pra onde a descarga manda o material?

- Fica lá dentro, embaixo do vaso tem uma caixa com produtos químicos

que dissolvem tudo - explicou Da Praça.

- Pensei que tivesse um buraco no fundo do avião.

- Tá louco. Choveria merda e urina lá embaixo.

- Que nada, os bagulhos iam ficá em órbita, vagando.

- Deixe de falar merda, cara. Vamos falar de flagrante. Tu tem que

aprender.

- Como vou sabê lá dentro do banheiro se pintô sujeira ou não?

- Eles devem bater na porta, te apressar. Aí, joga tudo fora rápido,
sem vacilo. A comissária anunciou o nome de Juliano de novo, desta vez

informando o motivo da chamada.

- O senhor perdeu o seu bilhete da passagem. Queira procurar algum

de nossos tripulantes.

O único contato em Salvador era o caxangueiro Álvaro, um assaltante

de residência que passou uma temporada no Rio, em atividade com uma

quadrilha ligada a Toninho Turco. De Álvaro, só sabiam o primeiro nome

e o endereço, um conjunto de prédios populares no bairro de Ondina.

Chegaram lá perto da meia-noite e foram recebidos por duas jovens, a

namorada de Álvaro, Ester, e a irmã dela, Estela.

- Faz três dias que a casa caiu. Alvaro está preso no Presídio de Salvador

- disse Ester.

Eles ficaram algumas semanas na casa, período em que Da Praça ficou

com a namorada de Álvaro e Juliano com a irmã dela. O envolvimento

foi além do romance. As duas mulheres os ajudaram a distribuir em

Salvador os cinco primeiros quilos de cocaína que levaram do Rio.

O plano de Carlos da Praça e de Juliano era criar uma rede de compradores

de grandes cargas de cocaína, de no mínimo 500 gramas por encomenda.

Juliano sugeriu que os pais adotivos Paulista e Brava também

fossem seus fornecedores de pó, que traziam diretamente da Bolívia por

um custo menor em relação ao preço dos matutos internacionais. Mas Da

Praça preferiu manter o seu esquema, ele próprio encarregado de fazer os

contatos com os fornecedores fora do Brasil.

Sem intermediários no transporte do pó do Rio para a Bahia, os planos

de Da Praça podiam não dar certo em um primeiro momento. Por

falta de contatos na cidade, Juliano teve que sair pelas ruas como um

vapor comum. Vendia pó no sistema boca a boca, nos pontos de encontro

de jovens e nas áreas de maior movimento da noite de Salvador.

Juliano precisou da ajuda da irmã Zuleika. Eles ofereciam pó nas

rodas de conversa e Zuleíka ficava a distância com os sacolés numa pochete.

Feita a encomenda, o comprador andava um quarteirão a pé ou de

carro para receber a droga das mãos de Zuleika. Juliano estava com 19

anos e envolveu a irmã para evitar, na hipótese de ser preso, uma possível

penalidade. Zuleika tinha 16 anos e, por ser menor, embora podesse ser

indiciada em inquérito policial, era inimputável, ou seja, não poderia ser
presa em cadeia de adultos.

A venda rápida e lucrativa convenceu Carlos da Praça a formar uma

base em Salvador. Antes de voltar para o Rio de Janeiro com Zuleika ele

deixou um quarto em hotel-residência alugado para Juliano, na Praia do

Farol. Casa nova e um emprego numa agência de assessoria de imprensa

e promoções de eventos eram a fachada ideal para Juliano vender cocaína.

A oportunidade de emprego surgiu com as novas amizades, conquistadas

nas festas que freqüentava. Durante o ano e meio em que morou

na Bahia, nunca saiu do mesmo hotel, que mantinha alugado até quando

precisava viajar ao Rio de Janeiro em busca de novas cargas.

Por intermédio do pó, Juliano passou a freqüentar na Bahia um meio

social que desconhecia. À tarde, circulava pelas agências de publicidade

e redações da imprensa para divulgar o lançamento de discos. À noite,

por força do trabalho lícito e da atividade ilícita tornou-se assíduo freqüentador

de shows e festas. Tentava ser um traficante discreto, característica

de um matuto. Tinha o cuidado de jamais se apresentar ostensivamente.

Primeiro oferecia, sem cobrar nada, generosas fileiras de pó para

consumo nos banheiros das casas de espetáculo ou nas áreas reservadas

das festas. Só depois que alguém pedisse, falava da possibilidade de venda,

mas nunca de pequenas quantidades.

- Posso ver, Cláudia. Tenho um amigo que traz do Rio, mas só acima

de 100 gramas, interessa?

A bela morena de cabelos longos encaracolados, Cláudia, fez a encomenda

para os companheiros da banda de axé Fruta Tropical, da qual era

dançarina e cantora.

- Sou backing, backing vocal.

- Beque vocal, o que é isso? Parece posição de jogador de futebol!

- Backing, cantora. Tenho uma banda, Fruta Tropical, conhece?

- Claro. É uma dessas que tão fazendo o maior sucesso.

- Você gosta?

- Sinceramente?Gosto de todas, mas não sei diferenciá. Vocês aqui na

Bahia falam, cantam, dançam, fazem tudo do mesmo jeito. Maió barato.

- Não é não, meu rei.

- Taí, vocês chamam todos de meu rei. Chamam, não?

- Todos, não! Quase todos.
Cláudia foi a primeira amiga de Juliano na Bahia. Freqüentavam as

mesmas praias, bares, festas. Ele assistia a todos os shows da Fruta Tropical

e ela esporadicamente o visitava no hotel-residência do Farol. Cláudia

morava com o namorado, guitarrista da própria banda, mas mantinha

encontros amorosos com Juliano. Desde o início do romance, a conversa

preferida deles era uma tentativa de definir o tipo de relacionamento.

- Tesão Rio Bahia - arriscou Juliano.

- Prefiro amor tropical - disse Cláudia.

- Veneno baiano, que acha?

- Carioca abusado!

- Abusado, eu? Coitado de mim!

- Chora no ombro da menina rica, chora, meu rei.

- Quando você fô ao Rio vô te mostrá a favela onde eu moro.

- Favela cinco estrelas!

- Que é linda, é!

- E este hotel, Juliano? Vida dura, hein?

- Tu não vai acreditá, Cláudia. Mas é a primeira vez que entro num

hotel em toda a minha vida.

- É a primeira vez que come pizza, também?

- É, juro que é.

A novidade virou hábito. Todas as madrugadas, antes de ir para a

cama, Juliano encomendava uma pizza calabresa grande, ou duas, se

estivesse acompanhado. Era generoso em gorjetas aos motoqueiros que

faziam a entrega a domicílio. Depois de um certo tempo, a rotina dos

pedidos levou os funcionários da recepção a deixarem de anunciar pelo

interfone a chegada do serviço. Quando os agentes da Policia Federal

entraram no hotel com a mochila do serviço 24 horas do telepizza, nem

precisaram pedir autorização aos recepcionistas. Subiram direto ao sexto

andar e bateram na porta do quarto de Juliano. Ele assistia a televisão e

vestia só uma cueca. Espiou pelo olho mágico para saber se era o homem

da pizza e em seguida abriu a porta.

- Tá quente ou gelada como a de ontem? - perguntou Juliano em tom

de brincadeira.

- Quentíssima.Só que você vai comer na cadeia. É a Polícia Federal!

- Perdi! Perdi!
CAPÍTULO 11

BANDIDO DO CRIME OU BANDEIDE DO CREME?

O Terceiro tá subindo.

Ponto 50 ou tão de Ponto 30.

O CV bota pra descer.

AR-15 na mão, metralha no tripé.

Detona, tá mandado.

(Funk proibido)

- Você é bandido do Rio? Essa é a portada da Bahia.

Uma cotovelada na nuca, um pontapé entre as pernas, vários socos

no rosto, duas joelhadas no estômago. Os agressores eram cinco agentes

da policia, um deles assíduo freqüentador das festas abastecidas com a

cocaína de Juliano, que agora apanhava calado. O sangue escorreu pelo

nariz e boca. Um hematoma fechou o olho direito. Eles não paravam de

bater e repetir uma única pergunta:

- Quem é o teu chefe no Comando Vermelho?

Nos primeiros minutos de pancadaria, Juliano estava atordoado pelas

dores nos testículos. Mesmo se quisesse confessar algum nome não conseguiria,

mal dava para respirar. Tentou manter-se em pé para evitar os

chutes na área dos rins, que destruIam sua resistência. Involuntariamente

se abraçou a um dos agentes e o sujou do sangue que escorria das feridas

do corpo. Aos poucos Juliano foi descobrindo um meio de resistir às

agressões. Começou a exagerar nas reações ao sofrer o impacto de cada

soco ou pontapé. Era uma forma de forçar o aquecimento dos músculos

e adquirir forças para um possível ataque de fúria e loucura. De repente,

passou a gritar como se tivesse dando ordens aos carrascos.

- Bate, porra! Tá demorando pra me matar, caralho!

Tapas simultâneos com as duas mãos nos ouvidos de Juliano provocaram

cusparadas de sangue. Era o que os carrascos chamavam de

telefone. Cada sessão durava o tempo em que o policial conseguia bater

sem trégua. Os zumbidos, as dores agudas e a surdez indicaram a Juliano

alguma coisa de familiar. Por instantes lembrou-se do que um dia a ami


ga Luz havia lhe falado.

- Nunca se esqueça, Juliano: o telefone é sinal de que eles já estão

cansados de bater.

No intervalo da primeira sessão de tortura Juliano se esforçou para

lembrar de histórias semelhantes contadas pela amiga Luz. Em muitas

conversas na favela, ela falara da sua experiência como vítima de espancamento.

E explicara que tortura era uma espécie de iniciação, batismo

da vida do crime. Sabia que o amigo inevitavelmente passaria pelas mãos

dos carrascos. Fazia parte do jogo de polícia e bandido, era uma questão

de tempo. Por isso, Luz contou a Juliano tudo que sofrera, como forma

de ajudá-lo a resistir a futuros sofrimentos. Os conselhos de Luz serviram

como um roteiro dos horrores que ainda teria que enfrentar.

- Não fale de imediato, Juliano. O carrasco nunca acredita se você

confessa já na primeira porrada. Tente se segurar - cochicha Juliano para

si mesmo, reproduzindo os conselhos de Luz.

Jogaram dois baldes de água fria sobre o seu corpo para limpar o excesso

de sangue. Em seguida mandaram ele vestir uma camiseta e uma

bermuda e sair da cela para ser transferido antes do amanhecer para uma

delegacia da polícia civil.

Desde o começo dos espancamentos, era a primeira pausa nas agressões

dos torturadores. Enquanto recuperava um pouco das energias, Juliano

aproveitou a distância dos torturadores para pensar em sua situação.

Embora já tivesse sido preso outras duas vezes no Rio, agora tudo parecia

mais duro e difícil, porque não havia a cobertura de Carlinhos da Praça.

Estava enfrentando tudo sem a proteção dos amigos ou de um advogado,

e ainda longe de uma possível ajuda da família.

Nas duas prisões anteriores no Rio, Juliano escapara dos espancamentos

porque o patrão pagara propina aos policiais. Longe da sua cidade,

sem alguém para subornar a seu favor, ele sabia que receberia da

polícia o tratamento reservado aos acusados de pequenos roubos e furtos,

como acontecera com Luz.

Nas cinco vezes em que foi presa, Luz sofreu as agressões brutais

praticadas nas delegacias brasileiras. A primeira foi na delegacia de Copacabana,

aos 17 anos. Ela deveria ter sido recolhida a um abrigo para

jovens infratores, como manda o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Mas os policiais não registraram sua prisão, mantiveram-na numa cadeia

de adultos, escondida numa sala do segundo andar da delegacia, na sala

do pau-de-arara.

Quando os policiais mandaram Juliano ficar nu numa pequena sala

com divisórias de madeira, ele logo identificou os instrumentos de tortura.

Eram duas mesas colocadas lado a lado, apoio de uma barra de ferro

de mais de dois metros. Os policiais amarraram os pés e as mãos de Juliano

com uma corda de náilon bem apertada. Atravessaram a barra de

ferro entre os punhos e a dobra do joelho e a deixaram apoiada sobre as

duas mesas, para o corpo ficar pendurado para baixo a uma altura de 30

centímetros do chão.

Cada sessão do pau-de-arara durou perto de uma hora. Tempo em que

os carrascos o espancaram com cassetete de madeira na planta dos pés e

com palmatória de borracha nas costas e pernas. Queriam forçá-lo a falar

nomes de fornecedores de cocaína do Rio e de consumidores da Bahia.

Era quase insuportável a pressão sangüínea na cabeça pendurada para

baixo. Mas Juliano não confessou nada e não parou de repetir um nome:

- Luz! Luz!

Irritados com os gritos, os policiais tiraram Juliano do pau-de-arara e

mergulharam o rosto dele, com a boca aberta, num tonel cheio de água.

Deixaram-no submerso até o limite da resistência dos pulmões, entre

dois e três minutos. As sessões se repetiam de hora em hora durante todo

o primeiro dia de prisão. A cada troca de turno os carrascos também

mudavam as técnicas de tortura. Nos intervalos, Juliano falava sozinho,

repetia o que ouvira dos relatos de Luz:

- Na hora do choque você deve começá a falá. Invente qualqué nome.

Depois comece a entregá os amigos que já morreram. Só por último...

No segundo dia de prisão Juliano estava com o rosto avermelhado,

inchaços cobriam totalmente a visão de um dos olhos e parcialmente a

do outro. Mal conseguia ver os carrascos, ou mesmo o próprio sangue

que escorria das feridas do pulso e da parte posterior do joelho. Os pés

doíam, estavam enormes e roxos por causa da hemorragia interna. Não

conseguia levantá-los para andar ou para manter o corpo ereto. Curvado,

se arrastando pelo chão de cimento, ele desistiu de chegar ao banheiro e

urinou no chão mesmo.
- Está urinando fora do boi! Que desrespeito é esse? - disse um policial.

O flagrante de Juliano urinando fora do banheiro, que chamam de

boi, foi motivo para o uso da “ardida”, que no Rio era conhecida como

“nervosa” e em São Paulo como “pimentinha”. Era uma máquina de eletrochoque,

acionada pela manivela de um velho telefone de campanha.

Ela conduzia a corrente elétrica por dois fios que estavam sendo presos

a uma área muito específica do corpo de Juliano, como preveniu Luz. A

voz da amiga não saía dos pensamentos de Juliano.

- Todo torturador é um viado enrustido. Se prepare, eles não vão deixá

seu caralho em paz.

Três torturadores disputavam a tarefa de enrolar o fio no pênis de Juliano.

Um pegou os testículos entre os dedos e fechou a mão com força

crescente.

- Luz! - gritou Juliano para si mesmo.

- Não precisa falar, Carioca. Não temos pressa - disse o torturador.

O outro fio foi amarrado na língua. A cada giro da manivela Juliano

recebia o choque de uma corrente de 10 ampéres, que fazia estremecer

o corpo encolhido no chão de cimento. Ele tentou proteger o pênis com

uma das mãos, mas o anel de metal em contato com o fio provocou faísca

e queimadura entre as pernas. A máquina tinha três níveis diferentes de

potência. Em geral os policiais usavam o grau menor para torturar os

idosos e a média para todos os prisioneiros com idade inferior a 40 anos.

A potência máxima era aplicada em jovens como Juliano.

- Me dêem água que eu falo - pediu Juliano.

Uma mangueira de borracha ligada à torneira do banheiro foi introduzida

na boca de Juliano. A força do jato de água impediu que ele respirasse

e potencializou a intensidade dos choques elétricos.

Um dos torturadores passou sal no pênis, nos olhos, nas fissuras e

nos cortes da pele. Além da ardência, esse banho fez aumentar a condutividade

de energia no corpo. As cargas brutais de choque provocaram

espasmos em todos os músculos. Durante as convulsões Juliano perdeu

o controle da urina e das fezes. Fase em que os torturadores ainda não

estavam interessados em ouvir qualquer confissão, mas sim em exercitar

ao máximo a crueldade.


- Carioca cagão? O Rio não é a escola do crime, Carioca? - debochou

o torturador.

Juliano não conseguiu responder.

- O Rio é a escola e a Bahia é a faculdade, Carioca. Agora você vai

aprender o que se faz aqui com os bandidos - disse o torturador.

Os choques elétricos prosseguiram com intervalos de uma hora para

sevícias sexuais promovidas por uma dupla de torturadores encapuzados.

A arma deles era um cigarro aceso, que usaram inicialmente para queimar

os pêlos em volta do pênis. Em seguida provocaram queimaduras

nos testículos.

- Eu falo - rendeu-se Juliano.

- Quem disse que queremos ouvir?

O desinteresse dos policiais no interrogatório levou Juliano ao pânico.

Embora já estivesse desesperado pela dor, acreditava ainda ter um certo

controle da situação. Achava que bastava começar a confessar qualquer

coisa para reduzir progressivamente a brutalidade. A postura surpreendente

dos torturadores podia significar algo ainda mais grave, como eles

mesmos ameaçavam.

- Teu cadáver vai servir de exemplo. Nunca mais um bandido carioca

vai pisar aqui na Bahia. Está entendendo, meu rei?

A tortura culminou com uma sessão de “enforcamento”. Os torturadores

usaram uma toalha molhada para conter a respiração de Juliano,

enquanto a manivela do eletrochoque era acionada em velocidade máxima.


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