o hospital.
Depois de duas horas de conspiração telefônica, em vez de Juliano
sair do esconderijo para ser hospitalizado, o hospital é que vai subir o
morro para socorrê~lo. Ao amanhecer, homens desarmados misturam-se
às primeiras pessoas que descem as vielas para ir ao trabalho. Vão até o
Cantão para recepcionar o médico que está chegando de táxi. Oferecem
ajuda para levar a bagagem. É um jovem, pouco mais de trinta anos.
Veste roupa e sapatos brancos e leva estetoscópio, o sensor de batimentos
cardíacos, pendurado ao pescoço. Cumprimenta o grupo sem falar o
nome. Os homens oferecem ajuda, e ele não aceita. Para evitar qualquer
possibilidade de ser confundido, o médico caminha atrás do grupo e faz
questão de carregar a maleta com os instrumentos para casos de emergência.
- Com a glória de Deus e de Nossa Senhora Aparecida, eu sou Julia
no, muito prazê. O médico o cumprimenta em silêncio. Tem pressa.
Abre a maleta dos instrumentos e, enquanto seleciona algumas peças,
começa a interrogar Juliano a distancia.
- Vamos ver os ferimentos... Sente alguma ardência nos olhos? Visão
prejudicada? Vê alguma nuvem escura?
Juliano responde que está bem e, visivelmente desconfiado, vai até a
cozinha e chama Kevin para uma conversa. Ele quer saber como o médico
chegou até ali. Ao ser informado de que ele fora indicado por uma
moça da favela que namora um traficante do morro do Dendê, desiste de
ser atendido.
- Mas como? O Dendê é dos alemão, é ou não é? Se esse médico é do
contexto do inimigo, é nosso inimigo também. Vai tocá a mão em mim,
não! - diz Juliano.
Por insistência de Kevin, o máximo que Juliano permite é um exame
do médico a distância.
- Tu, Kevin, examina. E o cara fica de longe, na tua campana.
Assim é feito. Primeiro, examina a parte posterior da cabeça. Apalpa
com os dedos e descobre as duas pequenas bolas de inchaço na nuca. Ele
comenta que elas se formaram provavelmente por algum trauma durante
o tiroteio, sem nenhuma possibilidade de alojarem dois projéteis. Diz
que seria necessário fazer uma radiografia para avaliar a profundidade do
corte no tampo do cérebro e da testa.
- Radiografia? Hospital? Só saio daqui morto - diz Juliano.
O médico tenta acalmá-lo com uma surpresa.
- Eu trouxe um aparelho de raios X portátil. É muito simples!
- Ótimo! - diz Juliano. - Aí então o senhor pode fazê o raio X do Paranóia.
Ó só, como tá o braço do moleque?
Constrangido, o médico faz o exame no adolescente, cercado pela
curiosidade dos amigos que se aproximaram para ver de perto. A radiografia
constata fratura no braço direito e mostra a posição dos dois projéteis
alojados perto do ombro de Paranóia, coberto pelas manchas pretas
da hemorragia interna.
- Olha só a azeitona onde parou, caralho. E aí? Dá para tirá daí, doutor?
-pergunta Paranóia.
O médico diz que a cirurgia só poderia ser feita no hospital. Imobiliza
o braço quebrado e faz um curativo na lateral da cabeça, logo acima da
orelha, ferimento provocado provavelmente pelo impacto da colisão do
carro contra o poste. Juliano, ainda desconfiado, examina a radiografia
para ter certeza do diagnóstico médico.
- Maior responsa, hein, doutor? O senhor é bom nisso?
O médico não responde. E começa a arrumar os instrumentos na maleta
para ir embora. Juliano não contém a curiosidade e toma a iniciativa
de uma conversa sobre o seu próprio ferimento.
- Qual é a chinfra dessa radiografia, doutor? Pode mostrá bagulho
estranho dentro da minha cabeça?
- É. A chapa mostra, sim.
- Olhando assim de perto, qual a sua impressão, doutor?
- Sinceramente?
- Claro! Se eu tivé morrendo, pode dizê.
- Isso foi um tiro de raspão, com certeza.
- Quantos por cento de certeza?
- Noventa e nove vírgula nove! Você nasceu de novo!
Antes do médico partir, Juliano volta à cozinha para uma conversa
particular com Kevin.
- Tu ouviu a conversa desse cara? Noventa e nove vírgula nove!
- Qual é o problema? - pergunta Kevin.
- Ele qué que eu não procure socorro, aí! Isso é coisa de alemão, aí.
- Paranóia, tá de paranóia. O cara é profissional!
- Qué dizê que tu concorda com o cara,Kevin?Tô bolado contigo, aí!
- Concordo. Quer saber: eu vi, é tiro de raspão mesmo!
Juliano aos poucos vai sendo convencido por Kevin sobre a isenção
do médico. Mais calmo, ele se esforça para ser um pouco gentil. Concorda
em pelo menos agradecer pelo tratamento recebido.
- Precisando qualqué coisa lá no asfalto, é só pedi. Aqui em cima
tamo mais perto de Deus!
Quando o médico parte, Juliano não esconde a euforia.
- Cara, nasci de novo! Agora é só fazê uma plástica...
Uma cirurgia de guerra, feita pela própria vítima e sem perda de tem
po para a ferida não se consolidar. Juliano escala dois homens para segurar
o principal equipamento da operação, o pequeno espelho com moldura
de madeira que estava pendurado no banheiro da casa.
As palmas das mãos fazem a automassagem no rosto. E os dedos
pressionam a pele da testa em volta da área atingida pelo projétil. É um
corte com dois centímetros e meio de extensão e bem raso, tem poucos
milímetros de profundidade.
O toque perto da ferida provoca um pequeno sangramento, absorvido
e limpo com a própria camiseta. Agora usa a ponta dos dedos delicadamente
para juntar ao máximo as duas bordas da ferida.
A cirurgia se completa com a colagem de duas fitas adesivas em paralelo,
uma de cada lado da linha de carne viva da testa.
De frente para o espelho, Juliano agradece o sucesso da cirurgia com
uma oração:
- Obrigado, meu Pai, por mais um dia nesta tua terra maravilhosa. E
por nos conceder esta liberdade.., que esta misericórdia se estenda por
muitos e muitos séculos.., e o que o mal jamais vença o bem!
Apesar de ter passado a noite acordado, Juliano ainda tem energia
para conversar. E quer falar, por telefone, com alguém de fora do morro
para saber da repercussão que o tiroteio teve na cidade. Disca alguns
números, mas como ninguém atende deixa recados animados nas caixas
postais eletrônicas. Ao desligar o celular, constata que só ele está animado.
Dá uma bronca na quadrilha.
- Porra, que cara é essa? Tavam torcendo pra que eu fosse pro inferno?
Qual que é?
Mas Juliano não sustenta a bronca por muito tempo. Exausto e enfraquecido
pela perda de sangue, tenta não dormir enquanto repete a oração
da graça alcançada:
- Obrigado, Senhor, pela proteção divina...
Enquanto isso, na área da boca, todos querem conversar com Paranóia,
ver de perto os ferimentos, saber detalhes do tiroteio, elogiar a sua
ação. Uma menina pediu de presente a camiseta furada de bala, para
guardar de lembrança. Ele sentia dores, estava abatido, traumatizado pelo
que acabara de viver, mas gostava de ouvir o pessoal comentar que sua
coragem tinha salvado o chefe. Tomou um banho em casa, sem fazer ba
rulho para a mãe não acordar e ver o sangue seco espalhado pelo corpo.
Vestiu a camiseta preferida e que tinha tudo a ver com o seu momento.
Uma camiseta preta, com o símbolo do grupo de rap Racionais MCs
no peito e nas costas a frase: “Só Deus sabe a minha hora.”
No final da reza de Juliano, os parceiros contam para o chefe que o
seu companheiro mais antigo na quadrilha não conseguiu escapar. E que,
devido às circunstâncias, nem o corpo podiam trazer para perto deles
como sempre fazem quando perdem alguém na guerra.
Lá embaixo, na ladeira de paralelepípedos, uma pequena multidão
está em volta do carro para ver o corpo do melhor motorista da favela.
Almir de Paula Bento, o Careca, fuzilado ao volante do Fiesta.
CAPÍTULO 2 VOLANTE
M-16P. G-3. AK-47
Uzi. Glock
Fuzil lança rojão
que vem na contenção.
Pra fortalecê, pra fortalecê!
(Funk proibido)
Não há tempo para refletir sobre as falhas da missão que levaram à
morte de Careca. Os parceiros dele estão exaustos, 24 horas sem dormir.
Precisam encontrar um esconderijo seguro para descansar, mas antes têm
que enviar dinheiro para a família pagar os gastos de um velório digno
para o amigo que foi fiel até o último momento.
Careca tinha bons motivos para oferecer fidelidade aos parceiros de
crime. Seis meses antes, as mulheres da favela ajudaram sua irmã, Cris,
a salvar a sua vida, quando já estava sendo carregado pela polícia para o
fuzilamento no pico do morro.
- Descobrimos teu irmão pegado - disseram os policiais que o prenderam
por porte de cocaína.
Era uma blitz da Delegacia de Roubos e Furtos, e Careca, que passara
a noite acordado, cheirando cocaína com a namorada, não acordou
a tempo de escapar dos policiais. Foi amarrado com fios de arame tão
apertados que fizeram sangrar os pulsos e os tornozelos. Foi surrado na
frente dos parentes e arrastado morro acima com o rosto coberto por um
saco preto, um indício de que estavam a caminho de uma execução.
- A delegacia é para baixo! - protestou a irmã Cris, com o apoio de
várias amigas que cercaram os policiais para pressioná-los. Uma das mulheres
ligou para a repórter Albeniza Garcia, muito respeitada pelos moradores
do morro. Quando os policiais ouviram a notícia de que Albeniza
estava a caminho da favela, levaram Careca preso para a delegacia de
Botafogo.
Como era reincidente, já tinha sido preso cinco anos antes por receptação
de carro, Careca teve que esperar meio ano pelo julgamento
na cadeia. Nesse tempo, mesmo com o morro em guerra, nunca deixou
de receber dos amigos pequenas remessas em dinheiro ou maconha. A
ajuda serviu para comprar dos carcereiros o direito de tomar uma hora
diária de sol, de dobrar o tempo de 15 minutos da visita da família e de
poder cobrir com um lençol a grade da cela para ter privacidade quando
a mulher Andréia ou a namorada Cristina dos Olhos apareciam. Ainda na
cadeia, Careca soube que o morro planejava um ataque importante. Por
isso, absolvido e libertado justamente na semana em que estava prevista
a ação, foi direto à Santa Marta oferecer ajuda a quem, nas horas mais
difíceis, amenizou o seu sofrimento na prisão. Apresentou-se ao chefe,
seu amigo de infância, como voluntário.
- Tô aqui pra reforçá, Juliano. Aí, tô sabendo que vamo metê uma parada
sinistra. Tu tem que arrumá um ferro preu sentá o dedo neles... aí!
Naqueles dias, Juliano também estava recebendo o apoio de voluntários
dos morros amigos do Cerro Corá, do Turano e do Vidigal. Em circunstâncias
normais, a habilidade de Careca ao volante o colocaria entre
os selecionados para o bonde, nome que os traficantes dão a todo grupo
que se movimenta para realizar alguma tarefa. Mas a missão exigia um
outro perfil. Juliano sabia que não iria convocá-lo, mas não dispensou a
ajuda.
- Vamo precisá de carro não, Careca... Tu fica na contenção aqui.
Qualquer caô te chamo pra pegá nós.
- Aí. E uma moto? Posso arrumá uma moto, aí - sugeriu Careca.
- Manero, manero. Mas deixa na boa. Essa parada vai sê diferente.
Aproveita, vai tirando uma chinfra aí no morro. No dia certo te chamo,
tá manero?
Nos três primeiros dias de liberdade Careca vagou pela favela fazendo
coisas que sonhara na cadeia. Almoçou na casa dos melhores amigos.
Tomou vários banhos na fonte natural no coração da favela, a praça das
Lavadeiras, que também é chamada de primeira Mina, no meio da algazarra
das crianças que brincavam na água e das mulheres que lavavam
roupa. Embora fosse casado, preferiu voltar a morar com a mãe, dona
Dalva, e com as duas irmãs gêmeas, Cris e Michele, na casa conhecida,
pela atividade de sua avó, como o Terreiro da Maria Batuca. Assim, poderia
passar parte do dia com cada uma das mulheres.
A mãe Dalva, separada do marido Tibinha, criou os filhos lavando
roupa para os clientes do asfalto e com o dinheiro arrecadado no terreiro
de macumba que herdou da mãe e que ocupa todo o andar térreo da
casa. Depois das atividades religiosas o salão virava área de recreação
das crianças da família e dos filhos dos amigos que brincavam no meio
das imagens de Oxum, Oxóssi, Preto-Velho. E domingo pela manhã se
transformava em sede do Imperial, um time de futebol criado por Tibinha
antes de se separar de Dalva.
Depois de tanto tempo limitado a jogar bola num espaço de dois metros
quadrados, no pátio do presídio, Careca reencontrou com grande
alegria os jogadores do morro e assistiu com eles a alguns jogos transmitidos
pela TV da birosca do seu Arnaldo. A família de Careca era responsável
por uma peculiaridade da Santa Marta. Apesar de ser o morro mais
íngreme do Rio de Janeiro, sem nenhum espaço adequado para jogar
bola, graças à iniciativa do seu Tibinha de fundar o pioneiro Clube Imperial,
a favela era representada nas peladas da cidade por quatro times de
futebol. A limitação geográfica impedia que os jogadores treinassem e os
obrigava a sempre disputar as partidas em território neutro ou no campo
do adversário. Dos quatro times, o Nascente e o Noturno eram formados
por traficantes. O Mengão só tinha trabalhadores. O outro era o Imperial,
que um dia disputou a terceira divisão do futebol carioca. Antes de ir
para a cadeia, Careca era o lateral esquerdo titular. Em março de 99, ele
prometia recuperar a posição no jogo que marcaria a sua volta, previsto
para o primeiro domingo do mês, contra o Cruzeiro Azul, um time de
traficantes do Vidigal, no aterro do Flamengo.
Bom de bola e de samba, todas as noites Careca participou das rodas
de samba na quadra da Escola Unidos da Santa Marta, no Cantão. Ele
tinha um motivo maior para freqüentar a escola de samba: a paixão por
uma bela passista da escola, uma mulata de olhos verdes, Cristina dos
Olhos.
Namoro que o fez esquecer os compromissos com a mulher, Andréia,
com quem tinha duas filhas gêmeas. As meninas, de cinco anos, eram
atração na favela porque uma era branca e a outra negra.
Careca passou um dia com elas, que moravam com a mãe no barraco
da sogra. Avisou que estava de volta à liberdade e prometeu retornar ao
convívio da família assim que arranjasse um trabalho ou algum dinheiro
para tirá-las de lá.
Na madrugada em que Juliano decidiu atacar o inimigo, Careca dormia
no Terreiro da Maria Batuca com a namorada Cristina dos Olhos,
com quem também tinha uma filha. Foi acordado por Luz, que trazia uma
mensagem de Juliano.
A notícia o surpreendeu.
- Eles partiram de madrugada, a pé - disse Luz.
- Foram quantos? - perguntou Careca.
- Sei não o que passa na cabeça do Juliano. Levou apenas o Bruxo, o
Tucano e o Paranóia.
- Bonde apenas com quatro! Nunca vi, nunca vi. E qual é a parada?
- Juliano mandô avisá pra ficá na muda pra evitá cagüetação. A parada
é foda, se dé errado tamo ferrado, neguinho vai tê que rapá fora daqui
para sempre - avisou Luz.
Careca havia participado das reuniões de planejamento e ainda tinha
esperança de ser escalado para a missão. O plano de Juliano era atacar os
principais inimigos do morro, que chamam de “os alemão”. Um ataque
surpresa, ao estilo de ações guerrilheiras, que paralisasse o inimigo sem
necessidade de muito uso de armas, seguida de recuo estratégico para o
esconderijo.
O ataque era o fator surpresa. Nesses dias seus homens lutavam na
defensiva, devido à brutal desvantagem em relação aos inimigos, que
tinham o apoio involuntário dos policiais. Por ordem do governador do
Rio de Janeiro, dezenas deles estavam envolvidos na perseguição a Juliano.
A notoriedade do chefe tem sido o maior adversário da quadrilha.
Condenado pela Justiça a 46 anos de cadeia, foragido há dois anos e
meio, Júlio Mario Figueira, o Juliano, de 29 anos, se tornou um dos criminosos
mais procurados pela polícia porque durante a sua última fuga,
em 1996, um investigador que tentou evitá-la foi baleado no rosto. A
gravidade do episódio levou a Secretaria de Segurança Pública a oferecer
dois mil dólares de recompensa para quem informasse a localização de
seu esconderijo.
Nesse ano de 1999, por ordem do governador Anthony Garotinho, o
valor da recompensa pela sua captura subiu para cinco mil dólares. Isso
motivou uma caçada sem precedentes, que incluiu a colagem nas biros
cas da favela de um cartaz com seu nome e a palavra PROCURA-SE
impressa com letras maiúsculas embaixo da foto de um jovem moreno,
com nariz achatado, olhos pequenos repuxados como os dos orientais,
cabelos raspados, bigode e cavanhaque.
Os PMs do Segundo Batalhão da Polícia Militar, o mais próximo da
Santa Marta, faziam operações diárias de busca a Juliano. Em alguns
dias, no começo da noite ou antes do amanhecer, recebiam o apoio dos
soldados do Bope, o Batalhão de Operações Especiais da PM, que revistavam
os homens nas ruas e nos botequins e usavam máscaras quando
invadiam os barracos sob suspeitas de abrigar o dono do morro.
A prisão do bandido de cinco mil dólares também era disputada pelos
poliçiais do DRE, o Departamento de Repressão a Entorpecentes da Polícia
Civil. Vários grupos de outras unidades também faziam operações no
morro, às vezes com o reforço de matadores profissionais ou informantes
anônimos.
Os inimigos mais temidos estavam tirando proveito das prisões e
das mortes dos guerreiros de Juliano e do desgaste da perseguição. Eles
agiam sob o comando do homem acusado de ser o maior atacadista de
cocaína da zona sul do Rio de janeiro, Carlos Gilmar Santos Tavares, o
Carlos da Praça, ex-morador da Santa Marta e um dos mentores do tráfico
no morro, que esteve sob seu domínio por cinco anos. Durante mais
de uma década Da Praça também tinha sido o único fornecedor de drogas
da favela. E tinha Juliano como um de seus homens de maior intimidade
e confiança. Chamava-o de sobrinho “leite ninho”. Foram parceiros de
viagens para traficar fora da cidade e do estado. E juntos foram condenados,
em um mesmo inquérito policial. Muitas vezes estiveram cumprindo
pena na mesma cadeia. Embora também fosse integrante do Comando
Vermelho, Da Praça passou a ser considerado inimigo no dia em que o
então gerente da boca, Juliano, organizou uma rebelião armada contra
ele. Além de ser expulso da comunidade, Da Praça também perdeu a
condição de único fornecedor de pó do morro. Juliano contratou outro
atacadista, o que abriria uma guerra sem fim contra o seu antigo patrão.
Mesmo prisioneiro em 1999, a cadeia não impediu que Carlos da
Praça exercesse sua influência para financiar a organização de quadrilhas
que invadiram o morro com a missão de matar Juliano. Às vezes conse
guia o apoio de policiais civis, o que dificultava a reação.
Os combates quase diários contra os homens de Da Praça tinham
acabado com reservas de munição de um grupo já fragilizado pelas mortes
e prisões, perdas de armas e falta de dinheiro. Não havia mais como
sustentar um tiroteio nem por meia hora, como eles sempre faziam para
conter a subida da polícia e evitar prisões em flagrante na boca. Nesses
dias, lutar, para os homens de Juliano, significava apenas correr pelas
vielas em ziguezague, esconder-se embaixo de algum barraco ou dentro
das valas de esgoto, saltar de uma laje para outra ou, de preferência, fugir
para bem longe das balas da polícia.
Enquanto a polícia atacava pela parte alta do morro para atingir a
base da quadrilha, os homens de Carlos da Praça agiam pelas margens,
nas ruas próximas ao acesso da Santa Marta. Nos primeiros dias dos
ataques sua quadrilha tomou dois dos quatro pontos-de-venda de cocaína
de Juliano localizados no asfalto, no pé do morro, no lado do bairro de
Laranjeiras. Uma vitória sem resistência e que no dia seguinte garantiu a
retomada das vendas, sob nova direção. E ainda continuou pressionando
Juliano com ataques sistemáticos para tomar de vez toda a sua estrutura
do tráfico. Por cartas, que mandava entregar aos gerentes da boca, Da
Praça também fazia uma guerra psicológica, ameaçadora.
- Você tem uma semana para devolver o que me pertence- sentenciava
Da Praça.
Juliano passou parte da madrugada em silêncio preparando o kit guerrilha.
Carregou quatro baterias de dois aparelhos celulares. Lubrificou os
fuzis emprestados pelos dois amigos do Vidigal. Pôs as granadas, cortesia
do Turano, nas mochilas dos homens da quadrilha, meia dúzia para
cada um. Reservou para ele dois cinturões carregados de projéteis de
alta velocidade. Para não sobrecarregar ninguém, distribuiu entre eles o
peso de vinte metros de corda de náilon, um rolo de corda encerada, duas
lanternas submarinas, um facão, quatro cantis de alumínio, um canivete
chinês de múltiplas utilidades, seis isqueiros a gás, 24 velas vermelhas,
pretas e brancas e duas imagens em cerâmica de São Jorge e Nossa Senhora
Aparecida.
De manhã bem cedo, para não chamar a atenção dos policiais à paisana
que circulavam pelas vielas, Juliano reuniu seus homens sobre a laje
de um barraco do beco Jabuti. Agachado, no centro da roda, ele revelou
os primeiros detalhes do plano.
- Eles pensam que tamo acuado, sem condição de saí da toca. A idéia
é pegá os cara desprevenidos. De que jeito? Furando o cerco, atacando
em silêncio, na manha, como nos assaltos, de surpresa.
A necessidade de sair da favela sem chamar atenção explicava a escolha
de um bonde pequeno, com quatro homens. A experiência em assalto
a residências e ao comércio levou à seleção imediata de Tucano, que era
conhecido como caxangueiro, especialista em ataque a residências. Era
respeitado como veterano, embora tivesse 27 anos. Costumava lutar ao
lado dos traficantes por amizade a Juliano. A contrapartida do amigo era
o empréstimo de armas quando ele precisava de um reforço para os assaltos
de maior porte.
Outro selecionado, Paranóia, um adolescente de 19 anos, desde criança
vivera muito próximo do pessoal da boca. Soldado do tráfico havia três
anos, já dera provas de coragem e determinação em situações de intenso
tiroteio. Paranóia e Tucano receberam a tarefa com orgulho, consideraram-
se prestigiados e engrandecidos porque teriam como parceiros dois
chefões de morro, Juliano, da Santa Marta, e o voluntário Paulo Roberto
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