O dono do morro dona marta



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a ganhar fama de matadores pela voracidade com que lutavam contra os

inimigos. Para surpresa de Kevin, ambos tornaram-se fiéis colaboradores

dos cultos no barraco da endolação.

Era um velho barraco de madeira de um único cômodo, o que os obrigava

a usar a cama para sentar diante de uma mesa baixa, com menos de

meio metro de altura. Os outros sentavam em latas de mantimentos e em

pequenos montes de tijolos improvisados como bancos. Eram em média

cinco endoladores, incluindo Ferrô e Laranjeira. Sempre que a boca fazia

um pedido, passavam a madrugada fazendo a pesagem e a separação

de cada sacolé de cocaína. Vestiam-se apenas com bermudas, porque o

ventilador barulhento, ligado em cima do guarda-roupa para não espalhar

o pó de cima da mesa, não dava conta do calor e da sensação de abafamento

no ar. Durante o dia, os meninos Nem e Pardal eram os olheiros

na varanda destelhada do barraco. E à noite, às vezes de madrugada, se

revezavam na vigilância. Mantinham-se acordados à base de café preparado

no fogão enferrujado, já sem porta no forno e com um vazamento

no bico do botijão, que exalava um forte cheiro de gás.

Alguns não resistiam à tentação de desviar para as narinas a matéria-

prima da linha de produção, que só era interrompida com a chegada do

missionário Kevin, anunciada com entusiasmo por Ferrô:

- Aí, vamo metê uma camisa para recebê a palavra de Jesus. Manda

daí, Kevin.
Kevin estava sempre acompanhado por dois jovens missionários da

Jocum, que levavam um violão para animar os cânticos.

- Aí, pessoal, viemos aqui falar do amor de Deus por vocês! - dizia

Kevin para introduzir o momento das orações. Com o tempo Ferrô aprendeu

a orientar os detalhes dos rituais.

- Agora todo mundo fecha o olho aí, que o irmão Kevin vai mandá

aquela canção invocada - dizia Ferrô, enquanto os evangélicos tocavam

violão e oravam:

“Quero que valorize o que você tem, você é um ser.

Você é alguém tão importante para Deus.

Nada de ficar sofrendo, angústia e dor

Neste seu complexo de inferior dizendo às vezes que não és ninguém.

Eu venho falar do valor que você tem.

O Espírito Santo está em você.”

A dedicação e envolvimento de Ferrô e Laranjeira com o evangelho

levaram Kevin a acreditar na conversão da dupla e a se empenhar num

trabalho de conscientização dos valores humanitários perdidos.

Na época dos tribunais, os dois davam sinais de envolvimento com a

pregação do missionário.

- Aí, irmão, tô interado na tua: eu aceito Jesus no meu coração, tá

ligado, na moral mesmo! - disse

Ferrô a Kevin pouco antes de o missionário ser interrogado no tribunal

de Raimundinho. Kevin acreditou nas palavras do chefe da endolação.

Mas, mesmo que soubesse alguma coisa que o incriminasse, jamais

revelaria, pois já conhecia muito bem, pela experiência dos tribunais de

outros morros, que isso poderia significar uma sentença fatal. Pior, no

caso da Santa Marta, era o fato de Raimundinho ter escolhido para o

julgamento a área do Cruzeiro, justamente onde estava o ambulatório da

Jocum. Era impossível não ter algum tipo de envolvimento, pelo menos

era inevitável a condição de testemunha. Ao ser chamado para depor, os

acusados Ferrô, Fabrício, Jairzinho e Nego

Pretinho estavam sentados no chão, lado a lado, de cabeça baixa.

- Aí, irmão. É tua vez de falá contra esses cuzão modorrentos. Eles

deram um banho na boca, não foi, irmão, diz aí com todo o respeito a

Deus e o caralho! - provocou Raimundinho.

- Não percebi nada disso, não. Eu estive várias vezes na endolação.


Li para eles um trecho da Bíblia e depois oramos, oramos... - respondeu

Kevin.


- Qual que é, irmão. Olha aí a cara deles. Estão lombrados até agora e

tu não viu nada, irmão? Em vez de endolá, eles cafungam a noite inteira

e, aí, como tu não vê isso? Deus vai ficá cabrero contigo, irmão. Sinceramente!

Embora fosse novato no morro, o depoimento de Kevin tinha peso no

tribunal devido à notória relação de confiança e amizade com o gerente

Juliano. Depois de prestar seu testemunho, Kevin voltou para as atividades

do ambulatório, de onde podia ouvir a gritaria do julgamento, que

parecia sem fim. Era a vez de Ferrô iniciar o seu depoimento, já com a

certeza de que a condenação era iminente. Seu próprio estado físico era

quase uma confissão.

Estava trêmulo, desfigurado e tinha dificuldades de pronunciar as

palavras por causa da língua travada pelo efeito do consumo de pó em

excesso. As narinas úmidas também indicavam que passara a noite aspirando

o volume desaparecido. Como ele nada falava, Raimundinho mandou

que levantasse e ficasse ao lado de Jairzinho que já havia confessado

parte da culpa pelo sumiço do pó.

- Levantem a mão, moleques - gritou Raimundinho para os dois adolescentes

de 14 e 15 anos.

O sinal de condenação dos dois meninos surpreendeu a platéia e teve

o protesto de Luz:

- Qualé, Raimundo? Eles deram um peguinha de nada... Tu tá bolado

como se eles fosse um aspirador de pó! Não é justo, Raimundo. Porra!

- O desenrole não é contigo, Luz. Tu é mamão com açúcar, mulhé.

Não quero nem sabê! Os dois vacilaram. Tão pensando o quê?... Alguém

vai me desafiá, me pô na idéia de otário... Levanta essa porra da mão já!

A pistola automática engatilhada indicava que Raimundínho estava

decidido. O único absolvido era Cássio Laranjeira. Para evitar algo pior,

Jairzínho levantou o braço, oferecendo a mão, mas se arrependeu. Abaixou

o braço, aumentando a irritação do carrasco.

- Deixa essa mão levantada, porra! Vou sentá o dedo! - gritou Raimundinho.

- Está bem, atira, atira!
Jairzinho parecia decidido, mas não estava. Frações de segundos antes

de Raimundinho disparar a pistola, ele conseguiu desviar a mão do

tiro. Os ajudantes tiveram que segurar o braço dele para a sentença ser

executada. O único tiro disparado no meio da palma da mão provocou

fraturas, destruição dos nervos e o choro de dor e de pânico. Jairzinho

foi socorrido pela mãe, que o encontrou a caminho de casa em estado de

choque, com os olhos arregalados, fixos na mão destroçada.

- Isto é o CV, mané! - gritou Raimundinho.

Luz continuou protestando para si mesma, falando sozinha.

- Porra, o cara é do movimento. Imagina se fosse um alemão, um

inimigo. O Raimundo tá boladaço, tá boladaço.

O tribunal foi interrompido com a súbita interferência do Doente Baubau.

Ele estava acompanhando o julgamento em silêncio, mas na hora da

execução da sentença reagiu como se fosse um torcedor de futebol na

arquibancada.

- É sangue bom, obá! É sangue bom, obá!

O entusiasmo de Baubau irritou Raimundinho, que o calou com um

violento tapa no rosto.

Em seguida mandou Ferrô levantar o braço. O primeiro disparo falhou.

O segundo também. Raimundínho mandou o avião Pardal providenciar

um porrete. O menino estava trêmulo, chocado com a ordem, mas tratou

de cumpri-la. Algumas mulheres se afastaram, assustadas, para não ver

a cena. Segundos depois, os gritos de horror de Ferrô foram ouvidos no

ambulatório e trouxeram o missionário Kevin de volta ao local do tribunal,

para prestar os primeiros socorros. O gerente da endolação estava

com os ossos da mão fraturados pela porretada.

- Aí, moleque. Põe Jesus em tua mente enquanto eu faço a limpeza

da tua mão.

- Porra, tá foda, irmão, tá foda...

- Vai doer, mas tem que ser. Tem muito caco de osso, naquinho de

madeira, pó, areia... Vou começar com a lavagem...

- Anestesia, irmão! Caralho, anestesia.

- Tem que ser na raça, Ferrô. No hospital é pior. Manda uma água

boricada aí, urgente - pediu Kevin ao menino Pardal, que fez um “avião”

até o ambulatório da Jocum para atender ao pedido.
Os casos de mutilações nos tribunais abalaram algumas famílias antes

entusiasmadas com a chegada de um poder jovem ao morro. Nos primeiros

dias de ocupação, algumas mulheres foram até a boca pedir a Juliano

uma vaga para o filho na quadrilha. Uma delas, uma viúva, doméstica

num prédio da zona sul, era a mãe de Ferrô. Precisava que o menino

buscasse no tráfico um reforço de renda para a família. Ferrô impediu

que a mãe voltasse à boca para reclamar do tribunal. Ainda recebendo os

curativos, só parecia preocupado com o seu futuro na quadrilha:

- Aí, irmão, fudeu, não? Será que eu perdi meu lugar na endolação?

Os tribunais ajudaram a consolidar, pelo medo, o poder do trio na gerência

do morro. Homens indisciplinados, suspeitos de colaborar com a

polícia e simpatizantes da quadrilha de Zaca estavam na mira de Raimundo.

As sentenças tornaram-se ainda mais imprevisíveis e cruéis. Mesmo

os que eram absolvidos dificilmente escapavam do espancamento em

lugares públicos. Eram surrados a socos, pontapés, pauladas, estocadas.

Os casos de decisão extrema ganharam uma base para a execução de

torturas e fuzilamentos, o pico do morro.

Executar os condenados no pico era uma forma de esconder da comunidade

as maiores perversidades. Raimundinho tinha o apoio de Carlos

da Praça, que gostava da fama de linha-dura que a Santa Marta estava

consolidando entre os chefões do Comando Vermelho. Mas Raimundinho

enfrentava a resistência de seu irmão e parceiro de gerência, Claudinho,

que temia futuras represálias dentro da favela.

Para driblar a oposição de seu irmão, Raimundo passou a atuar por

decisão própria, com auxílio do pessoal da endolação, a dupla Marco

Ferrô e Cássio Laranjeira. O missionário Kevin continuava empenhado

na evangelização da dupla, na tentativa de humanizá-los. Eles pareciam

responder positivamente aos apelos religiosos, inclusive adotaram

o hábito de carregar uma Bíblia na mão, até nas horas mais delicadas e

perigosas da atividade no tráfico. Mas, para decepção do missionário, os

dois novos crentes estavam com Raimundinho no dia em que um homem

não identificado, cliente da boca, foi fuzilado sem nenhum julgamento

prévio.

Não havia nenhuma desconfiança fundamentada, nenhuma dívida,



nenhum comportamento inadequado, briga ou desentendimento no pas
sado, nada que pudesse explicar a atitude do trio contra um jovem que

estava no final da fila de compra da cocaína.

- Qual é que é a tua aí, vacilão? Fui com a tua cara não, rapá - provocou

Raimundinho com cara de bravo, apontando uma pistola para o rosto

do desconhecido.

- Que nada, só quero uma brizola de dez. Uma merreca, dinheiro tá na

mão, olha! - respondeu o desconhecido.

- Tu é folgado. Tá de butuca no lugá errado, vai levá ferro. Tu nem

falô o teu nome, mané.

- Qué isso, cara. Meu nome é Carlos, é Carlos, é Carlos.

- Tu é Mané. Quebra, Ferrô, quebra!

Imediatamente Ferrô e Laranjeira pegaram o desconhecido pelo braço

para afastá-lo da fila. O jovem ainda tentou convencê-los a mudar de

idéia.


- Sou o Carlos, borracheiro ali do pé da Tabajara... Só queria uma brizolinha.

Tem parada errada, não. Posso saí de pinote na boa, no respeito,

mermão.

- Vou te dá um calaboca, mané - gritou Ferrô. Mesmo com a mão ainda



ferida, ele disparou o revólver para baixo na direção da vítima.

O tiro acertou o joelho do desconhecido, que caiu já implorando para

não ser morto. O corpo inteiro tremia, o sangue escorria até os pés e ele

não conseguia obedecer às ordens de Ferrô e Laranjeira, que queriam

matá-lo em pé, a dez passos da birosca de dona Virgínia. Como o jovem

não conseguia forças para erguer-se, os dois o arrastaram pelos braços e

apoiaram suas costas num antigo muro de pedra escura, coberto de musgo

e muita umidade. O tiro atraiu a atenção do missionário Kevin e de

Juliano, que conversavam ali perto.

- Automática, Glock. Deu merda, sentaram o caroço em alguém - respondeu

Juliano, já andando ligeiro para os lados de dona Virgínia, com o

fuzil engatilhado nas mãos.

Ferrô apontava a arma com o cão puxado para trás, pronto para a execução.

Ao lado dele, Laranjeira fazia uma última exigência à vítima.

- Aceita Jesus no seu coração? - perguntou ao desconhecido, que chorava

desesperado com as duas mãos cobrindo o rosto. Como ele nada

respondeu, Laranjeira insistiu, irritado.
- Diz que aceita Jesus, caralho! - gritou Laranjeira.

- Aceito, aceito qualquer coisa - disse o desconhecido.

- Jesus, caralho! - insistiu Laranjeira.

- Jesus, caralho! - repetiu o desconhecido.

Os dois descarregaram suas armas sobre o rosto e o peito do desconhecido,

que ainda agonizou por alguns minutos. O corpo já estava sendo

arrastado para ser jogado num penhasco do pico quando Kevin e Juliano

intervieram, questionando o mandante do crime, Raimundinho.

- Por que tu quebrô o cara, Raimundinho? - perguntou Juliano.

- Precisa motivo, caralho?

- Claro, porra! Claro, caralho!

- Não gostei dele, tava embarrerando a fila.

- Isso não vai ficá assim, não, Raimundinho. Tu tá despirocando,

cara!


A atitude de Ferrô e Laranjeira chocou o missionário, que a princípio

não acreditara no envolvimento deles na execução. Os dois estavam a caminho

do pico, ainda arrastando o corpo do desconhecido, quando foram

abordados por Kevin.

- Que loucura é essa, pessoal? - indagou Kevin.

- Tava tomado pelo demônio, irmão. Tinha que sê, tinha que sê - respondeu

Laranjeira.

- Que demônio, nada! Quem te disse isso, cara? Ninguém tem o direito

de tirar a vida de ninguém, meu Deus!

- Morreu com Cristo no coração, podes crê, irmão, podes crê.

- Meu Deus. Meu Deus!

Uma implicância sem fundamento ou a necessidade de provar o seu

poder de perversidade também eram motivos para Raimundinho multiplicar

os tribunais. Ele chegou a executar uma mulher de 50 anos, Irana,

apenas para competir com os carrascos do morro Cerro Corá, gerenciado

pelo amigo Bruxo, que haviam matado uma adolescente chamada Choquita.

Raimundinho soube que o corpo dela fora esquartejado em trinta

pedaços, postos dentro de uma mala e desovado em um caminho no meio

da floresta, ligação do Cerro Corá com a Santa Marta.

Dias depois Raimundínho fez a mesma coisa com Irana, que ele

alegou ser informante dos inimigos. Mas para impressionar os amigos
do morro vizinho, em vez de trinta esquartejou em cinqüenta pedaços e

mandou jogarem a mala na mesma trilha da floresta.

Uma pessoa gentil demais também podia desencadear a ira do matador,

mesmo contra clientes assíduos da boca, como aconteceu com um

funcionário da empresa Furnas Centrais Elétricas, Doutor Obséquio. Um

dos freqüentadores habituais do ponto do Cantão, o mais próximo do

asfalto, ele ganhou o apelido de Obséquio devido a suas atitudes gentis,

levadas ao exagero para os padrões de educação dos favelados. Era engenheiro,

aparentava mais de 40 anos, tinha a pele bem clara de quem

passa o dia no escritório e os cabelos grisalhos. Até ao pedir uma cerveja

nos botequins da favela ele dava mostras de ser um homem afável, bem-

educado.


- Por obséquio, poderia me passar o copo de cerveja?

Nas bocas, o engenheiro tinha o mesmo comportamento:

- Por obséquio, poderia me servir um sacolé de dez reais?

Uma atitude indiscreta, inconveniente, levou Doutor Obséquio a julgamento

numa noite de sábado. Embora fosse casado e morasse com a

mulher e dois filhos num bairro de classe média alta, Ipanema, que fica a

cinco quilômetros da Marta, ele havia passado 24 horas na favela consumindo

cocaína sem parar. Chegara na sexta-feira à noite logo depois do

fim do expediente de Furnas. Subira o beco Padre Hélio de terno marinho

e gravata vermelha, com o nó arriado.

Tirara o paletó por causa do calor e o carregava sobre o ombro até

chegar na área de dona Virgínia e pedir “por obséquio” a primeira cerveja

bem gelada no botequim mais próximo da boca.

Durante a madrugada, desceu até o Cantão para comprar, uma a uma,

quinze fileiras de pó, que foram cheiradas com os parceiros de ocasião.

Gastou o equivalente a 90 dólares. Virou a noite acordado e só parou de

cafungar quando acabaram as cargas na boca. Ao amanhecer, abalado

pelo excesso de pó, perambulou sem rumo pela favela falando sozinho,

cumprimentando as poucas pessoas que encontrava pelo caminho. De

repente, viu um barraco com a porta aberta e entrou sem pedir licença.

Era a casa da lavadeira Sônia, muito conhecida na favela.

Como ninguém estava em casa, Doutor Obséquio aproveitou para

descansar no sofá, que ocupava quase toda a parede do cômodo, usado
ao mesmo tempo como sala e cozinha. Ligou a televisão. Tirou a calça,

a camisa, os sapatos e meias. Deitou com as pernas abertas sem se dar

conta de que, naquela posição, deixava os órgãos genitais à mostra. Nem

percebeu a chegada do marido de Sônia, que vinha do mercadinho aonde

fora comprar pão e leite para o café da manhã da família.

- Qualé a tua? Culhão de fora dentro da minha casa? Tu é maluco, seu

playboy de merda!

Doutor Obséquio começou a ser surrado já dentro do barraco pelo

marido da lavadeira. Havia mais de duas horas Sônia lavava roupa no

tanque de concreto na praça das Lavadeiras, na área da “primeira” fonte

de água. Quando viu a aproximação do marido que trazia o Doutor Obséquio

arrastado pelos cabelos, abandonou as roupas molhadas na pequena

murada da piscina natural e avançou sobre o homem, distribuindo socos e

pontapés, mesmo sem saber o que havia acontecido. Em seguida, correu

para buscar providências junto aos chefes do tráfico. Sônia foi recebida

por Raimundinho, que considerou o incidente gravíssimo.

- Não pago pau pra playboy. Vai pro pico!

Essas palavras, ditas por Raimundinho, significavam pena de morte.

Em poucos minutos Doutor Obséquio já estava cercado por um grupo de

homens da boca ligados à gerência de Raimundinho. O grupo batia nele

com a base das armas de ferro.

- Que isso, galera? Vocês enlouqueceram! Por que fazer uma coisa

dessa com o Doutor? - perguntou Kevin.

- Folgou, irmão. Safado, vacilão, viado. Vai pro pico! Vai pro pico!

- respondeu Raimundinho.

- Mas como, aí! É o Doutor Obséquio, gente boa, gente nossa!

Raimundinho ouviu calado a interferência do missionário Kevin. Mas

os homens que seguravam Doutor Obséquio pelos braços reagiram:

- Ordens são ordens, tá manero? Manda quem pode. Obedece quem

tem juízo.

- Isso tem que ser explicado direito, nunca tinha acontecido antes.

A lavadeira Sônia também se envolveu na discussão.

- Tem que morrê sim, Kevin!

- Não tem, não. O Obséquio está doidão. Vocês encheram a cara dele

de pó e querem o quê? Que ele fique comportadinho?
Raimundinho, que ouvia em silêncio, interferiu:

- Aí, playboy folgado, Kevin. Liga na minha idéia. Pega mal pro conceito...

Tem que dá o que povo pede. Tem que quebrá!

Grogue de tanta pancada, Doutor Obséquio já não falava direito. Em

vez de pedir socorro, só conseguia repetir as agressões verbais que ouvia

contra si mesmo.

- Otário! Mané! Playboy! Viado!

Os mais incomodados com o corpo sujo de sangue deram um banho

em Doutor Obséquio. Ele foi jogado dentro do caixote de concreto da

Mina, que estava cheio d’água. Iradas, as lavadeiras e as crianças jogaram

pedras e tentaram agredi-lo a pauladas para matá-lo afogado.

- Isso é covardia, gente! - gritou Kevin ao perceber que as coisas tomavam

um rumo definitivo.

Raimundinho resolveu ceder.

- Aí, Kevin. Tu tá insistindo tanto, irmão. Já que ele é da tua consideração,

vou dá mole... Mas esse viado tem que saí de pinote do morro.

Kevin aproveitou a chance para agir rápido.

- Deixe comigo. Saio de pinote com ele já!

Pediu ajuda para tirar Doutor Obséquio de dentro d’água. Doente

Baubau e algumas crianças ainda tentaram agredi-lo a pontapés. Tiveram

que ser empurradas por Kevin para liberar o caminho.

- Cai fora, mané! - gritou Baubau no meio das crianças enquanto Kevin

providenciava o socorro ao engenheiro de Furnas.

Doutor Obséquio desceu o morro a pé, abraçado ao missionário, falando

pra si mesmo:

- Cai fora, mané!

Nem mesmo as crianças, platéia mais fiel dos tribunais, entenderam a

razão de levarem Nego Pretinho para o julgamento. Ôrfão de pai e mãe,

ele costumava passar o tempo em silêncio, sentado nos barrancos e nas

escadas, observando o movimento da boca enquanto esperava por uma

vaga. Mas foi acusado de ser falador demais.

Era curioso demais sim, como disseram no tribunal, e viu coisas que

não estava autorizado a ver. Mas muito tímido, introvertido, Nego Pretinho

era incapaz de falar dos segredos da boca para as pessoas da favela,

como acusava Juliano.
- Tu falô sim, moleque, falô. Confessa, senão tu vai rodá, aí.

Nego Pretinho respondeu em silêncio, negou com um sinal de cabeça.

Havia mais de um ano que ele freqüentava a área da boca, gostava

de ver de perto a atividade do pessoal da quadrilha, principalmente da

dupla Nem e Pardal, seus amigos de infância, mas não pôde contar com

nenhum dos dois como testemunhas de defesa.

- Não pode. Vocês gostam do moleque, nunca vão falá mal dele, pensa

que sô otário, aí - disse Juliano para a dupla que tentava defender Nego

Pretinho.

Pardal logo desistiu de tentar convencer o tribunal da inocência do

amigo. Nem foi mais persistente e tentou encontrar algum conhecido ou

parente que pudesse ajudálo a escapar do pior.

Correu para avisar os dois únicos tios que Nego Pretinho tinha no

morro, mas um não estava em casa e outro teve medo de chegar perto do

tribunal.

Nego Pretinho era criado pela avó viúva, que morava na parte mais

alta do morro e tinha reumatismo nas pernas. Sem poder sair de casa a

avó só soube que o neto deixava de ir à escola para ficar em torno da

boca no dia em que Nem foi avisá-la que ele corria o risco de ser morto

no tribunal.

A avó andou o mais depressa que podia e Nem correu na frente dela

para avisar Juliano que uma testemunha importante estava a caminho.

Mas no tribunal ninguém estava disposto a esperar pela execução da sentença,

nem mesmo o réu.

- Qual a tua, moleque? Tu vive colado atrás de mim, me espiando...

confessa, caralho!

Para se livrar do interrogatório, Nego Pretinho também não quis esperar


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