O dono do morro dona marta



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por alguém que depusesse a favor dele e providenciou a sua própria

defesa, com uma atitude surpreendente.

- Pega a arma e atira de uma vez - disse Nego Pretinho para Juliano.

- Olha aí, o moleque, aí - surpreendeu-se Juliano. Acostumado a ouvir

pedido de clemência durante os tribunais, o chefe interpretou a atitude a

favor de Nego Pretinho. Concluiu que ele talvez fosse vítima de fofoca

dos concorrentes, pois se estivesse mentindo certamente não seria por

medo de ser morto.
- Ninguém falô em te matá, moleque. Eu só ia te dá um tiro na mão

pra deixá de sê tão curioso - disse Juliano.

- Então atira logo, Juliano. Um dia eu vô levá um tiro mesmo... então

já fico sabendo como é que é.

O tiro disparado por Juliano atravessou a palma da mão, jorrando sangue

para os lados, mas Nego Pretinho se manteve calmo, não gritou, não

gemeu, não falou nada até a chegada do socorro. O missionário Kevin

constatou que a bala havia passado entre os ossos sem nenhuma fratura.

- Eu ainda vô podê pegá uma arma ou esta mão não presta mais?

- perguntou Nego Pretinho para o missionário, ambos já cercados pelas

crianças, as testemunhas de sempre dos tribunais.

A prova de coragem renderia a tão esperada vaga na boca. Antes mesmo

de ele se recuperar totalmente do ferimento, Juliano escalou Nego

Pretinho para reforçar o grupo de olheiros, com seus amigos Nem e Pardal.

A repercussão negativa dos tribunais de morte promovidos por Raimundinho

era o argumento mais forte de Claudinho na disputa de poder

dos três gerentes de Carlos da Praça na boca da Santa Marta. Em três

anos de poder do trio, 17 mortes foram atribuídas pela polícia aos tribunais

da favela. Só um desses crimes, por envolver uma personagem

conhecida fora do morro, foi noticiado na imprensa do Rio. Apenas os

jornais populares deram maior destaque. Mas no meio dos chefões do

narcotráfico a execução de Carlinha do Rodo representou uma perigosa

quebra de códigos que vigoravam entre os malandros e criminosos mais

antigos.


Símbolo da Grande Guerra de 1987, quando tinha 14 anos, a franzina

Carlinha do Rodo era mais uma das vítimas do horror dos tribunais

promovidos pelo Comando Vermelho na Santa Marta. Para o carrasco

Raimundinho, o fato de ela ter sido uma das pioneiras da quadrilha, namorada

e membro de um grupo comandado pelo ex-líder deles, o Cabeludo,

nada de importante representava. Era uma a mais, sujeita às regras

que aterrorizavam os jovens envolvidos ou não nas atividades da boca.

Meses antes da execução, ela estava jurada de morte por Raimundinho,

apesar dos protestos de Juliano. Os dois discutiram muito sobre a decisão

de levá-la aos tribunais CV.


- Carlinha é como cria da Santa Marta, tu manera com essa menina

-alertara Juliano.

- Qual é, Juliano. Caxangueira, a parada dela é outra. Só traz arengação

aqui pro morro...

Panha a farinha, dá o rolê e sai no pinote. Que malandragem é essa,

mermão?


- Faz parte, Raimundo. Um dia ela paga. Cabeludo adorava essa mulhé,

cara!


- E aí, fico de otário. Esse papo de Cabeludo não é o desenrole, Juliano.

- Grande Cabeludo! Tu não lembra, Raimundo. Tu era moleque, nem

punheta tu sabia tocá ainda, rapá.

- Vivo do passado não, aí. Nem tem idéia. Se piá na minha frente vou

quebrá essa mulhé, vou quebrá!

- Menina, rapá. Carlinha do Rodo, tu não gosta deste nome, não?

Essa menina já foi lá do asfalto, cara. Veio lá de Santa Teresa buscá uma

farinha aqui com o irmão do Cabeludo e ficô por aí. Virô guerreira do

morro. Manera!

Depois da derrota na Guerra de 1987 e da morte de Cabeludo, Carlinha

morou durante quatro anos nos morros onde havia amigos da antiga

quadrilha. Passou pelo Cerro Corá, Turano, Vidigal, Escondidinho.

Nunca deixou de cometer furtos e pequenos assaltos com as quadrilhas

de cada lugar. Esteve detida cinco vezes em internatos de adolescentes

infratores e fugiu de todos.

A retomada da Santa Marta pelos antigos parceiros de quadrilha a

trouxe de volta à favela em 1991, abrigada na casa de um parente de Cabeludo.

Aos 18 anos de idade, continuava franzina, parecia subnutrida,

media menos de um metro e sessenta, pesava 48 quilos. No seu último

assalto, rendeu a dona de uma casa de Botafogo e roubou mais de um

quilo de ouro, que estava escondido no armário de roupas do quarto. Na

hora da partilha do lucro houve desavenças na quadrilha. E como já não

tinha a proteção de Cabeludo, morto em 1988, o desentendimento a levou

para o tribunal da morte.

A sentença de Carlinha causou controvérsias até entre seus carrascos,

porque foi idêntica às brutais execuções de alcagüetes inimigos. Era uma


tarde de sexta-feira. Ela foi conduzida pelas vielas, morro acima, sob espancamento

contínuo. Algumas mulheres seguiram discretamente atrás

dela para tentar convencer Raimundinho e seu grupo a desistirem da execução.

As crianças acompanharam a pancadaria fazendo algazarra pelo

caminho. Atrás delas, Doente Baubau batia na porta dos barracos para

tirar as pessoas de casa e convidá-las a assistir à procissão do tribunal.

- A Carlinha vai pro pico! A Carlinha vai pro pico! - gritava Baubau.

Ninguém teve coragem de seguir os carrascos por muito tempo. Eles

chegaram à região do Chiqueirinho, parte alta do morro, já quase sem

testemunhas em volta deles. Carlinha tinha os olhos esbugalhados, soltava

espuma branca pelo nariz, chorava baixinho, sem energia para reclamar

de mais nada ou para responder àquela pergunta estúpida do matador

Cássio Laranjeira.

- Aceita Jesus no teu coração?

Amarrada numa árvore de cabeça para baixo, levou chicotadas e pauladas

até a morte. O corpo ficou uma semana no local da desova, o fundo

do penhasco lá do pico, onde um funcionário da empresa que fazia um

trabalho de contenção das pedras do morro o descobriu por acaso.

A mãe e duas pessoas da família levaram o caixão de Carlinha do

Rodo para o cemittério São João Batista. Um amigo acompanhou o pessoal.

Chorava e repetia sem parar um pedido de desculpas:

- Nos perdoe, Carlinha.

O pedido de perdão foi do Doente Baubau, o único homem de Juliano

no enterro da herdeira dos crimes de Cabeludo. Carlinha do Rodo ficou

numa cova rasa da Quadra 21, a mesma de seu ídolo e namorado.
CAPÍTULO 16 O EXTERMINADOR

Nem a pessoa mais próxima e de maior confiança de Raimundinho,

a ex-namorada Mana, entendia certas atitudes radicais do exterminador.

Muito antes de ele entrar para a quadrilha, Mana já achava estranha a sua

obsessão pelo tiro ao alvo com qualquer tipo de arma. Ainda menino, já

com uma coleção de vítimas, começou a chamar a atenção por atos de

perversidade contra os animais.

Raimundinho criança já era um exterminador. Mirava entre os olhos,

um pouco acima da linha do nariz da vítima, que percorria um caminho

curto até a linha de tiro. Ela vinha da área do lixão, entrava no túnel

escuro que passava por baixo de cinco barracos e acabava no beco do Silêncio,

num ponto estreito da viela com menos de dois metros de largura.

Quando a vitima aparecia na boca de saída, o exterminador já estava com

a mira da arma no foco, pronto para o disparo.

Os ratos pequenos saíam do cano na velocidade de um foguete e às

vezes conseguiam cruzar o beco e sumiam no valão do esgoto. Já as gordas

ratazanas jamais escapavam dos tiros de estilingue do exterminador.

As pedradas certeiras atingiam o focinho e provocavam um comentário

impiedoso de Raimundinho.

- Mato antes que tu me mate, desgraçado.

Raimundinho herdou do pai Zé Lima o ódio mortal aos ratos. O censo

de um grupo de combate a leptospirose descobriu que a doença crescia

na favela porque o número de ratos era dez vezes maior do que a população

da Santa Marta. Isso horrorizava o pai de Raimundinho, que vivia

espalhando veneno em volta de casa caminho que levava à birosca de

sua propriedade no beco do Repente, transversal do beco Padre Hélio.

Raimundinho morava com a mãe, que era doente de alcoolismo, num

barraco do Cantão. Mas era mais apegado ao pai, embora tivesse sido

muito surrado por ele na infância.

Nos dias de folga, o birosqueiro Zé Lima aproveitava o tempo livre

para tentar reduzir a tiros o número de ratos no morro. Adorava contabilizar

quantos conseguia matar. Passava tardes inteiras promovendo

apostas com os amigos. A moeda dos jogos era cerveja, prêmio de quem
acertasse o número de ratos mortos a cada hora no beco do Silêncio. O

filho Raimundinho, sempre grudado ao pai, era quem fazia a contagem

do jogo.

Os ratos também foram cobaias de Raimundinho quando ele ganhou

a primeira arma de Carlos da Praça. Enquanto o irmão Claudinho gostava

de namorar, fumar maconha, passear no asfalto com os amigos, ele

preferia treinar tiro ao alvo contra as ratazanas. Calado, de pouco riso,

solitário, só teve uma namorada durante toda a adolescência. Ao completar

18 anos, o namoro com Mana virou amizade. Ela se tornou a melhor

amiga, a única que sabia da origem de seu ódio pelos ratos.

O fator que os manteve unidos por anos era o respeito de Mana por

seu silêncio. Raimundinho não gostava de falar, menos ainda de emitir

opinião ou explicar as atitudes impiedosas que o levaram ao trio de

gerência da quadrilha, onde aos poucos foi impondo a sua função de

matador.

Da Praça o escolheu para dividir o controle da boca para conter a

sede de poder de Claudinho e Juliano. Desde os primeiros momentos na

gerência os dois mediam forças. Mas aos poucos formaram grupos distintos,

duas quadrilhas que só se uniam na eventualidade de um combate

para enfrentar seus inimigos de outros morros.

O racha levou quase todo o pessoal da antiga Turma da Xuxa a ficar

do lado de Juliano.

Raimundinho era uma espécie de juiz das decisões polêmicas do trio,

como aconteceu no caso do assassinato da radialista da Associação dos

Moradores, ex-simpatizante do inimigo Zaca.

A radialista Maria Lúcia, a Neguinha, era uma morena, muito assediada

e conhecida. Sua voz era ouvida em toda a favela, pois era quem dava

informações úteis e transmitia as novidades da Associação pelo sistema

de alto-falante. Morreu por não acreditar que seus amigos de infância,

agora traficantes, fossem atacar uma mulher tão admirada e que tinha em

sua retaguarda a até então intocável Associação de Moradores.

O motivo do crime foi uma desavença por causa da instalação de um

telefone comunitário dentro do prédio da associação. Os frentes do morro

protestaram: temiam que o orelhão virasse um instrumento de delações

à polícia. Queriam pôr o aparelho no caminho principal, o beco Padre
Hélio, onde as conversas ao telefone pudessem ser ouvidas por todos,

moradores comuns, funcionários da associação, olheiros da quadrilha.

Apesar das reclamações dos traficantes, a diretoria manteve a decisão de

instalá-lo dentro da associação.

- Os homi são arregado dessa diretoria, aí. Tu imagina a deduragem

que vai rolá com o telefone lá dentro nos ouvidos deles, só deles, cara!

Vô armá o maior caô, essa não. Essa não! - protestou Raimundinho numa

reunião da gerência.

A reação dos traficantes, com Raimundinho à frente, foi a invasão do

prédio da entidade. Não encontraram nenhuma resistência. Os cabos telefônicos

foram desligados na frente do pessoal da diretoria, que prometeu

negociar a instalação do aparelho na rua. Apenas Neguinha protestou.

Tentou expulsá-los do prédio, aos gritos, indignada:

- Nunca aconteceu uma coisa dessa na associação. Vocês deveriam ter

vergonha de invadir um espaço que é de todos! - disse Neguinha.

- Aí, mulhé! Sem caô, fica na tua senão o bicho vai pegá, tô te avisando...-

ameaçou Raimundinho.

Ele chegou a sacar a arma, mas foi contido por Juliano, que tentou

negociar com Neguinha.

Ofendida, ela não quis conversar. Saiu do prédio para queixar-se lá

fora, no telefone público perto de sua casa. Foi seguida pelo olhar de

Raimundinho, que estava decidido a eliminá-la.

Além da suspeita de ter colaborado com o inimigo Zaca, agravara

a situação de Neguinha o fato de que namorava um inspetor de polícia,

Paulo Marrinha, que trabalhava no Presídio Lemos de Brito. Para

encontrá-lo em Madureira, na zona norte, onde ele morava, Neguinha

freqüentemente dormia fora de casa, o que gerara a suspeita de que ela

fosse fazer o leva-e-traz, o serviço habitual dos informantes da polícia ou

do grupo adversário.

Era com Maninha que ela falava ao telefone público logo depois da

briga na associação. Queixava-se do episódio da invasão e, ainda revoltada,

não percebeu, enquanto falava, a aproximação da turma da boca.

Raimundo vinha na frente, seguido por Du, Juliano e Çareca.

Em silêncio, Raimundinho descarregou duas vezes a pistola automática

contra Neguinha. Disparou 15 tiros, alguns no rosto, à queima-roupa.
A frieza da execução em lugar público causou uma grande discussão

interna na boca. O grupo da antiga Turma da Xuxa, liderado por Juliano,

preocupava-se com a repercussão na comunidade. Todos poderiam ser

reconhecidos por várias testemunhas. Temiam um possível enquadramento

legal na condição de co-autoria de um crime não planejado e que

certamente também iria repercutir negativamente na imprensa.

- Isso vai pegá mal, cara. Agora os homi vão tê motivo para sentá o

pipoco em cima de nós. Tá cheio de tira arregado ali dentro, rapá - reclamou

Juliano numa conversa com Raimundinho.

- Qual é, Juliano. O morro é nosso, mas a associação ainda é dos

alemão! Isso é absurdo! O presidente é do contexto do Zaca, cara. Até a

minha mãe, quando tá de birinaite, sabe disso, porra! - afirmou Raimundinho.

O pessoal de Claudinho também foi surpreendido pela ação de Raimundinho,

mas considerava positiva a repercussão do crime. Tinha esperança

de que a notícia viesse a intimidar os inimigos, que estavam

indignados com o calote da compra da boca e ameaçavam por telefone

tentar a retomada do morro. Também achava que a entidade, que sempre

representara a união dos favelados, estava sob forte influência do inimigo

Zaca. Se dependesse de Claudinho e seu grupo, estava aberta a guerra

contra a Associação de Moradores.

- Qualquer hora esse presidente vai dá o bote. Sabe como é: cobra

criada um dia vem pra cima te quebrá. O cara é sorrateiro! - alertou Claudinho

na reunião da gerência.

Nos últimos dois anos, ainda dono do morro, Zaca exercera grande

influência sobre a diretoria da associação. O presidente, José Custódio da

Silva, o Zé Castelo, vencera as eleições de 1989 com apoio explícito dele

e dos comerciantes nordestinos. Castelo era as duas coisas ao mesmo

tempo.


Dono de várias biroscas, de uma empresa distribuidora de alimentos

e do maior entreposto de bebidas do pé do morro, fora também parceiro

de Zaca no tráfico. Financiava o abastecimento de pó e dividia os lucros

com o ex-dono da boca. Uma sociedade que existira desde a Grande

Guerra de 1987. Dias depois do fim dos combates, os dois foram presos

em flagrante a caminho da Santa Marta com 500 gramas de cocaína.


Na lógica dos homens que mandavam no morro, o presidente da associação,

Zé Castelo, representava um braço dos inimigos no coração da

favela. Em sociedade com Zaca, era uma forte ameaça de continuidade

da linha de poder marginal independente, uma peculiaridade da Santa

Marta.

Desde a formação da comunidade na década de 1930, o morro esteve



sob domínio de malandros de um único núcleo familiar. No passado reinaram

os banqueiros do jogo do bicho, do patriarca Cornélio Procópio.

O comando mudou de pai para filho até a chegada dos chefões do tráfico

no início dos anos 80. Com reforços eventuais de criminosos de grande

carisma entre os moradores, os chefes do narcotráfico mantiveram-se

afastados das grandes organizações criminosas durante toda a década de

1980.

Herdeiro do velho Pedro Ribeiro, Zaca e os birosqueiros nordestinos



representaram, na visão de seus simpatizantes, uma resistência heróica

à expansão de grupos do crime organizado, sob a bandeira do Comando

Vermelho, que já dominava a maioria dos morros do Rio. Desde a guerra

de 1987, Zaca e Zé Castelo enfrentaram e venceram três períodos de

guerra contra os traficantes do CV, conflitos que levaram à morte doze

jovens da favela. Teria ajudado nas vitórias a aliança da dupla com os

policiais de Botafogo. Zé Castelo era acusado pelos adversários de, mediante

propina, convencer os policiais a reprimirem com rigor apenas os

homens do bando inimigo.

Com Zaca na prisão desde 1990, a única ameaça ao poder do novo

dono do morro era o presidente da associação, Zé Castelo. Por isso, Carlos

da Praça teria mandado o trio da gerência providenciar a sua execução.

Claudinho e Raimundinho assumiram de imediato o planejamento

da missão. Mas para Juliano não fora fácil decidir pelo apoio ao plano. A

sua indecisão tinha raízes na infância, muito ligada à Associação de Moradores.

No ataque à radialista Neguinha, já fora difícil invadir armado a

entidade que deixara marcas profundas na sua formação.

Na associação, Juliano teve as primeiras atividades organizadas de

esporte e lazer, e de todas guardava boas lembranças. Também jamais

esquecera dos bons momentos vividos nas colônias de férias de inverno

e de verão patrocinadas pela entidade. Assim como das excursões, que
o levaram a conhecer lugares distantes da favela e a ter acesso às competições

de vôlei e futebol nas areias da praia do Leme. A Associação

também representou, para Juliano, contato com cultura e política. Ali

participara, pela primeira vez, de um debate sobre campanha eleitoral,

um aprendizado das técnicas de discussão em assembléias. E descobrira

a paixão pela literatura e o cinema.

A história do vínculo da associação com a Igreja Católica fazia aumentar

ainda mais as dúvidas de Juliano. Desde os tempos dos mutirões,

em que trabalhava como virador de laje, ele tinha grande respeito pelos

padres do apostolado social da Igreja. Além de benfeitores, os religiosos

orientavam jovens, como ele, a buscarem uma vida melhor pelo caminho

do diálogo e da independência, o da autogestão comunitária. Juliano

nunca se esqueceu da frase muitas vezes repetida por um de seus heróis,

padre Velloso:

- Em vez de esperar, faça!

Outro fator que complicava a tomada de decisão era o afastamento de

Juliano da favela depois da Grande Guerra de 1987. Foram quatro anos

de muitas mudanças, com impacto dentro da Associação de Moradores.

A começar pelo fim do governo esquerdista do PDT de Leonel Brizola,

em 1986, que representou a perda de um aliado importante para a urbanização

da favela, embora os dirigentes da Associação fossem ligados politicamente

ao Partido dos Trabalhadores, o PT. Os mutirões continuaram,

mas perderam a força e a motivação inicial. Em vez da união de todos

para obras coletivas, os mutirões ganharam um peffil individualista: virou

reunião de parentes para construção da própria casa.

Ainda nos finais dos anos 80, a Santa Marta também sentiria os reflexos

de um fenômeno de socialização do crime: a expansão de quadrilhas

organizadas do narcotráfico no Rio de Janeiro. Para conter o avanço

voraz do Comando Vermelho e a conseqüente perda da condição de

dono do morro, o chefão da época, Zaca, procurou o respaldo informal da

Associação de Moradores. Fracassada sua tentativa, Zaca partiu para o

ataque. Nas eleições para escolha da nova diretoria, financiou uma campanha

de oposição encabeçada pelo amigo birosqueiro José Custódio da

Silva, o Zé Castelo. No lugar do estímulo ao desenvolvimento comunitário,

marca das gestões anteriores influenciadas pelos padres católicos, a
dupla Zaca-Castelo venceu as eleições com promessas de ajuda pontual,

de caráter paternalista, benemerente, individualista. E com a promoção

do acesso à favela de uma entidade religiosa que pudesse fazer frente à

predominância do catolicismo progressista.

“Se o seu problema é: familiar, sentimental, dor de cabeça constante,

dor na coluna, insônia, desemprego, nervosismo, enfermidade, depressão,

vícios.., existe uma solução: IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE

DEUS”


Com a vitória da oposição, os missionários da Igreja Universal do

Reino de Deus foram autorizados por Zé Castelo a anunciar promessas

de cura para todos os males pelos becos da Santa Marta. E receberam

de Zaca a doação de um espaço considerado nobre na favela, o ponto

tradicional dos pagodeiros, o Barracão, que virou lugar dos cultos evangélicos.

Na retaguarda de uma entidade respeitada, Zaca acreditava que estivesse

transformando a Associação de Moradores numa fortaleza contra o

avanço do Comando Vermelho. Estava enganado. Associação sob tutela

de traficante não era um fato isolado nessa época no Rio de Janeiro. A

novidade era um traficante, no caso Zaca, ter levado um homem de sua

confiança ao poder pelo caminho do voto e não pelo das armas, como

acontecia em outras comunidades. Nos finais dos anos 80, a polícia carioca

registrara 240 assassinatos de dirigentes comunítários, vítimas da

guerra de expansão do narcotráfico nos morros.

A guerra pelo controle da Associação de Moradores da Santa Marta

ajudaria a aumentar os números dessa estatística.

Uma morte anunciada: a polícia sabia que Zé Castelo estava jurado.

Ele havia sofrido um atentado dois meses antes, além de ameaças por

telefone e perseguições nas ruas. Registrou várias queixas nas delegacias

da Polícia Civil e nos batalhões da PM, mas nunca recebeu nenhum tipo

de proteção. Teve que se refugiar com a família, por iniciativa própria,

longe da favela. A imprensa também sabia que Zé Castelo corria risco de

morte, conforme ele havia denunciado em várias reportagens.

Os moradores da Santa Marta davam como certo o assassinato, e che


garam a fazer apostas sobre o dia em que Zé Castelo seria morto.

Uma noite de domingo, quatro meses depois da morte de Neguinha,

Zé Castelo saía de um prédio de Copacabana quando foi abordado por

seis homens, que estavam em dois Opalas. Eles vestiam calças e coletes


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