insistiu Luz.
A insistência de Luz convenceu Raimundínho a selecionar alguns
homens de sua confiança e prepará-los para um possível combate com
a polícia. Foi procurá. los na área do Cantão, onde a maioria prestava
serviço ao seu irmão Claudinho, apesar dos crescentes desentendimentos
na divisão da gerência da boca.
A seleção de alguns homens gerou mais uma briga entre os dois.
Claudinho não queria liberar ninguém porque isso contrariava as orientações
de Carlos da Praça, que apostava numa convivência pacífica com
os PMs como garantia para um bom funcionamento dos três pontos-de-
vendas de drogas. Raimundinho obedecia à vontade do dono do morro,
sobretudo nas missões armadas contra os inimigos, mas não tolerava ter
policiais como sócios no comércio do pó, nem a obrigação de pagar pedágio
em troca da livre atividade dos vapores, sem risco de repressão.
- Aí, vou levá a rapaziada comigo, Cláudio, que o bicho vai pegá lá na
Cerquinha - disse Raimundinho
- Vai porra nenhuma, não. Essa é uma parada do juliano, ele que se
foda! Foi botá fogo no carro do tira, coisa de maluco - respondeu Claudinho.
- Essa parada é a certa não. Tu parece arregado com os homi, cara. Foi
esse Rambo que quebrô o Chicão e agora qué quebrá o Juliano pra dizê
que foi ele quem matô e a história morrê por aí. Qual que é, meu irmão?
Tu não vê isso, cara?
- Tem que tê guerra com polícia não, Raimundo. E o movimento
como fica? Enquanto eu seguro o maior trampo, vocês ficam aí, caralho,
brincando de bandido e mocinho. á, é foda!
Depois da discussão, apenas dois jovens da endolação, Cássio Laranjeira
e Fabrício, sempre presenças certas nos bondes de Raimundinho,
decidiram seguir com ele. Antes tiveram que ouvir as ameaças de Claudinho,
que jurava expulsálos da boca se o confronto com a polícia viesse
a prejudicar o movimento de venda do pó. A decisão do irmão de apoiar
a atitude de Juliano levou Claudinho a pressionar ainda mais o dono do
morro a interferir no trio da gerência, cada dia mais desunido na hora da
guerra e no tráfico.
Encarregado do ponto de venda do Cantão, o de maior movimento
da favela, Claudinho se queixava ao patrão Carlos da Praça de ter o seu
comércio prejudicado pela ação dos outros dois gerentes. Juliano, com
reforço armado de Raimundinho, encontrara uma alternativa para fugir
da perseguição da polícia sem perda de faturamento. Criara dois pontos-
de-venda de pó e de maconha no asfalto, as chamadas “esticas”, um de
cada lado do morro, para facilitar o acesso dos usuários de classe média
às drogas.
As esticas eram um meio de driblar a polícia e de não ter que suborná-
la para traficar. E estavam gerando dinheiro rápido, motivo de inveja
dentro e fora do grupo. Com os lucros, Juliano cumpriu uma antiga promessa
feita à família para justificar a sua entrada para o tráfico em 1987.
Comprou uma casa, antigo desejo da mãe Betinha, no morro do Chapéu
Mangueira, bairro do Leme, a dois quilômetros da favela. Providenciou
que ela e suas duas irmãs fossem morar fora da comunidade para protegê-
las das instabilidades das guerras da Santa Marta.
A prosperidade de Juliano atraiu os parentes de outros morros para
sua quadrilha. Depois da prisão do “segundo pai” Paulista, o movimento
da boca do Cantagalo entrou em declínio. Ainda estava sob a gerência
dos irmãos de criação Santo e Difé quando foi tomada com combates
sangrentos pelos rivais do Terceiro Comando em 1991. Expulsos do Cantagalo,
Santo, Difé, a irmã Diva e Mãe Brava - já libertadas da cadeia
- voltaram a morar na Santa Marta, onde de imediato assumiram funções
de confiança na quadrilha de Juliano. Também foram reforçar o grupo
dele, motivo de inveja de Claudinho, os outros três que moravam no Cantagalo:
Du, Mendonça e Raimundinho. O casamento de Diva levou a
mais uma adesão à quadrilha. O marido era Paulo Roberto, que já era um
assaltante experiente. Esteve preso de 1986 a 1993. E de volta à liberdade
organizou uma nova quadrilha de caxangueiros. Mas a convite de Diva
passou a integrar também o grupo de Juliano. Mendonça seguiu o mesmo
exemplo. Sem abandonar os assaltos, voltou à Santa Marta que representava
a garantia de um abrigo seguro ao lado, dos parentes, além da
possibilidade de diversificar suas ações para aproveitar o bom momento
da expansão dos pontos-de-venda de Juliano.
Os gastos exagerados do outro parceiro de gerência, Raimundinho,
que também voltara do Cantagalo, eram motivo das queixas de Claudinho
ao patrão Carlos da Praça. Todo mundo no morro ficou sabendo que
Raimundinho comprara um barraco de valor equivalente a 5 mil dólares
na área do Beirute para morar com a namorada Ana Paula. Aproveitou
a boa fase das esticas para casar em grande estilo. Festejou o casamento
com a produção de um grande baile funk na quadra.
Mandou distribuir dois mil litros de chope aos convidados. Ainda
com os lucros das esticas, comprou o seu primeiro carro: um Escort 90,
conversível. Dias antes da crise com o irmão, apesar do cerco da polícia
e da falta de ruas no morro, Raimundinho movimentou um grupo armado
para dar cobertura aos seus curtos passeios de automóvel, que nunca poderiam
ir além de repetidas idas e voltas pelos duzentos metros em curva
da pequena rua Jupira.
A boca prosperava, mas estava dividida. Sem concessões à polícia
e com apoio de Raimundinho, Juliano administrava o faturamento das
esticas de Botafogo e os pontos de Laranjeiras. Como esses pontos eram
novidade, o patrão Carlos da Praça não sabia como controlar se o lucro
era enviado a ele corretamente ou não, um fator que aumentava seu descontentamento
com a dupla. Já Claudinho administrava as vendas dentro
do morro, com apoio total do chefe, traduzido na forma de arrego com a
polícia e reforço de armas sempre que necessário. A divisão dos homens
teria reflexos na guerra do Dia da Criança.
- Os PMs tão esculachando o pessoal lá na festa, Juliano. Chutaram as
cadeiras, quebraram a mesa, as garrafas de bebida e tão esfregando resto
de bolo na cara até do pessoal de conceito e da mulherada... - avisou Luz,
já de volta à área da Cerquinha.
- Deixa comigo... Tu viu o Rambo? Minha parada é com o Rambo...
- disse Juliano.
- O cara tá nervoso. lá güentando todo mundo, cumpadi - respondeu
Luz. Eram oito horas da noite quando Juliano disparou a Jovelina pela
primeira vez no alto do beco dos Prazeres. O grupo de oito soldados, liderados
pelo tenente Mendes, estava no meio do caminho. Naquele ponto
o beco era estreito, não chegava a ter dois metros de largura e era quase
todo encoberto pelas lajes, avançadas em relação às paredes dos barracos
de dois pisos. No alto, os barracos dos lados opostos do beco quase se
encostavam e eram mais afastados no piso térreo para não invadir o corredor
de passagem das pessoas. Projetado pela necessidade de ocupação
total dos espaços, o cenário do combate era um longo e sinuoso tubo de
alvenaria, de formas retangulares, com poucos pontos de fuga lateral,
porque todos os barracos eram geminados. Ali os tiros de fuzil ecoavam
como se fossem disparos de tanques de guerra. E os gritos ganhavam
uma dimensão assustadora.
- Tu vai morrê, mané! - gritou Juliano lá do alto.
A resposta dos PMs foi uma rajada de metralhadora. Em geral, este
era o procedimento dos policiais nos primeiros momentos de invasão dos
morros do Rio de Janeiro. Logo depois dos disparos de alerta, era dado
um tempo para o recuo dos traficantes armados, que tentavam se desfazer
das armas e esconder o estoque de drogas para evitar a prisão em flagrante.
Desta vez, não foi bem assim.
A reação à rajada de metralhadora foi na forma de disparos de várias
armas e muitos gritos de ofensa.
- Põe a cara, Rambo! Tu matô o Chicão, agora chegô a tua hora, rapá.
Põe a cara pra morrê, mané! - gritou Juliano.
Uma nova seqüência de disparos, incluindo também rajadas de metralhadora,
mostrou o poder de fogo dos homens de Juliano e assustou
ainda mais os PMs, que não reagiram para poupar munição e não revelar
o ponto exato onde se escondiam. Com a frente bloqueada pelo inimigo,
o tenente comunicou, por sinais, a intenção de recuar. Os PMs começaram
a descer em silêncio, o mais perto possível das paredes laterais de
alvenaria, o que foi festejado pelos homens de Juliano.
- Cuidado com a bunda, mané. Vou pipocá esse bundão aí!
O recuo não chegou a dez metros. No lado oposto ao de Juliano, os
PMs encontratam uma barreira intransponível: um fuzil M-16 montado
sobre um tripé, acionado por Raimundinho com entusiasmo.
- Tá pensando o quê, rapá? Hoje é dia da criança e tu vem aqui zoá
em cima de nós. Qual é que é, rapá! - gritou Raimundinho para os PMs
encurralados.
Os PMs tinham fuzis, pistolas automáticas, algumas granadas, mas
naquelas circunstâncias, dentro de uma espécie de túnel em completa
escuridão, pouco adiantava o armamento. Muito mais eficaz seria um
equipamento de comunicação, um telefone celular ou um radiotransmissor.
Mas nenhum policial pensara nisso quando deixou o Destacamento
no pé do morro em missão oficiosa, sem fazer o devido aviso ao comando
do Segundo Batalhão. Por isso, não havia possibilidade de comunicação
para pedir socorro.
- Põe a cara aí, Rambo. Tu matô o Chicão, rapá! Agora tu vai morrê!
- repetiu Juliano pra todo mundo ouvir.
Por ordem do tenente, Rambo permaneceu o tempo todo calado para
manter a dúvida sobre sua presença. Para sair da linha dos tiros os sete
policiais amontoaram-se no porão de um barraco e embaixo de uma pequena
ponte do valão de esgoto. Alguns estavam apoiados em vigas de
concreto, numa posição incômoda, para evitar a queda num vão de três
metros entre o corredor de passagem e o fundo lamacento da vala.
Sem que os policiais soubessem, durante a madrugada, Claudinho
agiu para acabar com aquele cerco. Como já não tinha um bom diálogo
com Juliano, resolveu pressionar o irmão. Deslocou-se até a trincheira de
Raimundinho e durante parte da madrugada tentou convencê-lo a liberar
os policiais.
- Tu tá abestalhado, Raimundo? O Juliano tá doidão e tu paga esse
sapo pro cara, rapá! Sai de pinote logo.., de manhã tu imagina o quê? Os
homi vão quebrá todo mundo - alertou Claudinho.
- Rapa fora tu, Cláudio. Tu sabe que comigo não tem arrego com os
homi, cara. Tu dá dinheiro pra eles, aí... e os cara tão esculachando a
mulherada e até as crianças, qual que é?
- Essa é a parada do Rambo e do Juliano, tu tá sabendo. Tu tá de otário,
tá de robô, cai fora!
- Tô colado mesmo na do Juliano... Esse Rambo vai zoá até quando?
Tu só pensa em apanhá o dinheiro da firma e botá na mão dos cana, Cláudio.
Até quando, cumpadi?
- Tu e o Juliano tão embarrerando o morro. O Carlos da Praça já disse
outro dia que vocês tão ficando fora do contexto dele...
- Papo de alemão, rapá. Tu tá de arrego com os cana e vem falá de
fortalecê quem? tu é bandido ou tu é bandaide, rapá?
Para Claudinho, só restava apelar para o dono do morro, o único capaz
de convencer o grupo de JuLiano e Raimundinho a pôr um fim ao
cerco. Ainda durante a madrugada, mandou aviões à cidade para tentar
localizar Da Praça na casa de parentes. Mas já era tarde demais. Pendurados
embaixo da ponte, até as cinco horas da madrugada os policiais
ouviram as humilhações em silêncio e não dispararam um único tiro para
não gastar munição. A uma hora do amanhecer, com medo do abrigo ser
descoberto, os PMs tentaram uma saída de alto risco.
Enquanto os soldados disparavam simultaneamente alguns tiros, o
tenente que chefiava o grupo jogou-se de uma altura de quase três metros
no valão cheio de esgoto. Em seguida escorregou vala abaixo, mergulhado
no córrego de lama, sem conseguir se agarrar nas paredes laterais de
concreto, cobertas de limo. Desceu direto mais de dez metros até uma
pLataforma horizontal. Raimundinho ouviu o ruído da fuga do tenente.
- Tá de pinote na merda, cumpadi. Tu é ratazana, é?- gritou Raimundinho.
Da plataforma, o tenente teria que subir mais de cinco metros para
alcançar os pilares de algum barraco e sair da vala. Apesar do corpo cheio
de arranhões, preferiu jogar-se mais uma vez vala abaixo. Deslizou pelas
rampas íngremes para livrar-se depressa do risco de ser atingindo pelos
disparos.
Às seis horas da manhã, mesmo ferido, o tenente estava dentro do
helicóptero da polícia, que do alto orientava a invasão dos soldados do
Bope para salvar os companheiros emboscados.
Para se vingar do cerco humilhante, outras unidades da PM e alguns
policiais, mesmo de folga, ocuparam a favela e provocaram durante toda
a manhã uma grande correria entre os moradores que tentavam fugir das
revistas nas ruas. Em menos de cinco minutos, os PMs encurralados foram
resgatados sem nenhuma reação dos homens de Julíano, que fugiram
quando ouviram os ruídos da operação policial. Muitos foram perseguidos
e espancados no meio da favela.
O filho de dona Mariquinha, Marquinho, de 17 anos, vapor novato
da turma de Juliano, foi chutado e espancado na cabeça com cassetete
de borracha. Abandonado no chão, desmaiado à porta da creche Coração
de Maria, Marquinho sofreu traumatismo craniano e agonizou por mais
de uma hora. A mãe correu para socorrê-lo e, desesperada, rezou ao lado
dele até sua morte.
Inconformada, dona Mariquinha velou o corpo ali mesmo, na frente
da creche, até a chegada, no final da tarde, dos homens que levaram o
corpo para o rabecão estacionado no pé do morro.
Só no começo da noite, quando os últimos policiais foram embora,
a quadrilha pôde sair de seu esconderijo. Era hora dos meninos Pardal e
Nem voltarem às suas antigas tarefas, para consertar os “chuveirinhos”.
O estrago na rede de água tinha sido grande, sobretudo na área dos combates
do beco dos Prazeres. Enquanto os meninos trabalhavam duro, pendurados
na tubulação aérea, o grupo de Juliano reuniu-se no largo do
Cruzeiro para fazer um balanço da munição e discutir os episódios da
emboscada.
- Mandamo pipoco nos cana. Foi de fudê, cumpadi - disse Raimundinho,
sentado no barranco, cabisbaixo.
- E os cana vieram boladão pra cima, pra quebrá mesmo. Tu viu o
helicóptero sentando o dedo lá de cima? Puf, puf, puf, puf... caralho -
disse Juliano em pé, de frente para Raimundinho, Du, Careca, Luz e
Mendonça.
- Sei não, cara. E o Marquinho?Já é, aí. O bagulho é sério, Juliano. Os
cana tão injuriado, mesmo... E o Claudinho, alguém viu o cara trocando?
- perguntou Luz.
- Trocando, eu, hein? Meu irmão não mete bala em ninguém. E ainda
veio tentá me convencê a rapá fora, quase tive um revertério no meio do
bagulho, aí. O cara tá parecendo alemão, pode crê - queixou-se Raimundinho.
A conversa foi interrompida por Juliano quando percebeu a aproximação
de alguns homens com roupas escuras em uma das três vielas de
acesso ao largo do Cruzeiro. Os estranhos estavam tão próximos que
deu para ver que tinham armas na cintura. Juliano rapidamente apontou
a Jovelina na direção deles, mas não disparou. Um dos homens recuou
rápido, outro procurou proteção junto a uma parede, sempre sob a mira
de Juliano, que gritou aos companheiros.
- É o pinote, Du. Vaza, vaza!
Du, Luz, Careca... todos correram na direção oposta à dos estranhos,
menos Mendonça. Juliano ainda manteve a Jovelina apontada para o corredor,
onde um dos estranhos gritou para se identificar.
- É a polícia, VP! Chegou a tua hora, rapá.
Juliano apontou a Jovelina para cima, apoiou a base da arma no peito
e virou-se de costas para seguir os amigos que já fugiam pela viela da
birosca do Zé Braga. Mas poucos passos à frente foi atingido por vários
disparos de pistola, de espingarda e de metralhadora. Os atiradores eram
do Serviço Reservado da PM. Um deles ameaçou persegui-lo, mas recuou
quando ouviu alguém gritar que Juliano tinha sido ferido. O grito
era de Mendonça, que conseguiu conter a perseguição com disparos de
fuzil para o alto.
Enquanto Mendonça dava cobertura, Juliano continuou correndo
atrás de um abrigo na área da Pedra de Xangô. Sabia que estava ferido,
porque tinha perdido forças durante a fuga. Mas não imaginava qual seria
a gravidade. Ele tinha sido atingido por seis tiros nas pernas, nas nádegas
e nas costas, pouco abaixo do pulmão direito. Sentia forte ardência em
vários ferimentos, mas os músculos continuavam ativos, normais. Os lábios
ficaram ressequidos e o volume de sangue que escorria dos ferimentos
impressionou os primeiros amigos que vieram a seu encontro. Por
sugestão de Luz, numa situação grave assim, eles deveriam pedir a ajuda
dos poderosos do tráfico, algum chefe dos morros amigos que pudesse
providenciar socorro médico. Os primeiros nomes lembrados eram das
comunidades mais próximas, da zona sul.
- My Thor, amigão do Mendonça, aí. Ele deve tá no Santo Amaro, dez
minutos daqui, mole - sugeriu Careca. - Só apanhá uma moto, saí voado
por Laranjeiras, aí!
- Que parada é essa, Careca? Tu já viu uma clínica no Santo Amaro?
Se intéra, cumpadi! - respondeu Mendonça.
- Patrick do Vidigal, é o cara! Tá na cara do Leblon, mole pra arrumá
um médico sem revertério, que neguinho tá ressabiado - disse Du.
- O cara é o Jogador, que tá formado com nós. Jogo rápido, que a
dor tá foda! Panha o moleque Pardal lá na pista e manda pro Complexo
- ordenou Juliano.
- Vou dá mole, não. Esse bonde é meu, aí. Vambora, Careca. Faz o
levante na pista, Du, que os homi tão de ratoeira - disse Luz, decidida
a assumir a tarefa de avião até o Complexo do Alemão, controlado por
Orlando Jogador.
- Aí! Dá uma idéia lá. Avisa que o Da Praça e o Claudinho tão de maldade
comigo, que eu tô precisando de uma clínica sem arrego de polícia,
senão já é, ó!
- Quê que é, Juliano? Quer me ensiná o desenrole, cumpadi? Ele é
irmão, ou não é? Segura acordado, que o fortalecimento já vem - disse
Luz.
Calça jeans justa, com cintura baixa. Cinto de couro comprado numa
loja de antigüidades. Blusa de malha colante preta, com uma estrela
vermelha estampada bem no centro do peito. Bota de couro preta. E,
coincidência, como Juliano, Débora pusera uma boina de lã fina, preta,
que prendia os cabelos que mandara cachear para fazer uma surpresa ao
namorado. Ele estava atrasado. O encontro fora marcado para as sete
horas da noite, na entrada principal do shopping. Meia hora depois, Débora
começou a ficar ansiosa com a demora e telefonou para o celular
de Juliano, que deu sinal de desligado. Mas como ele poderia ter se confundido
com o ponto do encontro, ela circulou pelo andar térreo à sua
procura, já sem muita esperança. Uma hora e meia depois, Débora tentou
o último contato pelo celular e desistiu. Antes de voltar para a Barra da
Tijuca, intrigada, foi de carro à rua São Clemente para passar em frente
à Santa Marta. Conduziu o carro bem devagar e fez o trajeto três vezes
com enorme curiosidade. Do asfalto, a aparência era de normalidade.
Só conseguiu ver a concentração de luzes e tentou imaginar qual delas
iluminava o barraco do namorado que não aparecera. Só no dia seguinte,
a caminho de casa para o desjejum no Café da Barra, Débora descobriu
nas manchetes da banca de jornal o que havia acontecido: “Noite de horror
no Dona Marta”, “PMs passam 10 horas cercados pelos traficantes”,
“Polícia emboscada pelo tráfico”
Débora comprou os jornais que traziam notícias do confronto. Todos
destacavam a ousadia do grupo comandado por Juliano, apontado como
o gerente mais combativo de Carlos da Praça. Uma das reportagens trazia
as declarações do tenente Mendes, que falava da humilhação que passou
e da reação da polícia. Os jornais também noticiavam a prisão de 12 pessoas,
a morte de Marquinho e a fuga de Juliano, inclusive com detalhes
sobre a gravidade dos ferimentos. Uma informação assustadora para Débora,
mas que, ao mesmo tempo, trouxe uma certa alegria por saber que
o namorado não tinha desistido dela. A primeira vontade de Débora era
correr para o hospital. Mas que hospital? Havia posto de saúde no morro?
Débora nem imaginava que caminho um homem ferido, com vida clandestina,
teria de seguir para encontrar socorro.
Em alguma favela da zona sul, a alguns quilômetros da casa de Dé
bora, Juliano era descoberto pela polícia dentro da clínica para onde Orlando
Jogador o havia encaminhado. Uma escuta telefônica indicou o
esconderijo para um grupo de investigadores. Na hora do flagrante, o
médico, dono da clínica, avisou que o paciente estava se recuperando da
cirurgia de extração de três projéteis alojados perto dos pulmões. Recomendou
cuidados especiais durante o transporte de Juliano para a cadeia,
pois ainda havia o risco de morte. Os policiais prenderam o pulso de
Juliano numa das argolas da algema e a outra na barra da cabeceira da
cama, enquanto discutiam o destino do prisioneiro.
- Olha só, o gerente-geral do grande Carlos da Praça. Tu vale uma
nota preta, mané! - disse um dos policiais, insinuando uma extorsão.
- Gerente-geral, que nada! Varejista, pequeno ambulante, nosso morro
éuma merreca, tá ligado - rebateu Juliano.
- Essa clínica é particular, mermão? Teu patrão é o maior atacadista
do branco da zona sul, rapá.
Tá tirando uma chinfra, é? Seguinte, aí: 30 mil dólar na mão ou vai
pro saco! - ameaçou um dos policiais.
- Vocês tão zoando comigo. Vou mandá uma letra pro doutor William,
mas onde vou panhá esse dólar? Vou tê que vendê meu relógio, meu cachorro,
minha cueca, ou metê uma parada, aí - avisou Juliano.
- Tu escolhe. Tem um trilhão de cana querendo te quebrá... Tu é abusado,
mané.
- Tem essa, não. O que tivé na boca o doutor William apanha com a
rapaziada e traz na moral pro acerto. Papo responsa.
Horas depois de ser encontrado, o advogado de Juliano, William Nogueira
da Costa, chegou à clínica para o acerto, estrategicamente, com
menos da metade do valor exigido pelos policiais.
Começou com uma oferta de 13 mil dólares, mas o acerto teria sido
fechado por 15 com a promessa de Juliano pagar a diferença em breve.
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