O dono do morro dona marta



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não descarregar os engradados até a hora em que o gerente fosse chamado.

Diante de Juliano, a negociação seria rápida.

- Aí rapá, tá duvidando da juventude? - perguntou Juliano.

- São as normas do dono lá embaixo.

- Lá embaixo? Mas tu tá aqui em cima, rapá! É ou não é? Seguinte:

apanha lá as cervejas e deixa alguma coisa de vinho também, que é pra

diretoria.

O salão “Ases da Lua” já fora o principal barracão de forró no tempo

em que os nordestinos eram perseguidos pelos antigos chefões do morro.

Quando Zaca envolveu-se nas eleições da Associação de Moradores,

doou o mesmo barracão para os cultos da Igreja Universal do Reino de

Deus, que um ano depois construiu sede própria na área do Beirute. Agora,

por influência de Juliano, o espaço do Ases da era voltou a ser usado

pelo pessoal do forró, menos aos sábados, quando se transforma em Ases

de Funk. Juliano e Débora divertiram-se no baile até a meia-noite, uma

hora antes de o salão ser invadido pela polícia.

Cinco jovens, dois deles ligados à boca, foram levados para averiguação

de seus antecedentes criminais no destacamento da PM na favela.

Os soldados continuariam vasculhando vários barracos durante a madrugada,

inclusive no beco da Verinha, onde estava a casa de seu Tinta, que

mais uma vez abrigara Juliano e Débora. Os policiais chegaram a invadir

os barracos vizinhos, a cerca de 50 metros do esconderijo, mas não o

descobriram.

Só na manhã de domingo Juliano soube do risco que correra. Revoltado

por não ter sido informado pelos olheiros da boca, foi cobrar providências

de Claudinho. Débora assistiu à discussão dos dois inicialmente

por telefone. Mais tarde odesentendimentO virou briga de rua. Juliano

entendeu que fora traído e foi cobrar explicações de Claudinho na frente
de suas quadrilhas. Irritado, esqueceu a bengala na casa de seu Tinta.

Usou um fuzil como apoio para manter-se em equilibrio na caminhada

até a boca.

- Qualé, Cláudio? Tu soube da operação dos homi, cara? - perguntou

Juliano.

- Quem tava na atividade à noite sabia. Eu tava no trabalho, rapá... e

tu, onde tava? - perguntou Claudinho.

- É verdade que tu mandô avisá o Raimundinho?

- Avisei. Mandei acordá também a Luz.

- E por que tu não mandô ela me avisá, não tô entendendo a tua?

- Teu pessoal avisou não? Tu qué o quê? Vou imaginá? Tu dá o perdido

e qué que eu descubra onde tu tá entocado?

- Isso é grave, Cláudio. É pior que me dá um tiro na cara. Tu sabe que

a polícia qué me esculachá, rapá. Os homi não qué só me matá. Eles qué

arrancá pedaço por pedaço de mim e tu me apronta essa, mermão. Tu

queria que eles me mandassem pro saco, assume essa, cara.

- Essa parada não tá certa. Vou falá com o patrão pra separá essa

gerência. Fodeu. Contigo aqui, Juliano, tô fora! O Da Praça tem que

resolvê essa parada.

Enfurecido, Juliano partiu para agressão física: deu uma violenta

pancada com a base do fuzil contra o peito de Claudinho, que estava em

pé discutindo e perdeu o equilíbrio, caindo de costas no chão. Nenhum

homem interveio, quem estava perto se afastou pra deixar só os dois na

briga. Juliano aguardou uma reação já com o fuzil apontado contra Claudinho,

que ficou no chão se contorcendo de dor.

- Tu devia sumi da minha frente antes que eu te mate, rapá. Tu qué o

meu esculacho, rapá. Um dia vamo acertá esta parada - ameaçou Juliano,

que aos poucos foi se afastando, manco, ainda bravo, seguido por alguns

amigos. Foi ao encontro de Débora e, ainda usando o fuzil como muleta,

convidou-a para andar até a banca de suco de seu Arnaldo. Conversaram

um pouco sobre o episódio e o clima de hostilidade que Juliano vinha

enfrentando com o parceiro de gerência e o dono do morro. Ele temia

o agravamento do conflito e sobretudo uma reação radical dos dois. Por

isso, sugeriu que Débora saísse imediatamente da favela e escalou Du e

Mendonça, os mais experientes do grupo, para acompanhá-la no cami
nho de descida, até a saída do pé do morro.

- Deixa eu resolvê essa parada com o Claudinho, Débora. Depois a

gente marca um encontro manero. Mas tem que sê no asfalto. Combinado?

- Não é melhor você descer também? Esse Claudinho não pode se

vingar de Você, não? Larga essa boca, deixe eles se matando aí sozinhos.

Deixa pra lá, vambora nessa comigo. Te ajudo a alugar algum quarto,

alguma coisa pra você lá embaixo.

- Depois, Débora. Antes preciso resolvê essa parada - disse Juliano

à namorada que nunca mais teve coragem de voltar ao morro. O envolvimento

de Juliano com as futuras guerras ao tráfico também o levaria a

esquecer o romance.

Juliano sabia que a briga tinha sido séria e que logo o dono do morro

tomaria uma decisão, devido às constantes desavenças do trio da gerência.

Preocupado, procurou Raimundinho, que não via havia três dias,

desde a chegada de Débora ao Morro. Encontrou-o na casa da namorada

Ana Paula, assistindo a um filme na TV. E conversaram longamente sobre

a situação indefinida da gerência da boca.

Raimundinho já sabia que estava na mira de Carlos da Praça e de

alguns dirigentes do Comando Vermelho. Só não tinha certeza ainda do

tamanho do descontentamento deles. Juliano, por sua vez, diante dos últimos

episódios, também acreditava que estivesse na lista dos marcados

para morrer.

- Aí, a rapaziada tá falando que tu é a bola da vez, Raimundo! - disse

Juliano.


- Tô sabendo. Tá o maior caô na cadeia. Só falta o desenrole do Da

Praça lá no Bangu 3 pros caras sentá o prego nimim - disse Raimundinho.

- Sei não. É a mesma irmandade, cumpadi. Eu sou CV, tu é CV,o Da

Praça é CV,o Claudinho é CV. Tu pensa o quê? Vai sê mole não esse

desenrole do Da Praça. Na hora de trocá com os alemão, com os cana,

quem encarou, aí?- perguntou Juliano.

- Juliano, Raimundinho a dupla de sempre. Tamo dando uma de mané,

Juliano! Sei não. Tão dizendo aí que o meu irmão já recebeu ordem pra

passá o rodo nimim! - diz Raimundinho
- Tu tá maluco. Irmão matá irmão dentro da mesma irmandade?

Juliano e Raimundinho tinham percebido havia algum tempo a preferência

de Carlos da Praça pelo comando de Claudinho, que passou a

receber dele cargas “bem servidas” de cocaína para redistribuí-las exclusivamente

aos vapores de seu grupo. Sem matéria-prima, Juliano e

Raimudinho foram progressivamente afastados das decisões importantes

da boca. No mesmo dia, tiveram a confirmação de suas suspeitas por

meio de um telefonema do dono do morro. Carlos da Praça queria ter do

próprio Juliano a confirmação da briga com Claudinho.

- É verdade que tu partiu pra porrada com o Cláudio? Tu enlouqueceu,

cara? - perguntou Da Praça.

Juliano ainda alimentava alguma esperança de ter Carlos da Praça

como seu aliado. Ao perceber, pelo tom da conversa, que o patrão apoiava

Claudinho, ainda tentou convencê-lo a mudar de posição.

- Aí, vamo trocá uma idéia cara a cara. Chega aí no morro, conversa

com o pessoal que tu vai descobri qual parada é a certa, a minha ou a

dele.

- Sem essa, rapá. Tu tá querendo sentá o prego em mim, rapá. É melhor



tu vazá do morro... é a decisão da Irmandade.

Carlos da Praça se referia, talvez para impressionar Juliano, à decisão

dos dirigentes do Comando Vermelho de expulsá-lo do morro. E o motivo

ia além das brigas com Claudinho. Incluíam também o medo e a insatisfação

dos moradores com a brutalidade das execuções de Raimundinho.

E principalmente o seu envolvimento nas desavenças, perseguições

e tiroteios com os policiais, que teriam causado um desgaste irreversível

no bom andamento das vendas da boca. Da Praça insinuou, sem dizer

explicitamente, que o CV havia decretado a morte dele, Juliano, e de seu

amigo e parceiro de gerência, Raimundinho.

No mesmo dia, certo de que seria morto, Juliano partiu para a Paraíba

em companhia do amigo Du para morar na casa da avó materna. Convidou

Raimundinho a fugir junto e organizar uma sociedade fora do morro

para incrementar as vendas de drogas nas esticas, abrir uma concorrência

contra os recém-declarados inimigos. Mas o exterminador preferiu permanecer

no morro, acreditando que fosse vencer os inimigos internos da

quadrilha e depois chamar o amigo de volta.
Nos meses seguintes Juliano passou a viver da venda de coco turbinado.

Comprava a fruta dos produtores no interior da Paraíba e a revendia

no Rio de Janeiro.

Pagava o equivalente a 50 centavos de dólar e vendia com 100 por

cento de lucro. Depois de duas viagens, recorreu aos antigos contatos

com os matutos de Pernambuco para turbinar os lucros, usar o mesmo

caminhão fretado para transportar uma tonelada de maconha escondida

no meio da carga de coco.

Apenas uma viagem bem-sucedida bastou para Juliano voltar a pensar

em guerra. Ganhara dinheiro suficiente para comprar, se quisesse, 50

fuzis ou 50 metralhadoras. A prisão de Claudinho, em março de 1995,

alimentou sua esperança de retomar o poder na Santa Marta. Mas não

mais como gerente. Declarado inimigo de Carlos da Praça, passou a ter

intenções mais ambiciosas, sobretudo depois que recebeu uma notícia

sobre Raimundinho que abalou todos os amigos criados no morro.

A briga entre os irmãos da gerência começou durante o plantão de

uma sexta-feira à tarde.

Convencido de que Claudinho planej ara a sua morte, Raimundinho

carregou a pistola automática, pôs dois pentes de munição nos bolsos e

foi procurálo no ponto-de-venda do dona Virgínia para esclarecer a história.

No caminho, encontrou a sua melhor amiga, Mana, que descia o beco

a caminho da escola onde fazia um curso de inglês.

- Onde tu vai apressada assim, mulhé?

- Estudar, né, Raimudinho. Pensa que a vida é essa moleza.

- Então faz como eu, põe um cano na mão, aí, que todo mundo vai te

respeitá.

- Vô presta um concurso.

- Tu vai é morrê de tanto estudá. Adianta? Tu tem o dinheiro que eu

tenho?

Na hora da despedida, Raimundinho abraçou a amiga e confessou a



sua intenção de matar o irmão.

- Meu irmão qué me matá, Mana, todo mundo já sabe disso. Eu não

tenho mais saída. Vou matá antes que ele me mate.

Foi a última vez que conversaram. Minutos depois Raimundinho já

estava diante do irmão, que conseguira surpreender desarmado. Discutia
e o ameaçava de morte com a pistola apontada contra ele.

Em alguns momentos chegou a encostar a arma na cabeça de Claudinho.

Todo o pessoal da boca afastou-se, mas não muito, para poder ver o

desfecho da briga. Apenas Luz foi mais longe. Correu até o botequim do

pai deles, Zé Lima, para avisar da briga. Mas só conseguiu convencer a

mãe Tiana, que correu para tentar apartá-los. Quando viu a mãe chegar,

imediatamente Raimundinho baixou a arma e Claudinho parou de discutir.

Os três trocaram abraços, choraram e se afastaram dali para conversar

em casa.

À noite, Claudinho sairia do morro com a intenção de passar alguns

dias fora, atraído pelo convite de uma namorada, para esquecer a briga

traumática com o irmão. Horas depois seria preso pelo homem que melhor

conhecia e perseguia os homens da Santa Marta, o temido delegado

Hélio Vigio, que já o aguardava na casa da namorada cobra-cega, informante

da polícia. No mesmo dia, Claudinho foi levado para o presídio

e deixava contra a sua vontade o caminho livre para o seu irmão crescer

na gerência da boca.

Um dia depois da prisão do irmão, Raimundinho já estava de volta

às suas atividades no tráfico, pela primeira vez na condição de único

gerente de Carlos da Praça. Estreou no cargo com a formação de um

bonde com os homens de sua confiança, apenas para circular pelos becos

e mostrar que era o novo “frente” do morro. No meio do bonde, Doente

Baubau anunciava o que muita gente temia antes mesmo de o matador

ficar tão poderoso.

- O bicho vai pegá! O bicho vai pegá!

Mas Raimundinho não ficaria 24 horas como frente da Santa Marta.

Depois de recolher o dinheiro do movimento do dia nos pontos de

venda do Cantão, Raimundinho subia as escadarias com os amigos em

fila indiana em direção ao Cruzeiro. Passou ao lado de um estranho que

descia, cumprimentando a todos do grupo. Raimundinho era o último da

fila e não percebeu que ele escondia uma arma no bolso da jaqueta. Nem

que o homem se apoiou em um muro para sacar a pistola automática e

disparar, à queima-roupa, certeiro. Assustadas, as testemunhas fugiram

morro acima.

Algumas crianças assistiram ao crime da janela de seus barracos. Vi
ram Raimundinho caindo de costas, rolando alguns degraus. Ainda tentou

se arrastar para pegar o fuzil que caíra longe de suas mãos, mas não

resistiu três minutos ao ferimento na nuca.

O assassinato de Raimundinho foi atribuído a Claudinho, que da cadeia

teria mandado matar o irmão. Para Juliano, o dono do morro também

estava por trás do crime. Por isso, passou a planejar uma guerra

total, que incluía a destruição da quadrilha de Claudinho e a tomada do

poder de Carlos da Praça.

No dia seguinte à morte de Raimundinho, Juliano desembarcou de

avião no Rio de janeiro para organizar a guerra que o levaria a ser o novo

dono da Santa Marta. Era o dia 10 de maio de 1995 e, como combinara

com a família por telefone, subiu ao morro do Chapéu Mangueira para

festejar o oitavo aniversário do filho juliano Wiiliam na casa da mãe, sem

desconfiar que o telefone dela estava sob escuta clandestina dos homens

do Serviço Reservado da PM, a P-2.
CAPÍTULO 18 MALDITO

Os meninos fogueteiros do morro Chapéu Mangueira explodiram os

rojões na hora certa.

Imediatamente os aviões pararam de circular, de fazer o leva e trás de

droga na favela. Sem disparar um único tiro para conter o avanço da polícia,

os vapores tiveram tempo de guardar os sacolés na casa de amigos

e os gerentes puderam proteger o estoque de pó no esconderijo mais seguro

e sem correrias. Quando os policiais chegaram à base da quadrilha,

alguns traficantes, já desarmados, baixaram a cabeça e puseram a mão na

parede, atitude de quem não quer combate. Mas os PMs passaram direto.

O alvo era outro.

Na hora Juliano ajudava o presidente da Associação de Moradores

do morro chapéu Mangueira a consertar a rede da quadra de basquete,

que ficava a 300 metros do QG dos traficantes. Por precaução, ao ouvir

o aviso dos fogueteiros, andou rápido em direção ao endereço da mãe

Betinha. Em pleno meio-dia, o caminho já estava totalmente deserto, até

o vira-latas que o seguia desaparecera. Entrou na casa, mas por instinto

achou que ali não seria seguro. Voltou para a rua, correu pela viela sinuosa

em busca do barraco de um amigo da família, que morava bem perto.

Um velho conhecido o esperava na primeira curva, com o AR-15 já

na posição horizontal, pronto para o disparo.

- Te peguei, Juliano! - gritou o soldado Peninha, o mesmo que o vendera

o fuzil AK-47.

Um único tiro atingiu a parte esquerda superior do peito, centímetros

acima do coração. O impacto do projétil de altíssima velocidade lançou

sangue contra o rosto do atirador Peninha. E jogou o corpo de Juliano

dois metros para o lado, fazendo-o bater de cabeça contra o muro. Ele

perdeu o equilíbrio, mas ainda conseguiu correr, meio grogue, até cair

logo à frente no valão de águas pluviais, quase na porta da família amiga.

Da mesma posição, mas com a lente dos óculos encobertas pelo sangue

de Juliano, Peninha disparou novamente, mas errou o tiro que seria de

misericórdia. E se afastou para buscar reforço.A família dos amigos foi a


primeira a socorrer Juliano. Horrorizada com a gravidade do ferimento,

impediu a aproximação das crianças. Uma das irmãs de Juliano, Zuleika,

chegou em seguida e desesperou-se.

- Quem foi o maldito que fez isso com você, meu irmão?

O tiro destruiu os ossos da clavícula. O braço esquerdo desabou do

ombro e ficou preso ao corpo apenas pela pele esticada. A mão esquerda

ficou na altura do pé de Juliano, que perdia muito sangue.

Algumas mulheres trouxeram vários lençóis e improvisaram uma

maca para socorrê-lo. Não havia tempo para muitos cuidados. Empurraram

Juliano para cima do pano e pediram ajuda aos homens para levá-lo

morro abaixo. Não foram muito longe. Em seguida o inimigo estava de

volta, e com o reforço.

- Deixa com a gente. Vamos cuidar muito bem dele.

Zuleika levou um susto ao ver quem era o inimigo.

- Peninha! Maldito! Maldito! - gritou Zuleika.

Quando a outra irmã de Juliano, Zulá, chegou para ver o que tinha

acontecido, já havia muita gente em volta dele. Ela teve que empurrar

algumas pessoas para chegar perto do irmão, por quem guardava um estranho

sentimento que misturava amor e ódio. Mesmo ao vê-lo caído,

gravemente ferido, Zulá aproveitou a ocasião para criticá-lo.

- Bem feito, aí. Foi encará os homi. Deu no que deu!

- Porra, Zulá. Cai fora daqui, cai fora - gritou Zuleika, revoltada, dando

um empurrão na irmã.

- Parabéns aí, Peninha. Gostei de vê - disse Zulá, já se afastando dos

curiosos que não paravam de chegar.

Alguns anos depois de ter vendido a Jovelina para Juliano, o soldado

Peninha conseguia cumprir a promessa de vingança. Ainda consciente e

agora protegido pelos moradores a sua volta, Juliano esbravejou.

- Seu filho da puta! Eu tô fora da Santa Marta e tu vem me matá aqui!

Filho da puta!

Minutos depois do meio-dia, a mãe Betinha voltava para casa, com as

compras da festa do neto. Ela subia de táxi a ladeira de acesso ao Chapéu

Mangueira no mesmo momento em que Peninha e outro soldado da PM,

Alvarenga, desciam o morro levando Juliano ferido num carro de chapa

fria da P-2. Os gritos da multidão que corria em volta do carro confirma
ram suas suspeitas.

- Fuzilaram o juliano. Fuzilaram o juliano.

Desesperada, Betinha saiu do táxi e correu para a frente do carro da

polícia. Logo reconheceu Peninha ao lado do motorista Alvarenga.

- Assassino! Assassino!

Enfurecida, Betinha abriu uma das portas do carro e jogou-se no banco

traseiro para ficar junto ao filho, que estava deitado no assoalho. Juliano,

quase desfalecido, balançava a cabeça sem parar.

- Acho que chegô a minha hora, mãe.

- Tu já era, Juliano. Fica frio logo! - ironizou Peninha.

Sem nenhuma pressa para o socorro, Alvarenga parou o carro e ameaçou

desligar o motor se a multidão continuasse correndo em volta.

- Acelera essa merda, seu filho da puta! Tu quer acabar de matar o

meu filho! - protestou Betinha.

- Fica calminha, que eu vou na manha - respondeu Peninha.

- Acelera, filho da puta! - gritou Betinha.

- Devagar, Alvarenga. Se pudesse, esse veado teria nos matado. Minha

mãe e a tua mãe é que estariam chorando agora, morou?

Enquanto o carro descia devagar a ladeira, Betinha enfiou o rosto para

fora da janela e pediu para o povo seguir atrás e para alguém chamar uma

ambulância.

- Meu filho não pode morrer, pelo amor de Deus!

Juliano tentava convencer os soldados a socorrê-lo.

- Porra, Peninha... você comeu na minha mão e foi me fazê uma coisa

dessa.

- Comi o quê, seu bosta?



- Você apanhou dinheiro na minha mão... e agora tá me matando.

Juliano falava com dificuldade e quase desfalecia. Betinha, atenta aos

movimentos de seus olhos, não o deixava desmaiar.

- Fecha os olhos, não. Segura aí, meu filho.

Na chegada à avenida principal do Leme, Alvarenga fingiu indecisão.

- Vou para o Souza Aguiar ou para o Miguel Couto? - perguntou a

Peninha.

- Deixe eu pensar...


Betinha interferiu:

- Entra no primeiro hospital, seus merdas. Meu filho não agüenta

mais.

Seguiram em direção ao centro da cidade. Na passagem do túnel



Novo, Alvarenga simulou uma pane no carro.

- Por que parou, assassino! Faz andar essa merda! - gritou Betinha!

- É gasolina. Secou o tanque. Tá vendo não? - respondeu Alvarenga.

- Então me ajuda a parar um carro. Segura o trânsito desse túnel -

disse Betinha.

Como os soldados não saíram de dentro do carro, Betinha foi para o

meio da rua fazer sinais aos motoristas, que desviavam dela.

- Parem! Meu filho está morrendo!

Nervosa e atenta ao que os soldados faziam dentro do carro, Betinha

não percebeu que o motorista de uma Kombi parou metros à frente e veio

oferecer ajuda.

- O que a senhora faz no meio do túnel, dona Betinha?

Era um vizinho do Chapéu Mangueira, seu Rubens, entregador de

jornais, que por coincidência passava por ali e a reconheceu.

- O que está acontecendo, dona Betinha?

- Meu filho, olha lá, seu Rubens. A polícia encheu ele de tiro... e estão

negando socorro.

- Meu carro tá cheio de jornal, mas vamos tentar - disse Rubens.

Sem ajuda dos soldados, Rubens pediu que Juliano se esforçasse para

se erguer do assoalho do carro. A mãe ajudou, empurrando-o pelas costas.

Para melhor distribuir o peso e poder carregá-lo sozinho, Rubens

ajeitou o peito de Juliano sobre o seu ombro, e posicionou o corpo quase

na vertical, o que evitava aumentar o sangramento.

Ao mesmo tempo, Betinha segurou com cuidado o braço esfacelado

para evitar que o ferimento se agravasse ainda mais. Ela entrou antes de

Juliano na área de carga da Kombi, para acomodá-lo na posição horizontal

sobre vários montes de jornais e com a cabeça um pouco erguida,

apoiada em seu colo.

A arrancada forte de Rubens fez os pneus derraparem no asfalto.

Numa manobra de risco, ele saiu da pista da esquerda, cruzou três faixas

à sua direita, da mesma avenida, até a saída do túnel. Sem obedecer o
aviso de parada obrigatória, passou direto pelo portão do Hospital Psiquiátrico

Pinel.


A pressão da buzina, a brecada forte e a corrida de Rubens até a

recepção indicaram aos enfermeiros que se tratava de um caso de emergência.

Embora o hospital não tivesse setor de pronto-socorro, uma psiquiatra

percebeu que Juliano estava entre a vida e a morte e agiu rápido.

Fez a limpeza da cabeça e da área mais atingida pelo sangramento, que

continuava abundante e, se não fosse estancado, poderia provocar a morte

em minutos. Não havia tempo para reposição sangüínea.

O mais urgente era conter o processo de agonia, que poderia causar


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