dos Santos da Silva, o Bruxo, do Cerro Corá. Ambos tinham 29 anos de
idade, mais de dez anos vividos no crime.
Quem assistiu à partida do bonde também não escondeu a admiração
pela dupla Bruxo-Juliano. Os dois já tinham sido inimigos mortais.
Todos lembravam do dia em que Bruxo entrou na favela determinado a
matar Juliano por encomenda de alguns homens do presídio de segurança
máxima Bangu 3. E oportunidades para a execução não faltaram. No dia
planejado para o assassinato, Bruxo esteve várias vezes frente a frente
com Juliano. Também teve a chance de alvejá-lo pelas costas quando ele
se banhava na Mina. Chegou a sacar a arma, mas se arrependeu ou não
teve coragem de apertar o gatilho.
A recepção simpática de Juliano, seguida de uma longa conversa sobre
a forma de poder exercida pelo Comando Vermelho na favela, e a
prova de fidelidade de seu grupo à organização fizeram Bruxo desistir
de matá-lo. Pelo menos não naquele dia, nem nos seguintes. Depois de
partilhar dezenas de baseados com ele, Bruxo aprovaria o “desenrole” e
mudaria de lado. A amizade entre os dois se tornou definitiva quando Juliano
e seus companheiros foram solidários nas horas mais difíceis. E se
ofereceram para lutar como aliados na guerra contra os inimigos comuns
pelo controle da favela do Cerro Corá.
Na época em que Bruxo ainda perambulava de morro em morro, desprestigiado,
e executava tarefas mercenárias encomendadas por terceiros,
o pessoal da Santa Marta foi o primeiro a ajudá-lo a retomar o poder no
morro onde ele se criou e de onde havia sido expulso.
- Dois frentes de morro juntos! Esse é o bonde - disse Luz, desejando
boa sorte para o grupo que partiu de manhã bem cedo para a missão.
O bloqueio da polícia nas ruas de ligação com os bairros de Botafogo
e Laranjeiras os obrigou a buscar saídas alternativas, as divisas laterais da
favela, nas áreas de grande concentração de lixo.
Bruxo e Paranóia seguiram em direção ao leste. Tucano e Juliano,
para o oeste. No caminho, Doente Baubau e algumas crianças se ofereceram
para andar à frente deles para checar se o caminho estava livre.
Andavam dez metros mais ou menos, paravam para espiar quando havia
alguma curva e davam o sinal de avançar. Por telefone, Juliano também
fazia checagens de segurança em contato com as duas bases do grupo
perto do matagal.
- Alô fronteira? Aqui é Juliano. Como tá por aí?
- Limpeza, comandante. Area livre.
- Tô seguindo...
- Tu é o cara! Vambora!
Os próximos telefonemas de Juliano não foram exatamente estratégicos.
Um deles foi para Salvador, na Bahia. Quem atendeu foi Vânia,
vocalista de uma famosa banda de axé music.
- Não acredito, é você? Fale mais um pouco... - pediu Vânia.
- Flor do meu jardim... - respondeu Juliano.
- Saudades de seu cheiro, meu rei! Que manda?
- Preciso levá uma idéia contigo. Te pedi um favor, na moral,dá pra
sê?
Os guerreiros da divisa oeste estavam preocupados com a segurança
do chefe, que sentou sobre uma velha geladeira virada para falar ao tele
fone. Fizeram sinal para Juliano se apressar. Ele passou a preocupação a
Vânia, mas não saiu do lugar.
- Tenho que vazá daqui, flor. Mas aí, ó: eu te vi na TV, no show. Maravilhosa!
- Te queria na platéia, meu rei!
- Aqui! Reza muito por mim, hoje. Tô num lance aí... vô precisá de
proteção. Tu reza?
- É muito perigoso? Vou começar a rezar já.
- Ah, tem um porém.
- O quê?
- Reza pra Santa Maria das Almas Perdidas. Ela é boa nisso, fecha o
corpo, manero.
- Boa nisso, é ruim, heín? Te cuida... te cuida.
- Um beijo no teu coração.
Em seguida, Juliano ouviu tocar a campainha do celular. Observou o
número que estava chamando e abriu um sorriso. Recebeu uma bronca
de Tucano.
- Pelo menos põe no vibrador, Juliano. Esse barulho todo vai acabá
chamando os homi. Juliano ouviu com atenção a crítica, mas resolveu
atender a quem chamava
- Luana, sol da minha praia. Tô numa correria aqui. Segura aí que eu
já já te ligo.
A pedido de Tucano,Juliano saiu rápido dos limites da favela e entrou
na floresta. Antes pediu para alguém desligar a campainha do celular.
- Quem é bom nisso? Põe pra vibrá essa porra!
Já estavam entrando na mata, quando uma mulher chegou esbaforida:
- Tu qué destruí minha família, Juliano.
- Destruí o quê, Goretti. Calma, mulhé.
Goretti era uma das namoradas de Tucano, tinha um filho dele.
- Vocês esqueceram da festa do meu filho, legal, hein?
Tucano e Juliano trocaram olhares em silêncio enquanto Goretti insistia
em convencê-los a adiar a missão.
- Deixa pra manhã, qual é o problema, Juliano?
- Aí, deixa comigo. Sem caô. Eu que sei da parada certa. Seguinte,
Tucano: tua mina tá cabrera. Confio no instinto de mulher, cara. Tu fica
com teu filho. Vô chamá o Pardal pro teu lugar, na moral!
Pardal tinha 18 anos, embora aparentasse mais. Desde os sete já prestava
serviços esporádicos na boca, ultimamente na função de soldado.
Estava em atividade na área próxima ao Lixão e vibrou quando soube da
decisão de Juliano. Assumiu a tarefa tão logo recebeu a mochila e a arma
de Tucano.
- Que cano é esse, cumpadi! Aí, seguinte: vô sentá o dedo nos cara!
Não vô di mole, não vô dá mole - disse Pardal, convencido da importância
da missão para a continuidade da quadrilha.
Para ele e sobretudo para seus pais, tráfico de drogas representava o
emprego que nunca teve, uma garantia de renda melhor que a deles. A
mãe,Genilda,era faxineira de um prédio de Copacabana. E o pai, Robson,
era pedreiro e estava aposentado por invalidez. Pardal convivia com
o pessoal da boca desde criança, prestando alguns serviços esporádicos
para os traficantes. Quando virou adolescente ficou três anos na lista de
espera para a função de segurança, enquanto atuava como olheiro ou
avião. Vinha demonstrando maturidade e uma rigorosa obediência às ordens
de comando em situações de confronto com a polícia ou com os
rivais, características que contavam pontos na visão do chefe.
Depois de dez minutos de caminhada na mata, Juliano parou de andar.
Sentando num tronco de uma árvore caída, passou a primeira ordem
a Pardal.
- Hora do lanche!
- Que é isso, chefe?
- Tu tá começando agora, moleque. Vou mandá uma idéia aí, na chinfra:
Se pudé comê, come. Se tivé água, bebe. Se tivé sono, dorme. Um
guerreiro nunca sabe quando vai tê essas chances de novo. Tá interado?
Abriu uma lata de guaraná, pôs no pão doce algumas fatias de salame
e, enquanto digitava o número do telefone de Luana, ofereceu o sanduíche
a Pardal.
- Come agora, moleque. Quando o pipoco pegá, vai tê mole não!
- Minha fome é parti pra cima deles - disse Pardal.
O sinal de telefone ocupado na casa de Luana fez Juliano mudar de
idéia. Liga outro número. Destino: um barraco do próprio morro.
- Alô, Milene? Meu bem, tá acordando?
- Hum, ruum.
- Precisa falá nada não.É só pra te pedi uma promessa. Tu promete?
- Prometo!
- Mas tu nem sabe o quê, mulher, e já promete?
- Amooor... Eu tô dormindo...
- Talvez eu demore pra voltá. Tu promete não me esquecê, não? É
pedi muito?
- Amooor...
- Promete? Tá bom. Um beijo no seu coração.
Juliano apertou a tecla end do celular. Mandou Paranóia buscar comida
no morro com uma grande bacia de alumínio para garantir mantimentos
para todos. Abriu a segunda lata de guaraná e fez uma nova ligação
para a namorada da Gávea, que já estava de saída para o escritório da
agência de publicidade. Na conversa rápida, juliano não quis explicar
detalhes da operação, apesar da insistência de Luana, que nos últimos
dias apreendera a conhecer as circunstâncias da luta em que ele estava
envolvido. A preocupação de Juliano era uma só: convencê-la de que no
final da missão ele iria ao encontro dela para passar uma noite juntos,
longe dos riscos da guerra da Santa Marta.
Juliano ainda falava com Luana quando fez o sinal de partida para
Pardal. Estavam a cinco metros do muro do Palácio da Cidade, sede da
Prefeitura, e caminharam em direção ao topo do morro, guiados, lá do
alto, pela imagem do Cristo Redentor. Usaram o facão para abrir espaço
nas partes da mata mais fechada e para matar uma cobra venenosa
que encontraram no caminho. Lentamente seguiram em direção ao ponto
onde combinaram encontrar Bruxo e Paranóia,que estavam embrenhados
no matagal do lado oposto.
- El fator surpresa, entiendes?
Juliano manifestou seu entusiasmo falando algumas frases de efeito
em espanhol. É que nos dias em que esteve recluso na Toca, uma caverna
de acesso secreto, dedicara-se à leitura de um livro sobre a guerrilha
foquista de Che Guevara. Ficou tão influenciado pela leitura que queria
empregar algumas táticas com o seu grupo.
A duas horas do anoitecer o quarteto aguardava, deitado na mata, o
momento certo do ataque. O cansaço e um certo tédio de Pardal e Paranóia
contrastavam com a euforia de Juliano.
Eles estavam atrás de um muro de três metros de altura, limite da
floresta com a rua Assunção, no bairro de Botafogo. Pelos cálculos de
Juliano, os inimigos estavam exatamente no outro lado do muro.
Bastava ultrapassar o obstáculo e estariam em cima deles. Discutiram
enquanto aguardavam o pôr-do-sol. Na verdade, Paranóia e Bruxo ainda
questionavam se a tática da selva teria sido a melhor.
Bruxo fingiu indiferença e se dedicou a limpar a munição e a montar
e desmontar partes da pistola automática enquanto ouvia a discussão de
Paranóia e Juliano. Na verdade, era a extensão da conversa que já haviam
tido na caverna secreta e que envolvia o interesse de todos os que moravam
no morro. Falavam da procura de uma saída que garantisse,pelo
menos, um meio de resistir à pressão das perseguições por mais alguns
dias.Paranóia,que na caverna tentara convencê-lo a mudar de idéia, agora
queria provar que seus argumentos tinham consistência.
Assaltantes experientes em ações urbanas, Paranóia e Bruxo queriam
que o ataque fosse pelos caminhos do asfalto, simples e prático, sem
muito planejamento. As chances de surpreender o inimigo, segundo Paranóia,
seriam grandes. Eles poderiam formar um grupo forte com guerreiros
voluntários, vindos de outros morros, que certamente não seriam
reconhecidos pelos seus inimigos.
- Sinistro! Mas o comandante do ataque ia ser reconhecido não? - perguntou
Juliano com ironia.
- Tu tinha que ficá fora dessa. Ficava no morro, escondido, monitorando
pelo celular - respondeu Paranóia,
- Isso é coisa de playboy, rapá. Sou de responsa, de trampo. Tu tá
pensando que vô amarelá, rapá?
- Ninguém duvida que tu é o cara, Julíano. Mas tem que sê o cara
sempre?
- Descola outra, Paranóia.
Sentado nas raízes expostas de uma amendoeira, indiferente à conversa,
Pardal passou repelente nos braços para conter a fúria dos pernilongos.
- Que porra, repelente parece que dá mais fome pra esses mosquitos.
O pôr-do-sol atrás da imagem do Cristo Redentor era a referência da
hora do ataque. Juliano foi o primeiro a subir pelo tronco da amendoeira.
De uma altura de quatro metros, passou a guiar a ação de escalada do
muro. Mas ao atingir altura suficiente para ver a rua, ele se assustou e
imediatamente desceu de volta.
- Erro de cálculo: tamo em frente à Décima - avisou Juliano, referindo-
se a Décima Delegacia de Policia de Botafogo.
- Meu Deus! Em cima dos homi! - disse Pardal.
- Temo que descê pra esquerda! - disse Juliano.
O medo acelerou o ritmo dos quatro. Eles se deslocaram para a esquerda,
avançaram cerca de 300 metros, mas acabaram andando muito
mais. Não dava para seguir em linha reta. Depois de uma hora de dificuldades
para vencer os obstáculos da mata cerrada, Juliano irritou-se e
resolveu dar uma pausa. Acendeu seis velas vermelhas para eliminar as
más energias da área.
- Prepara um baseado aí, Bruxo, enquanto eu acendo essas velas aqui
para a minha santa preferida.
- Vou fechá baseado, não. Tu tá doidão? A gente tá colado no muro...
E o cheiro, e o cheiro?
- Que muro, cara. Tu ainda não compreendeu que tamo perdido?
- E baseado por acaso é bússola?
- Entra no clima, Bruxo... Entra no clima!
Dos quatro, apenas Bruxo preferiu não fumar. A maconha animou
Juliano, resolveu equipar melhor o grupo. Ele abriu o zíper do fundo falso
da mochila quatro camisetas especiais para uso em selva, pintadas de
verde e marrom para camuflar a presença deles no mato.
- Manera, hein, chefe? Parece daqueles grupos de sobrevivência na
selva - elogiou Pardal.
Todos vestiram a camiseta e partiram novamente para o lado que
acreditaram ser o certo. Minutos depois, já escuro na mata, ficou mais
fácil se guiar. Dava para ver as luzes nas áreas altas da cidade, indicando
a direção a seguir. Juliano reconheceu o prédio da escola, que era uma
referência do ponto de ataque.
- Tamo chegando, pessoal. É agora!
A última pausa para preparar o material da escalada mostrou o estado
de alguns guerreiros.
Pardal, que passara a noite acordado fazendo a vigilância da boca,
estava sentado com as costas apoiadas numa árvore. Depois de fumar
maconha, animara-se um pouco durante a caminhada, e agora, exausto,
cabeceava para um lado e para o outro, tentando resistir acordado. Não
por muito tempo.
- É o que dá fumá um baseado numa missão dessa, Juliano. Aí, a parada
nem começou e o Pardal já tá roncando! - critica Bruxo.
- Na hora certa ele acorda, podicrê! - diz Juliano.
Juliano tomou a iniciativa de escalar o muro em silêncio. Todos ergueram
o polegar para, desta vez, concordar com Juliano, que começava a
subir na árvore mais próxima. Mais ou menos numa altura de três metros,
ele pegou o rolo de corda de náilon preso ao cinturão e amarrou uma das
pontas da corda ao tronco da árvore. Atirou a outra ponta lá embaixo para
ajudar a escalada dos outros. A mesma corda usada para subir à árvore
serviu para descer o muro e chegar à rua Assunção, em frente à Escola
General Costa e Silva, a dez metros da esquina onde estava o ponto-de-
venda de cocaína tomado deles pelos inimigos havia uma semana.
Os rivais estavam em frente ao bar, misturados aos jovens encostados
no balcão e entre os que ocupavam parte da calçada, com um copo de
cerveja nas mãos. Os homens de Juliano chegaram mais perto para saber
quem era quem, quais eram os homens do exército “alemão” de Carlos
da Praça.
Paranóia avançou com um fuzil G-3 apontado para o chão, protegido
entre o braço direito e a lateral do corpo. Pardal, ao lado, levava uma pistola
automática na mão, escondida junto à perna. Bruxo e Juliano, logo
atrás, eram ostensivos: numa caminhada apressada, quase uma corrida,
carregavam os fuzis atravessados no peito.
A cinco metros da esquina, enquanto Juliano tentava nervosamente
ver quais homens estavam armados, Bruxo o avisou com um toque de cotovelo
que o perigo não estava só na esquina. Acenou num movimento de
cabeça para um Gol preto estacionado em fila dupla. Três jovens apoiados
sobre a capota do carro conversavam com o motorista, que tinha um
parceiro ao lado. O ruído de um radiotransmissor enfureceu Juliano, que
foi na direção deles.
- Perdeu! Perdeu! Vai morrê, vai morrê! - gritou Juliano, para intimidar
o motorista que ainda tinha o radiotransmissor nas mãos.
Os jovens que conversavam em volta do carro se afastaram devagar.
Bruxo apontou nervosamente o fuzil para o homem que estava ao lado
no banco do passageiro, enquanto Pardal e Paranóia ameaçavam o pessoal
que estava na calçada, em frente ao botequim. Alguns se protegeram
atrás da parede, a maioria se jogou ao chão.
O motorista do Gol, em pânico, levantou as mãos e sem querer acabou
assustando os guerreiros.
- Juliano, é você?
O motorista era um velho conhecido, aliás, conhecidissimo. Era Josefino,
protagonista de um dos episódios mais comentados na Santa Marta
nos últimos anos. Ele era amante da ex-mulher de Juliano, Marina, mãe
de Juliano Lucas, um de seus três filhos. No começo o romance fora um
escândalo, nunca bem absorvido por Juliano. Havia quem dissesse que o
namoro de Marina e Josefino teria começado antes da separação. Muita
gente acreditava que um dia ele iria se vingar.
Mais grave que a traição fora o tipo de escolha da ex-mulher. No tempo
em que Marina era a primeira-dama da Santa Marta, Josefino já era
um dos maiores inimigos de Juliano. Os dois haviam se enfrentado em
muitos tiroteios. Aliás, se não fosse a profissão de Josefino, certamente
algum parceiro teria tentado vingar a honra do chefe. Como ele era um
P-2, a vingança teve que ser evitada ou adiada não se sabia até quando.
Se antes do ataque alguém tivesse olhado a chapa daquele Gol preto,
certamente teria evitado a abordagem ao motorista. As iniciais L-B-D, da
placa LBD indicavam que o carro pertencia ao Serviço de Inteligência da
Polícia Militar do Rio de Janeiro, a chamada P-2.
Agora era tarde para arrependimentos.
- Cai fora, viado. Vô te matá, seu puto - gritou Juliano.
Sob a mira do fuzil de Juliano, o sargento Paulo César Josefino abriu
a porta do Gol sem falar nada. O parceiro dele, o sargento Evandro Pinto,
na mira de Bruxo, também saiu do carro pedindo calma.
- Perdi, perdi!
Juliano encostou a ponta da arma nas costas de Josefino, tirou a pistola
da cintura dele e o empurrou para indicar o caminho da fuga.
- Cai fora, mijão... Olha pra trás não, que eu te sento o dedo, rapá!
Enquanto os dois sargentos corriam em direção à Décima Delegacia,
que ficava a três quarteirões, Juliano assumiu o volante do Gol para sair
o mais depressa possível dali. Sem disparar um único tiro, Bruxo, Pardal
e Paranóia também desistiram de atacar os inimigos, que sumiram da
esquina em disparada.
Cada minuto dentro do carro do Serviço Secreto da PM representou
uma eternidade para os quatro. E, com Juliano dirigindo, quanto maior
era a pressa, pior o desempenho. Ele deixou o motor morrer uma, duas,
três vezes...
- Primeira, Juliano! Tu qué arrancá na quarta marcha... Primeira, caralho!
- gritou Paranóia.
O nervosismo aumentou quando os dois radiotransmissores abandonados
pelos PMs no carro começaram a emitir informações da Central
de Operação.
- Atenção todas as viaturas! ... Atenção viaturas da área!
O som das sirenes anunciou que Josefino já havia pedido socorro ao
Segundo Batalhão quando eles entraram na rua Mundo Novo, o caminho
mais curto até o morro, a 800 metros do ponto onde estavam, em Botafogo.
Seria rápido se o motor do Gol não estivesse falhando e se o motorista
não fosse Juliano. Ele se atrapalhou na curva fechada, bateu no meio-fio,
quebrou uma das rodas.
- É carro de viado, mesmo! - reclamou Juliano ao abandonar o Gol na
subida da ladeira.
Eles seguiram a pé, levando o telefone celular e o radiotransmissor
esquecidos por Josefino. O rádio não parava de emitir mensagens de uma
base da PM.
- Quadrilha em fuga... rua Mundo Novo, Laranjeiras.
Juliano aproveitou um pequeno buraco do muro para enfiar o pé e
impulsionar o corpo. Saltou por sobre uma linha de arames farpados e
ferros pontiagudos, cravados no alto do muro, e passou para o outro lado,
para a floresta. Usou os galhos das árvores como apoio de descida. O últi
mo a pular foi Paranóia, que ficara dando cobertura. Minutos depois, com
todos escondidos na mata, encolhidos num bambuzal, ouviram o vaivém
das viaturas da PM na ladeira de paralelepipedos. E os latidos dos cães
que orientavam a perseguição dos soldados pela mata escura.
Sem lanterna para procurá-los melhor, os soldados se limitaram a vigiar
toda a extensão do muro na rua onde o Gol preto fora abandonado.
Depois de mais de duas horas imóveis, em silêncio, os quatro foram aos
poucos avançando no meio da mata, morro acima. Minutos depois, Juliano
deu uma nova ordem que fez parar a caminhada.
- Caralho, esqueci a minha bíblia lá no mato
- Porra, Juliano, a bíblia? Deixa pra lá. Vambora.
- Deixa pra lá, o caralho... volta lá Pardal, volta lá!
Recuperada a bíblia, voltaram a andar. Ao atingir o alto de uma rocha,
de onde tinham uma boa visão do movimento na principal ladeira de
acesso à favela, Juliano ligou o celular e pediu apoio à quadrilha.
- Alô, firma. Aqui é Juliano. O Careca tá por aí?
Careca havia acabado de chegar da roda de samba. Bebia cerveja e
conversava com a namorada Cristina dos Olhos e com vários amigos da
boca em frente ao botequim de dona Virgínia, um dos pontos-de-venda
de cocaína do morro. Falava do problema do tornozelo inchado. Sofrera
uma torção do pé ao correr da polícia quando chegava à quadra para se
divertir. Estava a uns 50 metros do ponto onde os PMs abordavam os
suspeitos. Embora não estivesse cometendo nenhum crime, contava que
preferiu fugir morro acima para evitar o risco de ser interrogado e recolhido
para “averiguação” dos documentos no posto policial, pois ainda
estava sob o efeito do trauma do confinamento na cadeia.
Tomava cerveja quando um dos olheiros da boca o chamou para atender
o telefone.
- Quem é? - perguntou Careca.
- É o Juliano. Tá cercado pela polícia. Precisa de sua ajuda - disse
Tucano.
- Tá ferrado, hoje posso ir nessa parada não.
- Qual que é, Careca?
- Olha o meu tornozelo, inchadaço, cara.
- Conserta depois, passa em qualqué hospital, mas antes temo que
salvá a pele do chefe.
- Meu problema não é só esse. O mais grave é que, no pinote, rompi a
minha guia de Exu, minha proteção, minha corrente do pescoço...
- Caralho,aí o bagulho é foda.Sem o corpo fechado.E agora, Careca?
- Pra mim é um aviso, sacumé? Proteção divina rompida, mermão.
A irmã Cris, que chegara para conversar com eles, percebeu que Careca
estava com algum pressentimento ruim.
- Pode sê um catuque, não pode, Cris? Exu é foda!
Enquanto Tucano, Cris e Careca falavam do episódio da corrente, o
celular do contador da boca, Rivaldo,voltou a tocar. Era novamente Juliano,
agora mais Insistente, querendo saber por que o piloto ainda não
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