o casal se esforçou para passar uma imagem de alegria e descontração.
A chuva tornou-se intensa, para sorte deles. Meia hora depois, chegaram
a um esconderijo acima de qualquer suspeita. Era a primeira vez
que Juliano entrava em prédio tão elegante. Para a anfitriã, a situação era
ainda mais inusitada. A publicitária Luana nunca havia recebido em casa
um criminoso, muito menos um traficante chefe de morro, foragido da
justiça, prioridade nas buscas da polícia.
Desde a noite de sábado Luana acompanhava cada detalhe da fuga
pelo noticiário da televisão.
Procurou nas bancas saber melhor, mas os jornais dominicais - cujas
edições geralmente eram finalizadas na noite de sexta-feira - traziam
poucas informações. Na expectativa de receber Juliano em sua casa, passou
a tarde atenta aos plantões de radiojornalismo.
Mas sua fonte mais confiável era o missionário Kevin, que a cada dia
tornava-se mais amigo de seu namorado. Na tarde de domingo, Luana e
Kevin trocaram telefonemas a cada 15 minutos.
Por várias fontes, Luana sabia perfeitamente o quanto era grave o
episódio da fuga da Polinter e que o namorado tornara-se um grande
inimigo da polícia. Mas, se dependesse dela, Juliano ficaria para sempre
em sua casa.
Antes de concordar em abrir o seu apartamento para um foragido,
Luana não sabia exatamente se estava cometendo um crime ou não. Tirou
as dúvidas com alguns amigos ex-militantes políticos, que durante
o regime militar receberam proteção e também deram abrigo a pessoas
perseguidas pela repressão. Eles explicaram que ela poderia ser acusada
de favorecimento pessoal a um foragido da justiça e por tentar obstruir
a ação penal contra ele, atitude ilegal definida como contravenção. Por
definição, um ato menos grave que crime, mas que poderia levá-la a responder
a processo e à cadeia.
Mesmo sabendo desses riscos, Luana decidiu pensar neles depois.
Achou que valia a pena seguir as regras que o coração apontava.
- Você é louco, cara. Não se dá um susto desse numa mulher apaixonada.
Não acredito que você esteja vivo, inteiro aqui na minha frente!
- disse Luana.
O prédio de Luana ficava numa pequena rua sem saída e relativamente
segura da Gávea. Embora fosse logradouro público, os moradores
de classe média alta a transformaram em propriedade particular, com
guaritas para vigilância e grossas correntes de ferro impedindo a livre
passagem de carros e pedestres. Na tarde chuvosa de domingo, os vidros
embaçados do táxi ajudaram a não chamar a atenção dos guardas durante
a chegada de Juliano. Ele só saiu do carro na garagem subterrânea, protegido
por uma barreira humana formada por Kevin, Zuleika e Luana, que
simulavam o descarregamento de mercadorias do carro.
Os dias seguintes seriam inusitados para os dois. Ao decidir transformar
a casa no esconderijo de um foragido, Luana suspendeu os compromissos
já agendados. Cancelou as aulas de natação, passou a filtrar todos
os telefonemas com a secretária eletrônica, para selecionar seus contatos
e evitar compromissos com amigos.
Tudo para aproveitar ao máximo a lua-de-mel com o namorado, que
a impressionava cada vez mais. Nos primeiros dias, gostava de observar
Juliano descobrindo as “novidades” de seu apartamento e comparando-o
com os barracos da Santa Marta.
- Imagine, Luana, um apartamento desse lá no pico do morro.
Sem qualquer constrangimento, Juliano passava horas examinando
o conteúdo de cada gaveta da casa, sem achar que estivesse invadindo a
privacidade de Luana.
- Como tu tem bagulho, Luana? Como tu faz pra lembrá de cada coisinha
dessas?
Juliano ficou absolutamente encantado com a biblioteca, sobretudo
com a variedade de livros sobre filosofia e literatura. Iniciou a leitura de
vários e, diante de tanta novidade, não conseguia escolher um para ir até
o fim. Durante a leitura ouvia música clássica. Às vezes adormecia na
poltrona perto da estante de livros ou passava boa parte do tempo ali sem
fazer nada, apenas pensando nas últimas grandes mudanças de sua vida.
Adorava provocar discussões com Luana sobre o seu futuro, em conversas
que invariavelmente começavam com agradecimentos à namorada
pelo conforto e a tranqüilidade proporcionados por ela.
- Desde que eu entrei para o tráfico, Luana, jamais eu vivi uma certeza
dessas, de me escondê num lugar com segurança contra a morte.
Se a polícia me descobri aqui na tua casa, garanto que serei tratado com
respeito pelo menos uma vez na vida.
- Já no meu caso, aconteceria o inverso.Imagine a manchete nos jornais
policiais dizendo assim:publicitária rica esconde traficante foragido
Sem absolutamente nenhum compromisso, aos poucos Juliano adotou
os horários da sua rotina no morro.
Preparava o café da manhã, por volta das cinco horas da tarde, quando
acordava. Em vez do café trivial - com pão, frutas, iogurte - servia para si
mesmo arroz, feijão, ovo, carne, farinha. Antes de comer, sempre rezava
a oração do dia. Em seguida, lia o jornal levado pelo porteiro à porta do
apartamento e assistia aos telejornais noturnos para informar-se sobre a
própria fuga. Passava a noite e a madrugada namorando com Luana, assistindo
a filmes ou mergulhado na leitura de livros e revistas.
A única coisa que incomodava Luana eram os seus telefonemas para
o missionário Kevin ou para alguns dos seus homens que contavam a ele
as últimas histórias e intrigas do morro.
Luana achava que Juliano deveria evitar qualquer contato telefônico
de seu apartamento, que poderia estar sob escuta da policia. Além de tornar
o esconderijo vulnerável, tinha esperança de convencê-lo a aproveitar
a fuga bem-sucedida para não voltar mais para o morro e deixar de ser
traficante. Já tinham conversado bastante sobre o futuro durante as visitas
dela na carceragem da Polinter, ocasiões em que Juliano chegara a manifestar
o desejo de uma mudança radical de vida desde que encontrasse
um caminho alternativo interessante, talvez com a produção de filmes e
livros.
De volta à liberdade, estava diante de várias possibilidades.
- Por que você não aproveita agora, Juliano? - perguntou Luana.
- Pode sê uma boa, não é? - respondeu Juliano.
- Eu acho. Analise sua vida: a família, que você adora, já está fora do
morro, a sua mãe, suas irmãs. Seu pai foi expulso e já mora na Mangueira
há muito tempo. E quantos de seus melhores amigos você já perdeu?
- Peraí! Dos meus guerreiros só perdi o Du, o Renan, o Adriano...
- E a morte do Raimundinho, você esqueceu, Juliano? E a da Carlinha,
a do Rebelde..
- Eu ainda tenho uma rapaziada grande me esperando lá, Luana. O
Careca, que salvô minha vida. O Mendonça. Meus cunhados Alen, Paulo
Roberto...
- Mas, sinceramente, você acha possível voltar para o morro com toda
a polícia do Rio de Janeiro atrás de você?
- Um dia os homi vão me esquecê. Deixa baixá a poeira e aí eu acerto
a vida de todo mundo. Pego meus filhos e vô embora...
- Ah! Não acredito que você esteja preocupado com seus filhos. Eles
estão lá numa boa com as mães deles. E com você longe do tráfico, certamente
eles ficarão mais seguros.
- Sei não. Com o pai por perto, a moral é sempre maior. Malandro
respeita.
- Você tem que ser realista. A situação está muito perigosa e crítica. O
que você ganhou até hoje com isso?
- A confiança da minha comunidade.
- Não, uma casa pra sua mãe no Chapéu Mangueira, um táxi para ela
se sustentar... Tudo bem, mas pra você mesmo, nada. Nunca vi um ser
humano assim. Nem aquela tua mochila você tem mais.
- Dinheiro não é tudo. Ganhei muito e perdi muito. Faz parte, faz
parte! Já tirei muita onda, curti, viajei. Qué vê uma coisa? Se não fosse o
tráfico, nunca eu teria te conhecido, meu amor.
No décimo dia de lua-de-mel no esconderijo, a conversa tinha evoluído
para planos concretos de mudanças. Luana voltou a trabalhar e a
visitar os parentes, para não deixar a família preocupada com
seu desaparecimento. Nas noites sem dormir, tentava convencer Juliano
a aceitar a sua proposta.
Estava disposta a revelar a seu pai que estava apaixonada, que pretendia
casar e que precisava de apoio financeiro.
- Se você quiser, Juliano, a gente faz uma reunião com meu pai e conta
tudo para ele - disse Luana.
- Tu tá maluca, Luana? Teu pai me fuzila no ato. E manda me desová
num valão de esgoto, tenho certeza.
- Você está enganado. Ele confia em mim e vai me entender. Minha
família tem um apartamento na França, a gente pode ficar lá a vida toda.
Tenho certeza de que dinheiro não vai faltar.
- Você qué casá comigo na França?
Juliano ficou impressionado com a proposta de Luana. Pediu um tempo
para pensar. Precisava imaginar como seria a sua vida em Paris: o
aprendizado de francês, o curso de cinema, o anonimato nas ruas, o casamento
com Luana, a retaguarda financeira do pai dela, o exílio da Santa
Marta, a distância dos homens da sua quadrilha, as saudades da família.
Queria ouvir a opinião dos parentes mais próximos, da mãe, Betinha, da
Mãe Brava, dos irmãos de criação Difé, Santo e Diva. E da amiga Luz.
Juliano só chamou ao esconderijo a irmã de sua máxima confiança,
Zuleika. Ela veio visitá-lo com muitas novidades para contar. A mais recente
envolvia a irmã Zulá em mais uma história comprometedora.
- A Zulá anda muito estranha, Juliano. Parece que ela vive para se
vingar de você e isso está cada dia pior...
- Por que você fala isso, Zuleika?
- Porque ela anda te difamando demais. Desde que ela flagrou a Marina
com o Josefino, está espalhando para todo mundo que você gosta de
ser corno.
- Fala pra ela acabá com isso, que doideira é essa?
- Ela acha que você já deveria ter matado o Josefino. Que não podia
deixar barato.
- Não é assim. Eu tava na cadeia, agora tô foragido...
- Mas o pior de tudo não é a difamação. O que ela tá aprontando é
muito pior.
- Me dá uma notícia boa, por favor, Zuleika.
- Mas eu preciso te falar, é muito grave. A otária tá namorando um tal
de Renato, que ela dizia que era policial do corpo de bombeiros.
- E qual é o problema?
- Ela levou esse Renato lá em casa. Aí eu aproveitei a hora em que ele
foi ao banheiro para vasculhar a pochete dele. Encontrei uma identidade
do Batalhão de Operações Especiais.
- O cara é do Bope, caralho!! - gritou Juliano.
- Dentro da casa da sua mãe, Juliano - completou Zuleika.
- Tá querendo a minha morte, caralho!
- O pior é que ela tá apaixonada, vive com ciúmes dele, brigando. E o
cara enche a cara dela de porrada.
- É uma otária, mesmo. O cara tá com ela para levantá informação de
mim e ainda enche ela de porrada. E ela não percebe isso?
- Pelo menos ela também mete porrada na cara dele. É tudo muito
esquisito, Juliano.
A única boa notícia de Zuleika a Juliano era a de que a mãe, Betinha,
desde a descoberta da verdadeira identidade do bombeiro, nunca mais
permitiu que ele entrasse em sua casa.
Assustado com o grau de perseguição, que chegava a envolver espionagem
telefônica em sua família, Juliano passou a ficar tenso no esconderijo
da Gávea. Luana notou que ele ficara excepcionalmente inquieto
ao telefone. Passava a madrugada recebendo chamadas a cobrar da casa
da família no Chapéu Mangueira e dos homens da Santa Marta. Pela
natureza da conversa, ela percebeu que falavam da morte de alguém importante
na boca.
A preocupação de Juliano com os últimos episódios, por mais graves
que fossem, abateu Luana, que até então acreditava em um crescente envolvimento
dele no projeto de casamento na França. No décimo primeiro
dia de esconderijo na Gávea, Luana tentou tirar as dúvidas.
- Você quer realmente mudar de vida, Juliano? Quer morar comigo
em Paris? - perguntou.
- As coisas não são fáceis assim, Luana. Posso jogá tudo para o alto
de uma vez, não. A rapaziada tá perdida.
- A situação mais complicada é a sua, e não a deles. É você que está
sendo caçado, perseguido. E quando você vai ter de novo uma oportunidade
dessa? Aproveite, mesmo que não queira casar comigo.
- Te agradeço. Tu é maravilhosa, seu pai também... Mas ainda não é
hora de abandoná o morro.
Meu pessoal tá em guerra, os guerreiros precisam de mim.
- Você está me dizendo que desistiu da idéia de Paris?
- Tô apenas dando um tempo. Prometo que um dia, talvez muito em
breve, eu mudo de vida. E tu será a primeira pessoa que vai sabê disso.
Revelada a sua decisão, Juliano quis partir imediatamente. Era madrugada,
queria ir embora sozinho, a pé. Luana tentou convencê-lo a esperar
o amanhecer para não chamar a atenção dos vigilantes que controlavam
as correntes de segurança da rua. Optaram por um terceiro meio,
mais seguro.
Às cinco horas da madrugada, Luana e o missionário Kevin, chamado
às pressas para a missão, saíram de carro da garagem do apartamento da
Gávea, com Juliano deitado no banco traseiro. Foram direto até um posto
de gasolina na avenida principal do bairro, onde o amigo Careca e a irmã
Zuleika os aguardavam dentro de uma Kombi.
Luana despediu-se ainda muito preocupada com o destino de Juliano.
- Você vai voltar para a Santa Marta? Isso é loucura!
- Não, meu amor, vou logo ali. Qualqué hora eu volto.
- Cuidado, Juliano. Não se esqueça de que na fuga vocês balearam
um policial. Imagine se eles pegarem você...
- Fica em paz. Preciso apenas acertá uma parada aí.
Luana trouxera na bolsa o livro de Alex Haley, Negras Raízes, para
presenteálo na despedida. Juliano pôs dentro dele impressos coloridos
com as imagens de Santa Gertrudes e de Santo Expedito.
Depois do longo beijo de despedida, cochichou no ouvido de Luana.
- Um dia a gente se encontra em Paris.
CAPÍTULO 26 PÕE O PINO!
Quero contenção do lado.
tem tira no miolo e meu fuzil tá destravado.
Eu vou, quem for dispor, que venha.
E se bater de frente com nós, é lenha!
(Funk proibido)
Juliano estava voltando para esclarecer o boato de que era corno. Era
meio-dia de um domingo de sol, verão de 1997. Havia fogueteiros posicionados
na parte baixa da favela, pelo acesso de Botafogo, e outro
grupo no lado oposto, no pico, para saudá-lo se viesse pelo caminho de
Laranjeiras. Quase todos os homens, até os que amanheceram na atividade
da boca, acordaram mais cedo para esperá-lo.
Era certo que o rival estava de plantão no posto da PM no fim de semana.
O soldado Josefino, que continuava o romance com sua ex-mulher,
fora visto no começo da manhã pelos olheiros que circulavam na área do
DPO, na Escadaria. Na casa da “traidora”, a expectativa era de medo.
Marina fora avisada do provável retorno do marido traído, mas não teve
tempo de providenciar a mudança. Estava acompanhada do filho, Juliano
Lucas, de três anos. Seu único dispositivo de segurança era o celular
programado para ligar, numa emergência, para o telefone do soldado Josefino.
Até os parentes mais próximos, que moravam longe, chegaram cedo
ao morro para acompanhar a festa. A irmã Zuleika e a mãe Betinha estavam
desde cedo na casa da Mãe Brava. As três foram as maiores incentivadoras,
ajudaram a planejar o retorno e queriam vingança, cada uma
a seu modo.
Betinha o aconselhou a voltar ao morro para confiscar a casa de Marina
e convencê-la a sair da favela, sem violência, para não despertar o ódio
do soldado Josefino e, conseqüentemente, de toda a polícia.
A irmã Zuleika estava mais revoltada. Queria que Marina fosse punida,
sem julgamento, de acordo com os ritos das leis do crime. Ela achava
que só a aplicação de uma pena radical poderia ajudar o irmão a recu
perar um pouco o moral no morro. Dias antes, Zuleika havia conversado
muito com Juliano para tentar convencê-lo a se vingar.
- Faça como se faz no morro da Mineira. Enrola fita crepe dos pés a
cabeça, põe dentro de um monte de pneu e mete fogo.
Mãe Brava, queria punição ainda mais radical. Também tinha feito
uma campanha por vingança. Mesmo sem ter falado com Juliano, pedira
um empenho especial à quadrilha para defender a honra do chefão.
Ansiosa, no meio de um grupo armado que esperava por Juliano, Brava
repetia o que vinha dizendo, todos os dias, desde que soube do caso Josefino
e Marina.
- Tem que sentá o prego nos dois. Que que há? É da polícia? E daí?
Qué moleza, vai comê gelatina. Meu filho tem que dizê assim pro Josefino:
aqui é o crime, não é creme rapá! Dum! Dum!.. Dum!... Dum!
A chegada de Juliano, ao som dos disparos de fuzil, surpreendeu os
homens, que não sabiam para que lado correr. Ele estava saindo do meio
da floresta, a poucos metros do esconderijo onde fora desenterrar o fuzil
Jovelina, escondido desde o verão passado.
Passara um ano desde que saíra preso da favela, como personagem
central da crise na Segurança Pública do Rio de Janeiro gerada pela visita
de Michael Jackson à Santa Marta. Agora voltava na condição de
clandestino, foragido da prisão da Polinter e ainda com o peso de sua
primeira condenação na justiça.
No encontro com a quadrilha, não havia tempo para comemorações
por causa da pressão da Mãe Brava.
- Que papo é esse de beijinhos, abraços. Tu até parece viado, rapá.
Vambora lá metê o prego na putona. Vambora, vambora!
O grupo de homens armados partiu em direção à casa de Marina, seguido
por muitas crianças e mulheres. Brava vibrou com a firme decisão
de Juliano, que carregava Jovelina atravessada no peito.
- O bicho vai pegá. Te cuida, Josefino - gritava Brava pelo caminho.
O sobrado cinza de alvenaria sem pintura se destacava porque era
bem maior que os barracos vizinhos e parecia uma casa dos bairros de
classe média. Todas as portas e janelas, da cor natural da madeira, estavam
fechadas. Havia três quartos no andar de cima, parte dele coberto
por uma varanda com teto de placas de amianto, usada como salão de
festas e para abrigar o varal de roupas. Mãe Brava foi a primeira a chamar
pela dona da casa:
- Dá a cara, Maria Batalhão!
Os homens cercaram a casa, alguns se protegeram junto às paredes
dos barracos do lado e assumiram posição de tiro, preparados para alguma
reação lá de dentro. Era possível que o soldado Josefino estivesse
lá? Marina chegaria ao extremo de trair e ainda levar o amante policial
para morar com ela na casa construída pelo marido, chefe do tráfico? A
resposta na casa era o silêncio.
Juliano deu três breves assobios, como fazia quando morava com Marina
na casa. Em seguida uma janela se abriu lá no alto e apareceu uma
jovem de cabelos castanhos longos e óculos arredondados...
- Marina! - exclamou Juliano.
A jovem continuou em silêncio, séria, assustada com a quantidade de
homens armados.
- A parada tu sabe qual é, Marina. Tão dizendo maldade aí. Tu confirma,
ou qual que é?
Ela não respondeu.
- Traíra, vagabunda! - gritou Brava.
- Tu tá de trairagem comigo? - insistiu Juliano. Diante do silêncio de
Marina, Juliano tentou mais uma vez fazê-la falar. - É a tua última chance:
tu confirma ou não confirma? Tem coragem, Marina!
- Confirmo!
Silêncio por causa do constrangimento. O pessoal ficou paralisado
esperando a ordem do chefe, que demorou alguns segundos para reagir.
Uma reação que surpreendeu a todos.
- Aí, parabéns. Mulher de personalidade! Sabia que tu esconde nada
de mim, não. E o Lucas? - perguntou Juliano.
Marina afastou-se da janela e reapareceu instantes depois, ao lado de
um menino sorridente.
- Pai? Pai? - gritou Juliano Lucas.
- Caralho. Como tu cresceu, moleque. Desce aí, desce!
Mãe Brava foi a primeira a manifestar a decepção.
- Caralho! Tu é bem corno mesmo, hein, Juliano? Tu vai quebrá essa
putana, não, homem?
Juliano tentou acalmá-la, debochando de si mesmo.
- Corno, palavra pomposa. Até que não é feia, não. Qualé o problema?
-perguntou para Mãe Brava que começou a se afastar dele, revoltada.
Ninguém esperou mais nenhuma atitude violenta de Juliano quando
o filho Lucas saiu de casa correndo para abraçá-lo. Vários homens baixaram
as armas e partiram junto com Brava, que não parava de manifestar
sua revolta:
- Corno alegre. Que bandido é esse, meu Deus? Meu marido deve tá
chutando o caixão, de ódio!
A irmã Zuleika, quando percebeu que Marina tinha sido perdoada,
desabafou, profética.
- Te prepara, Juliano. Este é o início do fim da tua vida de bandido.
Para os homens que desejavam vingança, restava a esperança de um
duelo inevitável. Não iria demorar muito para os caminhos de Juliano e
Josefino se cruzarem no morro.
Mas a prioridade de Juliano era outra, apontava para uma história
muito mais grave, o mistério da morte de um grande amigo da antiga
Turma da Xuxa.
Os olheiros posicionados nas lajes do Cantão deram o alerta assim
que viram a chegada do jovem franzino de cabelos encaracolados pela
subida da rua Jupira. Ele corria, desviando-se das mulheres que carregavam
sacolas, e parecia exausto como um maratonista em fim de corrida.
Barrado pelos sentinelas do ponto de observação de Mãe Brava, ele tinha
o rosto molhado, a roupa encharcada de suor. Gesticulava nervosamente,
tentava convencer os seguranças do tráfico a deixálo passar.
- Que nervoso é esse, Mudinho? Tu tá apavorado, cara? - perguntou
Mãe Brava.
O jovem João de Castro era surdo e mudo. Era olheiro e fogueteiro da
boca e tinha o hábito de visitar todas as pessoas que o cumprimentavam
na rua. Algumas pessoas, como Mãe Brava, às vezes se irritavam por não
conseguir entender as suas mímicas. Mas Mudinho sempre se esforçava.
No dia em que foi testemunha de um crime, tentou responder com as
mãos fechadas. Ergueu os polegares e apontou os dedos indicadores para
a cabeça de Mãe Brava.
- Revólver! Revólver? - perguntou Mãe Brava enquanto Mudinho
movimentava a cabeça para cima e para baixo, confirmando que fazia o
sinal de uma arma. Em seguida, movimentou os dedos indicadores, como
se tivesse acionando o gatilho.
- Tiro na cabeça? De quem? Fala, Mudinho, fala! - gritou Mãe Brava,
já assustada. - Então fala quem atirou, desgraçado. Foi a polícia? - insistiu
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