poder da quadrilha também ao Cerro Corá e à ladeira do Tabajara. Enquanto
aguardava o dia da guerra, organizou alguns bondes interestaduais,
que era uma atividade inédita entre eles até o ano 2000. Fretava ônibus
e lotava com passageiros de perfil criminoso bem variado. As duas
últimas excursões tinham sido para o rodeIo de Barretos e para a festa
religiosa de Nossa Senhora Aparecida, ambas no interior de São Paulo.
- O bagulho lotou,aí.Tinha vapor levando pó do bom, as mulhé do piza
cheia de bolsa vazia,o pessoal do 157,amigos do falecido Mendonça.
- E o que vocês fizeram lá?
- Maió multidão, aí. As mulheres do piza deram bolsada à pampa,
enquanto neguinho abastecia o nariz da rapaziada lá.
- E assalto?
- Nem precisô, faturamo mermo. Aí, em Aparecida, teve um que disse
sim: vamo agradecê a padroeira. Aí eu botei na idéia que essa santa é a
minha preferida.
Na despedida, ele revelou o desejo de um dia se vingar dos helicópteros
que atacaram o seu amigo Nem. Mas eu pedi que ele nada me falasse
de seus planos de vingança e fomos embora.
Os preparativos do bonde de ataque, no Tabajara, foram muitos parecidos
com o da “grande guerra” de 1987.
Nem todos os convocados apareceram, e por diferentes motivos. Os
mais maduros, como Tucano e Kito Belo, que tinham mais de trinta anos,
não tinham como avisar. Tucano estava na cadeia, tendo sido preso dias
antes como integrante da quadrilha liderada por Mauricinho Botafogo,
formada também por jovens de classe média, especializada em assaltos a
residências da zona sul.
Kito Belo, depois de ser expulso pela quadrilha de Zaca, tinha ido
morar no morro do Adeus, em Niterói, a convite dos traficantes locais
que precisavam de reforço de soldados. Ninguém ainda sabia que Kito
Belo havia sido morto num combate com os inimigos, em Niterói.
Mais dois homens experientes, ambos com 25 anos, também tinham
sido mortos nas vésperas da formação do bonde. Em circunstâncias misteriosas,
os ex-gerentes Tibau e Faquir foram seqüestrados numa calçada
de Copacabana e depois tiveram seus corpos desovados na praia da Urca,
no Rio, e na praia de IcaraÍ, em Niterói. No morro, o crime foi atribuido
a desavenças no acerto de contas com policiais desonestos.
Em homenagem a Juliano, Paranóia e Pardal fizeram vários aviões à
procura de sua amiga confidente Luz nos abrigos de moradores de rua.
Vasculharam tocas de túneis, espaços entre os pilares de viadutos, marquises
de prédios, espalharam recados em vários núcleos de desabrigados
da Baixada Fluminense e de Jacarepaguá, mas até fevereiro de 2003
não a tinham localizado. Também mandaram uma menina checar uma
informação sobre o possível paradeiro dela no morro do falecido Bruxo,
o Cerro Corá, ocupado pelo Terceiro Comando. Mas Luz também não
estava lá. As mulheres, porém, estavam bem representadas no bonde, embora
fosse difícil distinguir quem era quem. A irmã de criação de Juliano,
Diva, e duas namoradas de jovens da quadrilha, Coquita e Cristina, de 16
e 17 anos, foram obrigadas a colocar máscaras, camisetas e calças pretas,
o mesmo uniforme usado pelos homens.
Para a posição de comandante do bonde, assim como na guerra dos
anos 80, fora escolhida a figura mais temida entre os chefes de morro
envolvidos. Em 1987 fora Cabeludo, dessa vez o líder seria o funesto
Patrick do Vidigal. Ele selecionou mais de cinqüenta homens e mulheres
e exigiu que todos pusessem o uniforme fúnebre para um ataque
extremamente pretensioso, a invasão simultânea das bocas da Santa Marta
e do Cerro Corá.
O inspirador do bonde acompanhou as ações de dentro da cadeia,
pelo celular, que estava nas mãos de Coquita. Juliano teria pedido para
o aparelho ficar permanentemente ligado, pois queria dar orientações e
ouvir o ruído dos combates.
Para a rapaziada, fizera pedidos diferentes, guardados em sigilo por
todos. Eram menos de vinte “crias” da Santa Marta na formação do bonde.
Quem portava armas discretas, como alguns adolescentes foragidos
dos abrigos de menores infratores, ficou no asfalto para usá-las na cobertura
dos acessos principais ao morro.
Os primeiros disparos vieram do fuzil de Tênis, que estava à frente
da ala vinda pela floresta. A máscara dele escondia o rosto de um jovem
de 25 anos, tarimbado pela experiência de assaltos e da cadeia, que já
se achava maduro o suficiente para assumir a lacuna deixada pelo ídolo
Juliano.
Embora mais jovem, Nego Pretinho, aos 20 anos, demonstrava estar
confiante e seguro como os mais velhos.
- Aí, sem medo de morte, galera. Essa parada vai sê nossa - gritou
para os parceiros.
Pardal fez questão de invadir pelo Cantão, de onde a família foi expulsa
por Zaca na guerra de 1987. Na época, Pardal era ainda bem pequeno.
Treze anos depois, também armado de fuzil, ele buscava na guerra, além
de vingança, honrar um compromisso moral. Jurara ao pai presenteá-lo
com uma birosca confiscada do inimigo.
Paranóia ia correr o maior risco, motivo de orgulho para o menino
que em 1987 andava pelo morro como mensageiro das noticias da guerra.
A bravura revelada nos últimos combates credenciou Paranóia a lutar ao
lado do gerente do chefão Patrick. Uma de suas funções era usar o fuzil
para dar cobertura ao líder do bonde, que tinha as mãos ocupadas pelo
machadão, arma de impacto da quadrilha. À frente do grupo mais numeroso,
invadiram pelo pico, com a esperança de atacar diretamente Zaca,
que sempre usou a área mais alta do morro como trincheira e refúgio.
Nas mãos de Paranóia, de Tênis ou de Pardal havia um troféu, que um
deles teria herdado do comandante agora prisioneiro. Um dos três fuzis
era a Jovelina de Juliano, mas nenhum deles quis confirmar este segredo
de guerra.
Um dia antes de nosso último encontro na Argentina, Juliano me contou
que o seu destino sempre estaria associado ao da Jovelina. Ele disse
que a primeira coisa que iria fazer, se um dia abandonasse o crime, seria
o cumprimento de uma promessa, numa cidade do interior de São Paulo.
Passaria fita adesiva em volta da Jovelina, como se fosse uma embalagem
de cocaína. E a deixaria aos pés da imagem da santa padroeira da Basílica
de Nossa Senhora Aparecida.
Até o dia em que eu redigia a última página deste livro, o destino do
fuzil continuava incerto.
Uma queima de fogos anunciou o sucesso da invasão ao Cerro Corá,
na mesma madrugada do ataque. Prestaram uma “homenagem” ao antigo
chefão com a distribuição de uma rodada de cocaína para batizarem a
nova área da venda de drogas como praça do Bruxo.
Nos labirintos da Santa Marta, as guerras sempre foram mais complicadas
e violentas. Dessa vez, depois de mais de cinco horas de combate,
os tiroteios já haviam provocado “chuveirinho” em quase toda a tubulação
da rede aérea de distribuição de água e nenhum dos lados dava sinais
de cansaço. Os moradores continuavam recolhidos a suas casas, aparentemente
com a sua costumeira neutralidade.
A única novidade marcante, desta vez, viera da mudança de perfil
do pessoal de Juliano. Agora incluía a adesão das mulheres à quadrilha.
E foram justamente elas as primeiras a matarem um inimigo. Era perto
do meio-dia quando as três mascaradas surpreenderam dois soldados da
retaguarda de Zaca. O impacto do fuzilamento levaria ao avanço irreversível
até a vitória definitiva, que só aconteceria depois de três dias de
combates.
A quarta geração de traficantes do CV na Santa Marta chegaria ao
comando sem nenhuma baixa e nenhum escrúpulo pela ganância de poder.
Em nome da revanche sonhada pelo ídolo prisioneiro, expandiriam
o controle do comércio de drogas aos morros vizinhos e, pelo menos até
o começo de 2003, continuariam mantendo a expansão tanto no Cerro
Corá quanto na metade do Tabajara.
Os quatro principais candidatos à nova liderança revelavam o desejo
de repetir a trajetória do chefe, que na cadeia reforçaria a sua condição
de herói dos adolescentes ligado à boca. Pardal, Tênis, Paranóia e Nego
Pretinho achavam que um dia Juliano chegaria à condição de chefão do
CV, para defender o lado certo da vida errada.
Até fevereiro de 2003 nada indicava que Juliano tivesse conquistado
a diretoria do Comando Vermelho.
Não estava mais na mesma cadeia dos principais chefões, tinha sido
transferido para o presídio de Bangu 3.
Como havia planejado, aproveitava a mudança para voltar a estudar e,
pela primeira vez na vida, a se preocupar com a sua defesa. A namorada
Milene o visitava semanalmente na cadeia, inclusive durante o período
de gravidez. No dia do nascimento de seu quarto filho homem, Juliano
Gabriel, em novembro de 2002, Juliano jurou fidelidade a Milene e prometeu
casar para ter uma vida menos abusada quando saísse da cadeia.
A expulsão de Zaca também levou de volta ao morro várias pessoas
que estavam juradas de morte, como o missionário Kevin. Tão logo retomou
as suas atividades na Casa da Cidadania, o nome do missionário
foi indicado pelos moradores como um dos cabeças da única chapa das
eleições para a escolha da nova diretoria da Associação de Moradores.
Ele foi eleito diretor com 400 votos, 70 por cento da preferência das
600 pessoas que foram às urnas. As outras anularam o voto. A experiência
de Kevin na Associação acabaria sendo curta e traumática por causa
da interferência da nova turma que estava à frente da boca. A maioria o
respeitava devido a sua amizade com o chefe preso.
Mas alguns não gostaram quando ele começou a reclamar de alguns
abusos que estavam sendo cometidos contra a comunidade.
As desavenças começaram quando Kevin procurou o pessoal da boca
para se queixar do comportamento de alguns adolescentes da favela, que
estavam praticando assaltos na vizinhança do morro. Roubar na própria
área dos amigos representava o rompimento de uma das regras de conduta
mais antigas da malandragem. Os traficantes prometeram providências,
mas os roubos se tornaram mais freqüentes e ainda mais próximos. Culminaram
com uma seqüência de assaltos à noite nos becos escuros dentro
da própria favela, motivo de uma revolta silenciosa dos moradores.
A gravidade do episódio levou o missionário a cobrar, por meio de
telefonemas à cadeia, uma atitude enérgica de Juliano. E ele ainda esperava
uma resposta quando mais um episódio grave tornaria a crise
irreversível.
Era o dia da votação na quadra da escola de samba para a escolha do
samba de enredo do Carnaval de 2003. Os moradores do morro, como
sempre, lotaram a quadra para acompanhar de perto a decisão do júri,
que não agradou o pessoal do tráfico. Eles disputavam o concurso com
um samba da preferência deles, enviado da cadeia pelo veterano compositor
Tá Manero, vencedor em outros anos. Mas o preferido do júri para
o Carnaval de 2003 foi o samba do puxador Junior, um amigo dos sambistas
da Santa Marta que morava fora do morro.
- Isso parece júri de alemão. Eu vô eritrá no teu caminho - disse Nego
Pretinho a Toninho Guedes, presidente da escola de samba, usando uma
expressão que no morro é entendida como ameaça de morte.
A ameaça foi feita de forma discreta ao lado da mesa dos jurados,
mas rapidamente se espalhou por toda a quadra. O protesto do missionário
também virou fofoca no morro e marcaria o início de seu rompimento
com o pessoal do tráfico.
Por alguns dias, Kevin esperou por alguma atitude de Juliano, ainda
com esperança que ele fosse puni-los ou afastá-los da boca. Uma semana
depois, o missionário recebeu uma ligação da cadeia de Bangu 3,
do próprio Juliano, dizendo que não tinha providenciado “desenrole”
nenhum.
A postura omissa de Juliano representou a maior decepção para Kevin
em dez anos de proximidade com os traficantes da Santa Marta. Bastante
magoado, sentindo-se com a vida ameaçada, Kevin, renunciou ao
seu mandato na Associação com uma pequena carta simples e formal
sem revelar que o verdadeiro motivo era a impossibilidade de dialogar
com a nova geração de traficantes. Mas não desistiria de suas missões
evangélicas.
- Vou dar um tempo à minha amizade com Juliano. Vou levar a minha
ajuda missionária para outros morros, que estejam precisando de solidariedade
-disse Kevin no dia de sua renúncia.
O missionário Kevin começou o ano de 2003 na administração de
uma agência de notícias da Santa Marta e de todas as favelas do Rio de
Janeiro.
Na mesma época, Pardal e Nego Pretinho foram indicados por Juliano
como novos frentes do morro. Tentei conversar com os dois. Pela
primeira vez pedi para que falassem um pouco sobre o futuro e o risco
de morte na nova função. Pardal e Nego Pretinho não quiseram falar e
alegaram falta de tempo.
Eu acreditei neles.
A repetição de suas histórias de guerra já havia ensinado que não valia
a pena perder tempo com nada, menos ainda falando de coisas que já
eram tão sabidas como destino.
Todos cresceram acompanhando de perto a trajetória dos mais velhos.
Sabiam dos perigos, mas estavam decididos a continuar no mesmo
caminho.
De cada grupo de 16 da nova geração - se a trajetória da quadrilha
de Juliano se repetir - não seria um exagero afirmar, em 2003, que sete
teriam no futuro o mesmo fim de Paulo Roberto, Adriano, Mendonça,
Renan, Du e os irmãos Careca e Vico. Ou seja, quase a metade terá morrido
até o final da primeira década do século XXI.
Os outros teriam destinos diferentes.
Um se desviará das propostas do tráfico e seguirá a trajetória dos trabalhadores
honestos, como o vigilante Jocimar, em troca de um salário
equivalente a 200 dólares mensais. E outros dois, como Flavinho e Mentiroso,
depois de fracassarem no crime, seguirão o mesmo caminho.
Um se desviará parcialmente da marginalidade, como o bicheiro Soni,
para aderir às atividades da contravenção.
Um terá problemas mentais, como Doente Baubau, depois de consumir
drogas em excesso.
Como Luz, um deles estará na lista da multidão de pessoas desaparecidas
do país, ou esquecidas para sempre.
Três serão criminosos, como Claudinho, Alen e Juliano. Passarão a
maior parte de suas vidas na cadeia. Desses, apenas um, se tiver sorte,
muita sorte, como Claudinho, chegará ao poder, será dono de um morro.
Ou poderá conquistar até três bocas, para ter o “poder” de Juliano. Mas
estará condenado pela justiça.
E será para sempre prisioneiro de si mesmo, de suas lembranças dos
Tempos de viver, dos Tempos de Morrer e de sua tentativa de dar um
Adeus às Armas.
Certa vez, no esconderijo do Turano, Juliano falou de dois pesadelos
reais, como síntese do pior que havia vivido na condição de líder do tráfico.
As duas histórias - a de Nem e a de Berenice - tiveram como “testemunhas
do passado” os moradores da Santa Marta
BERENICE
A irmã de Berenice e uma amiga chegaram com as melhores credenciais
para conquistar a confiança da quadrilha de Juliano. Eram aviões de
uma favela amiga e traziam uma carga de dois quilos de pó para entocar
na Santa Marta, por motivos de segurança. Os morros do seu bairro, Tijuca,
estavam sob constante varredura da polícia. Era preciso transferir o
que havia no estoque até a situação se normalizar.
- Vocês são turanas! CV, aí - disse Henrique, o ex-gerente do branco
que acabara de ascender à condição de frente do morro, o cargo mais alto
na hierarquia da boca.
- Tu tá sabendo, aí. É um avião do Playboy, acertado na chinfra como
Juliano - respondeu uma das duas adolescentes.
Crias do Turano, com vários amigos sempre muito ligados aos homens
da Santa Marta, elas tiveram uma recepção especial. Foram acomodadas,
por cortesia da boca, em um barraco abandonado, que pertencera aos
inimigos expulsos do morro na guerra de 1992. Embora fossem funkeiras
das mais animadas, já no primeiro fim de semana as duas chamaram
atenção no baile da quadra por outro tipo de euforia.
Passaram parte da noite abraçadas com Pardal e com Tucano, e depois
também namoraram Kito Belo e Paranóia. Ficaram também com
alguns jovens do grupo do samba, com quem dividiram a pista de dança e
bancaram o consumo de alguns gramas de pó, durante e depois do baile.
O mesmo comportamento se repetiu durante toda a semana seguinte,
quando passaram o dia dormindo e a noite freqüentando os botequins
e circulando pelos becos, cheirando pó com grupos de adolescentes. O
comportamento delas despertou a desconfiança de algumas mulheres do
morro, parentes do pessoal da boca.
- Essas mina têm um aspirador no lugar do nariz, Henrique. Isso pode
sobrá caô pro nosso lado - alertou Zuleika, desconfiada de que elas estivessem
consumindo o pó estocado a pedido do Turano.
- Tu tem certeza? A farinha pode sê dos cria daqui, sacumé ? - ponderou
Henrique.
- Na dúvida, se eu fosse tu, eu apertava, ia pra cima - disse Zuleika.
- Vou ficá de olho nelas, me ajuda, Zuleika.
Não precisaram de muito tempo para ter certeza. No baile do fim de
semana seguinte, as funkeiras foram flagradas pelos olheiros da boca não
só consumindo, mas também vendendo pó dentro da quadra da escola de
samba.
- Elas tão vendendo sacolé de três e sacolé de cinco, Henrique - avisou
o olheiro.
- Desse jeito vão acabá com a carga dos irmãos do Turano. O chefe
tem que sê avisado! - disse Henrique.
Pelas leis do tráfico, as duas coisas - consumir e vender a droga sem
autorização de seu dono - eram de extrema gravidade. De imediato, Henrique
escreveu uma carta e mandou um “avião” entregar em mãos a Juliano,
que nesta época estava na Polinter.
Nessas circunstâncias, em geral os chefões reagem com punições
perversas, freqüentemente fatais, para jamais se repetirem. Ao ler a carta,
Juliano entendeu que o problema era gravíssimo, que poderia ser compreendido
como uma traição pelos amigos do Turano e que certamente
chegaria ao conhecimento dos dirigentes do CV.
“Chega junto. Dá um aviso pra essas minas, na moral. Eu vou dá um
jeito de repô o que foi gasto.”
A ordem de Juliano, escrita num bilhete, surpreendeu quem esperava
uma punição rigorosa contra as funkeiras.
- Mamão com açúcar. Isso que o meu irmão é. Tinha que mandar
quebrar essas vagabundas - protestou a irmã Zuleika.
- Vai vê que o Juliano passô o ferro nessas minas, e agora tá dando
esse mole. - reclamou Mãe Brava.
A cautela de Juliano tinha a ver com o episódio semelhante que levara
à punição e, por conseqüência, à morte indesejada do amigo de infância,
Carlos Calazans, o Du.
Não só por fidelidade ao chefe, mas por achar a providência sensata,
Henrique fez o que lhe foi pedido. Chamou as funkeiras para conversar,
explicou quais seriam as conseqüências para as relações dos dois morros
e exigiu que elas mudassem radicalmente o comportamento.
Elas mudaram para pior. Deixaram de consumir e vender na Santa
Marta, mas passaram a abastecer os bailes da Rocinha e dos Prazeres.
Henrique voltou a conversar várias vezes com as duas e passou a amea
çá-las de expulsão do morro. Isso antes de saber que o abuso era ainda
maior.
Preocupados com a provável perda da carga de dois quilos, por ordem
de Juliano, Henrique mandou os homens invadirem o barraco das
funkeiras para recuperar o que havia sobrado do pó. Para a surpresa deles,
o pacote estava lá, com o mesmo tamanho e peso que tinha quando
veio do Turano.
Henrique pediu desculpas pelo equívoco, mas não deixou de seguir
as ordens de Juliano. Permitiu que as duas continuassem no morro e
organizou um bonde de motos para levar a carga de volta ao Turano. Ao
recebê-la, o chefão Playboy constatou que a carga original havia se transformado
em um pacote com dois quilos de qualquer poeira ou farinha
branca, menos cocaína.
A solução do golpe foi de chefe para chefe, Playboy e Juliano. Mas
como virou assunto de todas as conversas entre os traficantes dos dois
morros, também chegou ao conhecimento dos dirigentes do Comando
Vermelho.
Pressionado por todos os lados, Juliano buscou uma punição simplória
e, ao mesmo tempo, cruel, para marcar o seu poder: a execução
das funkeiras. Da cadeia mandou avisar a Henrique, por carta, que elas
teriam um prazo para se redimir, uma semana para pagar o valor da carga
que venderam ou devolver os dois quilos de pó ao Turano. Caso contrário,
vencido o prazo, ele mandaria da cadeia a ordem de fuzilamento, por
meio de uma senha de duas palavras.
- Beijos, Henrique!
Quem transmitiu a senha para Henrique foi a irmã-amiga de Juliano,
Zuleika. As funkeiras não haviam acreditado nas ameaças e passaram os
últimos dias do prazo vendendo fora do morro o resto dos dois quilos de
cocaína, que haviam enterrado para esconder do pessoal da boca. E continuaram
morando no morro.
O telefonema em que Zuleika passou em código a ordem de execução
foi atendido pelo chefe de plantão, Faquir. Era perto do meio-dia e Henrique,
que passara a noite acordado, ainda dormia. Como a ordem já era
aguardada com ansiedade pelos homens, Faquir compreendeu o significado
dos “beijos, Henrique”. Quis apenas saber mais detalhes.
- É para quando, Zuleika?
- Depende. As duas estão aí agora?
- Agora pouco estavam.
- Então é prá já.
- Deixa com a gente, Zuleika. Elas não passam de hoje.
Naqueles dias a boca vivia uma crise por causa dos constantes desentendimentos
entre os dois grupos responsáveis pela administração.
Henrique era o líder do pessoal ligado à Turma da Xuxa. Os outros eram
caxangueiros como Faquir, integrantes das quadrilhas de assalto chefiadas
pelo cunhado que acabaria traindo Juliano, Paulo Roberto.
Sem esperar pelo aval de Henrique, que dormia, Faquir reuniu o pessoal
caxangueiro e partiu para o barraco das funkeiras. Mas só uma mulher
estava na casa e não era nenhuma das duas, que tinham acabado de
sair para fazer um lanche no asfalto.
Quem estava na casa era Berenice, uma jovem do Turano que tinha
ido visitar a irmã funkeira. Sem saber o motivo da invasão, ela foi arrastada
pelos cabelos para fora do barraco. Em seguida foi levada pelo grupo
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