pobres do bairro. O cigarro de maconha, que passava de mão em
mão, era um fator de identificação da maioria, que fumava escondido dos
pais. Outra coisa que tinham em comum era a falta de dinheiro. As mesa
das, que nem todos ganhavam, eram pequenas. Os filhos de pais de classe
média não eram bem aceitos ali. Os que viviam por conta própria, como
Luz e seus parceiros, eram os mais ouvidos na roda, mais admirados.
Impressionavam porque, sem terem um emprego ou família provedora, já
ganhavam o suficiente para pagar o próprio lanche, comprar um cigarro
de maconha, jogar fliperama. Só não chegavam a exercer uma liderança
maior devido aos riscos inerentes ao caminho que haviam escolhido, perigoso
demais para atrair muita gente.
O primeiro roubo de Luz foi na calçada movimentada da avenida
Nossa Senhora de Copacabana. Uma ação rápida, o chorri, provocada
por um grupo de quatro, divididos em duas duplas. Escolhido o alvo, um
parceiro trombava com ele.
Enquanto um empurrava, Luz colocava a mão no bolso ou na bolsa da
vítima. De forma simultânea a outra dupla de parceiros ajudava a fechar
o cerco e a tumultuar a cena. Um deles simulava uma oferta de ajuda para
confundir ainda mais a vitima. Com o dinheiro na mão de Luz, cada um
corria para um lado, o que dificultava a perseguição.
No começo Luz gastava o dinheiro do chorri na compra da cola, uma
goma química, o mais barato entorpecente de criança de rua, de fácil
aquisição no comércio de venda de produtos de sapataria.
Dentro de um saco plástico, um bocado de cola de couro de sapato
emitia um vapor que provocava alucinações, náusea e perda de apetite.
Matava a fome e garantia a segurança. Um saquinho plástico de cola
na mão sempre atraiu amigos famintos em volta de Luz. Amigos que a
ajudavam a se defender de grupos rivais de outras ruas, outros bairros.
Também a protegiam quando precisava usar o banheiro, lá nos fundos
dos postos de gasolina, onde não era raro os frentistas tentarem abusar
sexualmente dela.
Na hora da exaustão, depois das últimas aspiradas da cola, Luz e os
parceiros de chorri dormiam amontoados, o que aumentava a chance de
não serem atingidos pelos pontapés das pessoas que não gostavam de ver
crianças sujas dormindo nas calçadas.
Para não ficar conhecida onde morava, Luz passou a agir longe da rua
Hilário de Gouveia e mudou a prática de roubo. Em vez do chorri, passou
a fazer a corriola, ações em grupo com mais de quatro componentes.
Pegavam ônibus em direção a outro bairro e, no caminho, escolhiam suas
vítimas, na rua ou dentro do próprio ônibus. Um deles ficava de olho no
cobrador, outro junto à saída impedindo o fechamento da porta, mesmo
com o carro em movimento. Aproveitavam o momento em que o cobrador
estivesse envolvido com as cobranças para atacar os passageiros,
com a mesma técnica de trombada do chorrí. Na fuga, corriam em grupo
pelo meio da rua, sempre pela contramão do trânsito para dificultar a
perseguição de motoristas ou das viaturas da polícia. Depois do roubo,
preferia dormir na marquise da Galeria Alaska para, na hipótese de ser
descoberta, não sujar a área da Hilário de Gouveia.
Na época em que conheceu Juliano, Luz estava em outra escala do
crime, já era adulta e começava a participar de assaltos a mão armada. O
primeiro tinha sido a uma loja de artigos esportivos em Cascadura, uma
escolha infeliz. O dono era um ex-jogador de futebol, volante famoso nos
anos 70 justamente do time de sua paixão, o Flamengo. Cara a cara, Luz
duvidou que estivesse realmente diante de um ídolo. Nervosa, chegou a
vacilar na hora de apontar o revólver.
- Mermão! Tu é mesmo quem eu tô pensando? - perguntou Luz.
Assustado, o jogador nada respondeu. Procurou facilitar as coisas.
- Podem levar o que quiserem... Mas não atirem, não atirem.
- Preocupe, não. Só queremos grana e algumas coisinhas mais.
Enquanto o parceiro recolhia às pressas o dinheiro do caixa, Luz parecia
desinteressada no roubo.
- Aí cara, tu vai me deixá na dúvida, não, hein? Faz isso comigo, não.
Meio-campista! Era tu sim: grande número 5, aí!
O volante continuou sem responder.
- Tu é jogo duro, hein? Seguinte: vô levá aquela camiseta do Mengão
ali. Mas tem que sê a 5.
- Não temos a número 5 na loja. Só a 10, a do Zico.
- Como não, cara. Tu era a 5 e agora não tem o 5. Panha alguma aí,
rapá. Dá um jeito, mermão!
O parceiro já acelerava a moto, pronto para iniciar a fuga, quando Luz
convenceu a vítima a atender a seu último pedido.
- Tá bem, eu levo qualqué uma. Mas se tu é quem eu tô pensando,
quero um autógrafo.
Nem teve tempo de vestir a camisa número 10. Correndo, saltou na
garupa da moto, com a camiseta na mão. Já estavam em alta velocidade
quando Luz checou a assinatura e vibrou no meio do trânsito.
- É ele! É ele!
Naquela época, o ídolo de Juliano atuava em outros campos. Era alto,
magro, moreno e tinha uma marca inconfundível mesmo a distância:
os cabelos pretos, lisos, compridos até os ombros. De perto, chamava a
atenção pelo uso exagerado de jóias de ouro nos dedos e no pescoço.
- Conheço um cara que vai adorá te conhecê, Luz - disse Juliano.
- Quem é ele? - perguntou Luz.
- Cabeludo é o nome dele. É fera, só vai na parada certa.
- O que ele faz?
- É assaltante, maravilhoso! Vai curtir esses bagulhos que tu apanha
no sinal. Correntes, anéis.
- E ele paga bem?
- Mas tem que sê corrente daquelas grossas! Ou dedeira. Ouro 18!
Juliano levou Luz até a favela para conhecer Cabeludo, que se tornaria
mais que seu receptador. Ela temia ser mal-recebida por causa do
forte preconceito das quadrilhas do morro contra os homossexuais. Bem
orientada por Juliano, ao ser apresentada ao chefe do tráfico, Luz mostrou
o presente que trouxera para a pessoa que Cabeludo considerava a
mais importante da sua vida, a sua mulher, Stela.
- Uma pulseira. A rainha vai adorá! E essa medalha? - perguntou Cabeludo.
- Nossa Senhora Aparecida. Pra protegê vocês aqui do morro - respondeu
Luz.
Ficaram tão amigos, que Cabeludo superou o preconceito contra as
lésbicas e a convidou para passar alguns dias em um dos barracos do
pessoal da boca. Orgulhosa do convite, Luz aceitou. O que era para ser
alguns dias virou semanas, meses, anos...
A mãe Betinha só teve certeza de que o filho estava envolvido com
furtos e drogas quando Juliano foi preso pela segunda vez na loja do tio
Carlos da Praça, devido à compra de uma moto roubada. Betinha foi à
delegacia acompanhada de Marisa, que já estava no quarto mês de gravidez.
Na conversa com o delegado, a mãe começou a conhecer o tratamen
to humilhante que a policia oferecia aos parentes de criminosos.
- Eu queria saber se o meu filho está aqui na sua delegacia - disse
Betinha.
- O que fez o seu filho? - respondeu o delegado.
- Não sei, ele é balconista de uma loja. O nome dele é Júlio Mário
Figueira.
- Balconista! Você está falando de um bandido, o VP. Traficante, ladrão
de moto...
- O senhor tem certeza disso que tá falando?
- Vem cá, vou te mostrar onde vou colocar o teu filho, pra comerem o
rabo dele. É o que ele merece.
O delegado conduziu Betinha até o corredor da carceragem, de onde
ela podia ver o xadrez superlotado. Havia dezenas de homens descalços,
sem camisa, vestidos só com bermudas, amontoados num espaço sombrio,
úmido, com capacidade para abrigar no máximo quatro pessoas.
Para assustar ainda mais a mãe, o delegado disse que a maioria era estuprador.
- Sabe como que é, seu filho é garotão, carne nova, esse pessoal vai
adorar!
De volta ao gabinete, o delegado passou da ameaça ao assédio.
- Pois é, mulher, só tem um jeito de levar o teu filho pra casa...
- Que jeito, delegado?
- Já vou te mostrar. Vem cá.
- O que é isso que você está fazendo? Você não tem vergonha?
No momento em que o delegado levantou da poltrona com o pênis
para fora da calça, Betinha ouviu o grito de Marisa, a namorada de Juliano,
que estava sofrendo o mesmo tipo de constrangimento na sala ao
lado, onde trabalhava o chefe dos investigadores. E reagiu:
- Grita socooooorro, Marisa! Grita!
O escândalo na delegacia, numa hora de grande movimento, intimidou
os policiais, que desistiram do ataque. No dia seguinte, Juliano foi
liberado por intervenção do advogado contratado por Carlos da Praça.
Ainda abalada, Betinha disse a Juliano que a descoberta do envolvimento
dele no crime tinha sido a maior decepção da sua vida. Queixou-se também
da humilhação que ela e Marisa sofreram na delegacia.
- Que horror você me fez sentir, que safadeza! Que vergonha!
- Fala, me fala, mãe. Tu gritô daquele jeito na delegacia. Por quê?
- Aqueles canalhas! Culpa tua, culpa tua. Passar por vexame em delegacia!
- Me fala... se alguém te esculachô eu volto lá e quebro ao meio! Seja
quem for!
A descoberta do real vínculo com o Carlos da Praça mostrou aos pais
que, mesmo sem ter muita consciência do que fazia, Juliano estava envolvido
demais com o tráfico. Além de atacadista de cocaína dos principais
morros da zona sul da cidade, Carlos da Praça era o fornecedor da Santa
Marta.
A amizade com Cabeludo consolidou ainda mais essa condição em
relação aos concorrentes. O fato de Juliano, aos 17 anos, já ter conquistado
a confiança dos homens mais poderosos da comunidade provocou
uma divisão dentro da família.
O pai Romeu tinha fortes razões para querer o filho longe de Cabeludo,
uma espécie de herdeiro dos criminosos da velha-guarda. Como
nunca gostou de bandido, Romeu justificava a sua simpatia por Zaca de
uma forma simplista, considerando-o menos bandido” do que Cabeludo.
Na verdade, Romeu estava sendo beneficiado diretamente pelo poder de
Zaca, com apoio financeiro e moral.
- Esse homem mudou nosso destino. Antes éramos tratados como
bicho. Hoje, nordestino é gente aqui no morro - disse Romeu às filhas
Zuleika e Zulá.
Desde os primeiros dias no poder, o comandante paraibano se preocupou
em agradar as famílias nordestinas. Romeu e os colegas birosqueiros
receberam de Zaca o apoio em dinheiro para criar vários bailes de forró
na favela, um estímulo ao lazer e ao faturamento dos botequins.
Além de acabar com a perseguição aos nordestinos, Zaca aos poucos
também mostrou que sabia administrar conflitos. Promovia assembléias
para discutir questões de interesse coletivo - como os mutirões para a
construção de um campo de futebol no pico do morro. Envolvia-se em
assuntos tão particulares quanto uma briga de casal. Diferente de Cabeludo,
que contava os dias para voltar a ser apenas assaltante, Zaca queria
ficar no poder para sempre. As diferenças de estilo entre Zaca e Cabeludo
geraram algumas desavenças já nos primeiros meses de gestão da dupla.
E depois de um ano viraram uma crise de poder e provocaram uma divisão
no morro. A exemplo do que aconteceu na casa de Juliano, muitas
famílias também ficaram divididas. Em geral, os jovens apoiavam o estilo
festivo e desprendido de Cabeludo. Os mais velhos sentiam-se mais
seguros com o jeito que consideravam ponderado do rival. Negociador
hábil, Zaca promoveu um acordo polêmico para garantir o funcionamento
da boca, mediante pagamento de propina. Estabeleceu uma convivência
pacífica com os policiais. Graças ao acordo, mesmo num cenário de
constantes operações de caça aos traficantes, os moradores viviam a euforia
das festas e vendas recordes de drogas, quase sem sofrer espancamentos,
prisões ou mortes em conseqüência de repressão policial.
Na família de Juliano, o fato de Zaca ter se aliado à polícia era motivo
de grandes discussões. O pai Romeu e a irmã mais velha, Zulá, apoiavam-
no sem restrições. Achavam que Zaca representava garantia de prosperidade
no comércio dos birosqueiros. Para a irmã mais nova, Zuleika,
e Juliano, o acordo promovido por ele era vergonhoso. A mãe, Betinha,
apesar de Juliano fazer campanha contra Zaca por causa de sua profissão
no passado, manteve-se neutra.
- O Cabeludo é o cara, mãe. O Zaca era sargento da PM, sabe como
é. Uma vez polícia, nunca vai deixá de ter aquela mentalidade de cana
- disse Juliano.
A neutralidade de Betinha era estratégica. Desde a separação dela,
Zaca vinha demonstrando interesse por ela. Mandava recado pelas vizinhas,
forçava encontros casuais quando ela saía para o trabalho ou voltava
para casa. Chegou a escrever uma carta em que manifestava o desejo
de um dia, “quem sabe”, pedi-la em casamento. Betinha gostava da forma
elegante de Zaca assediá-la, mas não demonstrava isso em respeito ao
namoro com o eletricista Edésio, um homem ciumento. Também mantinha
sigilo em casa, embora Juliano, alertado por Cabeludo, já estivesse
desconfiado.
- Que bagulho é esse do Zaca pra cima de ti, mãe? Ó, dá um chega pra
lá nesse alemão. Senão, já é, ó!
Os negócios com Carlos da Praça levaram Cabeludo a se aproximar
da família, o que representava mais um impedimento a um possível ro
mance de Betinha e Zaca. Cabeludo tinha outra motivação para freqüentar
o barraco da família, estava apaixonado pela filha de 17 anos, Zulá.
Mas as chances de romance eram nulas. Zulá tinha namorado e, assim
como o pai, não gostava do estilo extravagante dele. Anos depois, Zulá
também seria assediada por Zaca e teve um caso com ele, o que foi considerado
um insulto ao irmão. A repercussão do episódio aumentaria o
ódio entre as duas principais quadrilhas do morro e dividiria ainda mais
a família de Juliano.
As extravagâncias de Cabeludo eram derivadas do consumo de cocaína.
Longe das drogas, no universo restrito do crime, era um homem
generoso e solidário. Já antes de virar o chefe do tráfico, transferiu parte
do dinheiro roubado no assalto milionário à Casa da Moeda para os parentes
dos parceiros que morreram em combate. Sempre manteve o compromisso
de enviar dinheiro e drogas aos que estavam presos. Quando
não cheirava, gostava de passear pela favela na companhia de crianças e
de contar histórias curiosas de assaltos aos aposentados, que passavam
horas ouvindo sentados em frente aos barracos.
Uma grossa linha branca sobre o bigode mal raspado sinalizava quando
Cabeludo estava sob efeito de cocaína. Nesses dias ele virava outro
homem. As pessoas mais próximas sabiam disso e muitos o evitavam
para se proteger de suas atitudes imprevisíveis. Não era raro Cabeludo
ficar até três dias seguidos sem dormir, período em que tinha alucinações
e crises de desconfiança.
- Cuidado! O Cabeludo está doidão.
O aviso era uma espécie de senha dos jovens da quadrilha para evitarem
alguma agressão gratuita do chefe. Ele jamais se afastava da pistola
automática Eagle ou de sua “baby”, uma minimetralhadora Uzi sempre
escondida sob a camisa que usava para fora da calça.
Nos primeiros dias de serviço na boca, os jovens da Turma da Xuxa
perceberam o risco que a proximidade com Cabeludo podia representar.
Um dia sumiu o tênis que Cabeludo deixara tomando sol na janela do
barraco enquanto cheirava cocaína. Era um Nique, um falso Nike importado,
identico aos que estavam nos pés de parte da Turma da Xuxa,
que conversava perto da boca. Descalço, duas pistolas seguras em uma
só mão, Cabeludo saiu do barraco furioso e foi direto interrogar o grupo,
convicto de que o ladrão do tênis era um deles.
- Aí, é melhó confessando logo! - ameaçou Cabeludo.
O pessoal, assustado, pediu calma.
- Qualé que é, chefe. Na moral, aí! Nós somos da Turma da Xuxa.
- Turma da Xuxa é o caralho! Quero vê o pé de cada um. Levanta aí!
Todos levantaram o pé. Por sorte, a maioria não usava tênis com a
mesma numeração de Cabeludo, que calçava 42.
- Caralho. Só tem pé de moça e de boiola. E tu aí, negão?
A pergunta era dirigida a Du, o único que calçava 42. Embora naquele
dia estivesse usando chinelo, Cabeludo desconfiou dele.
- Tu roubô e levô pra casa. Estica o pé aí... Tá vendo, tá vendo? É do
tamanho do meu.
- Quê isso, Cabeludo. Aqui todo mundo é amigo, é a Turma...
- Turma da Xuxa é o caralho!
Cabeludo alternava momentos de extrema alegria e de profunda depressão.
Um simples sumiço de tênis num dia em que estava deprimido
podia conduzi-lo a crises extremamente graves. Era véspera do dia das
mães, o segundo em que Cabeludo passara a noite cheirando pó. Ele já
parecia conformado com a perda do tênis quando voltou para casa, onde
a mulher o esperava. Stela tentou convencê-lo a parar de cheirar, mas
não conseguiu. Ele continuou aspirando fileiras de pó madrugada adentro
e, pior, por vários dias seguidos. Apenas uma grande amiga sua, Maria
Brava, mulher do principal parceiro de quadrilha, Paulista, era aceita no
barraco onde se confinava. Um dia Juliano tirou proveito da sua função
de confiança da quadrilha para acompanhar a visita de Brava e pedir de
volta a pistola que emprestara a Cabeludo.
Era um dos dias de cheiração de Cabeludo, que estava havia quatro
dias sem dormir. Juliano o encontrou trêmulo, deitado num sofá, com
duas armas nas mãos e sem condições de conversar por causa da língua
travada pela coca. Cabeludo aceitou um copo de água, servido por Brava,
que dava conselhos.
Embora tentasse continuar cheirando, não tinha forças nem para aspirar
o pó espalhado numa bandeja sobre a mesa. Mesmo assim, Juliano
teve medo de uma possível reação de Cabeludo se pedisse a ele a pistola
de volta. Ficou tão impressionado com a decadência física de seu ídolo,
que decidiu, naquele dia, nunca se envolver com o consumo das drogas
que vendia, com exceção da maconha.
Juliano foi embora e deixou de presente para Cabeludo um cigarro
grosso de maconha, com a esperança de que a droga o ajudasse a sair da
crise de overdose de pó.
O dia amanhecia quando Cabeludo saiu de casa aos prantos, carregando
no colo uma loira de cabelos longos, que quase encostavam no
chão. Desceu o beco das Promessas e parou no largo do Cruzeiro com
Stela nos braços, com três tiros no peito, morta. Ninguém ousou perguntar
o que havia acontecido com a “rainha”, como ele costumava chamá-
la. Nem precisava.
- Stela, Stela. Te matei, meu amor, te matei! - gritava Cabeludo com
a mulher nos seus braços.
Depois da morte de Stela as crises depressivas de Cabeludo, agravadas
pelas desavenças com Zaca, se tornaram mais freqüentes. Zaca
aproveitou para conquistar adeptos ao seu comando. Passou a agir para
expulsá-lo do morro. A campanha durou meses e culminou com uma
assembléia para Zaca discutir com a comunidade o afastamento dele.
Cabeludo não fora avisado. Da Turma da Xuxa, apenas Du e Juliano
estavam presentes à assembléia desde o seu início, quando a maioria dos
participantes era pessoal do Zaca. Já em plena discussão, todos foram
surpreendidos pela chegada imprevista de Cabeludo.
A assembléia imediatamente virou um debate entre Zaca e Cabeludo,
que começou agressivo:
- Aí, tu é cachorrão! - disse Cabeludo.
- Manera, Cabeludo - respondeu Zaca.
- Tu é viado, cuzão, arrombado!
- Manera, Cabeludo. Tem mulhé na área.
- Então é o seguinte: madames fora. Só quero dá uma idéia pra bicho
homem.
- As mulheres se retiraram. - Vamo vê quem é bandido bom aqui, rapá
- afirmou Cabeludo.
- Quem é bandido não fala que é bandido. É otário - provocou Zaca.
- Ofende a malandragem, não. Tu é amigo de polícia, rapá!
- Sô mais assaltante que você.
- O quê? Enquanto eu mandava hotel de luxo, mansão da Barra, restaurante
de bacana, tu dirigia Patamo da PM. A tua é camburão, rapá.
- Quem gosta de polícia é você... Quem é que te salvô do linchamento
naquele assalto da Atlântica? Pediu por amor de Deus para não sê morto,
qual é? Pensa que sô otário?
- E o dinheiro da cadeia? Tu faz o acerto com os canas e esquece os
parceiros que tão lá no sofrimento...
- Tu só pensa na bandidagem... Enquanto a gente batalha pra vendê,
tu fica aí curtindo uma, distribuindo pó de graça...
- E o movimento quem faz? Esse morro tava morto! E agora vende
mais de um quilo por dia. Tá reclamando do quê?
A discussão acabou quase numa declaração de guerra. Por interferência
dos adeptos de cada lado, depois de muita insistência, Zaca e Cabeludo
concordaram em pedir a mediação do antigo dono do morro, Pedro
Ribeiro, que continuava preso.
Da cadeia, depois de ouvir os dois lados, Pedro Ribeiro escreveu uma
carta em que propunha a divisão do poder: cada um ficaria responsável
pela gerência de dois pontos do morro. Lembrou aos dois que o comando
deles era provisório, não passava de um reforço ao verdadeiro dono
do morro na sua ausência temporária, o seu herdeiro Perereca. Nenhum
dos dois gostou das ordens de Ribeiro. E as diferenças se radicalizaram
quando Cabeludo sofreu uma emboscada.
Um tiro no peito, dois na barriga, uma semana na UTI, dois meses
de recuperação na enfermaria. Muitas pessoas viram Perereca atirar em
Cabeludo durante uma discussão motivada pelas ordens de Ribeiro que
ele não queria obedecer.
A vingança veio em dobro. No mesmo dia em que saiu do hospital,
embora ainda debilitado pelas cirurgias e perda de muito sangue, Cabeludo
avisou ao seu grupo que voltara para se vingar.
- Espera um pouco mais, Cabeludo. Tu ainda tá fraco, perdeu muito
sangue - aconselhou Luz.
- Pra apertá o gatilho ninguém precisa de força-respondeu Cabeludo.
Ele esperou uma ocasião em que Perereca estivesse próximo de Zaca.
Foram duas rajadas de metralhadora a menos de três metros. O inimigo
caiu morto ao lado de seu rival, que apenas observou a cena, sem nada
comentar. Cabeludo se afastou ainda furioso e declarou guerra.
- Voltei pra mostrá quem é o cara deste morro! Quem vai encará? -
disse ele numa afronta a Zaca, que ficou em silêncio. Na mesma semana,
em novo ataque de fúria, Cabeludo resolveu acertar as antigas desavenças
com os policiais que circulavam pela favela em busca das propinas
oferecidas por Zaca. O primeiro “acerto” foi com um policial civil, o
Chuvisco, que fora matador de criminosos e integrante do grupo de um
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