conhecido investigador da polícia do Rio, Mariel Mariscot.
Flavinho assistiu ao ataque bem de perto. É que o pai dele, ZéMeuFi,
era o dono do Barraco da Ronda, um dos dois tradicionais pontos de jogos
de cartas do morro. O policial estava sentado à mesa, participando do
jogo, quando Cabeludo chegou ao barraco decidido a desafiá-lo.
- Aí, Chuvisco, lembra de mim? - perguntou Cabeludo.
- Emilson dos Santos Fumero, o Cabeludo! Beleza? - respondeu Chuvisco.
- Ganhando todas?
- Só diversão, só diversão!
- Ué?Tu não gosta de dinheiro, Chuvisco? Tô na parada, quanto vai?
- Dinheiro pouco, já estou de partida...
- Estô aqui, não quero nem sabê quanto é. eu quero é dobrá. Dobro!
Diante da aposta de Cabeludo, alguns homens levantaram da mesa.
Chuvisco também ameaçou ir embora.
- Tu, não. Tu tem que ficá... Tu gosta de dinheiro que eu sei... Lembra
quando tu me prendeu? - perguntou Cabeludo.
- Te livrei de uma cana dura, você tá reclamando do quê? Vou apostá
mais uma rodada só - disse Chuvisco.
- Vou recuperá aquela grana que tu pegô de mim. Mas na aposta, aí!
A primeira aposta foi vencida por Chuvisco, assim como a segunda,
a terceira... Na quarta, Cabeludo, já sem dinheiro, colocou uma corrente
de ouro sobre a mesa.
- Pra mim chega, Cabeludo. Fica com teus amigos aí-disse Chuvisco
- Que negócio é esse, Chuvisco... Tu vai me respeitá não?
- Acabou! Tu tá sem dinheiro, acabou.
- Tu tá vendo a corrente aqui, rapá... Isso aqui é ouro puro, rapá!
- Fica com ela...
- Isso aqui roubei de um bacana, um ricaço. Tu tem que levá isso de
mim. Tu é polícia ou não é polícia?
Forçado a mais uma aposta, Chuvisco venceu de novo e antes de pegar
a corrente da mesa tentou convencer Cabeludo a parar de jogar.
- Sem essa de jóia. Me paga a dívida depois. Amanhã eu volto e a
gente continua, não é, pessoal?
Silêncio no barraco. Apenas ZéMeuFi continuava ali perto dos dois
quando Cabeludo fez o último desafio. Pôs a pistola automática sobre a
mesa.
- Tu acha que eu sou homem de levá dívida pra casa?
- Qualé que é, Cabeludo?
- Seguinte, Chuvisco. Tu tá ganhando todas... Acho bom tu ganhá a
pistola também, aí!
Chuvisco perdeu.
A notícia do assassinato de Chuvisco chegou ao amigo dos policiais,
Zaca, como se fosse uma declaração de guerra de Cabeludo. Os combates
só iriam começar depois de dois meses, período em que se dedicaram
a reforçar as quadrilhas com armas e munição. O velho Pedro Ribeiro
ainda tentou evitar o pior, mas ele próprio desistiu ao ser informado de
que Cabeludo, que tinha 32 anos, estava assediando uma sobrinha de
Zaca, uma menina de 13 anos. Já cercados por seus bandos armados, os
dois tiveram um último bate-boca no meio da favela.
- Você é estuprador de criança, Cabeludo - acusou Zaca.
- De adulto também! E agora vou comê o teu rabo, Zaca! - respondeu
Cabeludo.
Ninguém soube quem deu o primeiro tiro de AR-15 na maior guerra
urbana da história do Rio de Janeiro.
CAPÍTULO 7 BONDE SINISTRO
O bonde é do espelho,
o gato é preto.
a chapa é quente
e o Comando é vermelho!
Mas se o gato passar,
não se assuste, não.
Se a chapa esquentar,
é pra dançar, meu irmão!
(Funk proibido)
A preparação do bonde de guerra foi um momento de orgulho para
os homens convocados por Cabeludo, prova de que ele estava prestigiado
entre os criminosos de peso do Rio de Janeiro. O ponto de encontro foi
o sítio emprestado por um pagodeiro rico, no Recreio dos Bandeirantes.
Os convidados eram antigos parceiros de assalto, que ao longo do ano
freqüentaram as bocas da Santa Marta em busca da cocaína pura e farta
e da oportunidade de cruzar com sambistas famosos nas festas que pareciam
sem fim.
A guerra declarada contra Zaca poderia representar o fim do ponto de
encontro que se tornara obrigatório, uma referência de diversão na vida
deles. O pessoal da velha-guarda sabia que o risco era enorme. Havia meses
o inimigo vinha se armando para ser o único dono do morro. Então,
em 1987, tinha o apoio de parte da comunidade, além de alianças com
os policiais militares, acusados de receberem propinas diárias. Alguns
policiais civis também estavam do lado de Zaca para vingar o assassinato
de Chuvisco.
Os jovens que nunca haviam participado de um bonde não escondiam
a ansiedade. Da Turma da Xuxa, se apresentaram no sítio Mentiroso,
Juliano, Mendonça, Claudinho, Flavinho e Du. O grupo passara a tarde
discutindo se deveria ou não se envolver na guerra. A maioria preferiu
ficar de fora.
Soni alegou que a mãe doente estava precisando de companhia. Ten
tou convencer o amigo Flavinho a desistir também, mas não conseguiu
por causa da pressão de Juliano, que demonstrava entusiasmo com a convocação
e começava a tomar para si o papel de liderança numa área que
era novidade para todos.
- De todos, você é o mais esperto, Flavinho. É o mais inteligente do
nosso grupo - disse Juliano.
Flavinho estava com vinte anos, havia dois que trabalhava como taxista.
Tinha fama de bom piloto porque era um dos únicos que sabia
dirigir, num morro onde carro não circulava. Ele ensinou as primeiras
técnicas de direção ao amigo Careca, que estava fazendo teste para ingressar
numa empresa transportadora no Engenho de Dentro.
A decisão mais difícil foi a de Renan. Nos últimos dois dias passara
horas treinando tiro dentro das valas de esgoto do morro. O seu instrutor
era também um iniciante, Juliano, que acabara de comprar uma pistola
semi-automática de Carlos da Praça. Para reforçar o exército de Cabeludo,
Da Praça entregou a Juliano algumas armas para serem distribuídas
aos amigos da Turma da Xuxa.
- Um trezoitão! É o bicho! - disse Renan ao receber o revólver calibre
38 das mãos de Juliano.
Renan manifestara o desejo de mudar de vida pelas armas. Tinha
grande respeito pelo pai, mas não queria repetir a sua trajetória de honestidade.
O pai, marceneiro, trabalhava numa fábrica de brinquedos em
troca de um salário que o condenou a 20 anos de vida no morro, sem
possibilidade de comprar uma casa, um carro nem propiciar lazer para
a família. Passou toda a infância sem poder ir ao cinema ou freqüentar
um clube, nem conhecer um parque ou qualquer cidade fora do Rio de
Janeiro.
Tornara-se muito amigo de Paulo Roberto e seus irmãos, que naquele
ano de 1987 estavam praticando assaltos longe do morro. E o convidaram
a fazer parte da quadrilha.
Embora os amigos tivessem tido uma realidade semelhante, Renan
demonstrava maior frustração porque aprendera a ser ambicioso com o
tio. Depois de anos de insistência, Cabeludo finalmente lhe dera uma
chance de entrar para a vida do crime. Mas ao ganhar o primeiro revólver
a insegurança do adolescente de 17 anos o levou a recuar. Queria usar
uma arma sim, mas em assalto, como fazia o tio Cabeludo, e não numa
guerra, onde poderia matar ou morrer. Por isso, na hora de ir para o encontro
no sítio do Recreio dos Bandeirantes, Renan sumiu do morro sem
explicar que o motivo era medo.
Du também estava amedrontado, mas não tivera coragem de assumir
a insegurança no meio da turma. Muito menos agora à meia-noite, na
casa do Recreio dos Bandeirantes, onde os homens de várias quadrilhas
não paravam de chegar. Os únicos que pareciam à vontade eram Juliano,
Mendonça e Claudinho. Manifestavam orgulho por conhecer histórias
de outras quadrilhas e mostravam isso aos amigos, que ainda não sabiam
quem era quem entre os criminosos veteranos.
Uma caravana de Monzas e Santanas entrou em velocidade e levantou
poeira na pequena rua de terra. Alguns brecaram, arrastaram os pneus
em frente ao sítio, onde o pessoal estava reunido.
- Caralho! Cada carrão... são do morro da Mineira reforçando o Cabeludo!
- disse Juliano aos amigos Careca e Du.
Em seguida as atenções se voltaram para a chegada de um carro de
luxo, um Miura vermelho, com uma loira ao volante. Ao lado dela, uma
surpresa da noite.
- Caralho! O Ronaldo Maldição, não acredito! Ele acabou de mandá
a Casa da Moeda... está forrado na grana - disse Mendonça.
O Miura era, em 1987, o carro preferido dos jogadores de futebol e de
playboys, e custava o equivalente a 50 mil dólares. Era o primeiro investimento
de Maldição com o dinheiro roubado no assalto à Casa da Moeda
do Rio de Janeiro. Mantivera as cédulas enterradas durante meses e,
por coincidência, no dia em que usou o dinheiro para comprar um carro
zero quilômetro o parceiro de assalto Cabeludo precisava de ajuda para
a guerra. Maldição passeara à tarde com o carro novo, em companhia da
loira, a mulher com quem tinha dois filhos. À noite, na hora da despedida,
todos ouviram Maldição combinar um programa com a mulher.
- Leva para a garagem. Quando acabá esse rolo aqui, a gente passeia
com a família.
A cada homem que chegava, Juliano se entusiasmava.
- Olha só quem acaba de chegar! Orlando Jogador, frente do Complexo
do Alemão. Esse é rei!
Chamou a atenção de Juliano o estojo de couro preto pendurado ao
ombro de Orlando.
- É a mala do famoso 762 do Jogador, parceiro! - disse Juliano, se
referindo ao fuzil K-762, então uma novidade nos morros do Rio de Janeiro.
Mais um fuzil ainda estava por chegar. Era aguardado com grande expectativa
não só pelo seu poder de fogo. Quem recebeu a missão de buscá-
lo foi Mentiroso, por ordem do patrão Carlos da Praça, que usou sua
influência como atacadista de pó para atrair ajuda dos morros amigos. No
começo da noite, ainda na Santa Marta, Da Praça mandara Mentiroso em
missão secreta para a Rocinha, favela de 200 mil moradores, a maior da
América Latina.
- O Bolado te espera exatamente às nove da noite. Vai atrasá um minuto,
não, aí!
- O Bolado,o chefão da Rocinha? Tem certeza que ele vai me recebê?
Mentiroso obedeceu a todas as recomendações para ser bem recebido
pelos traficantes da Rocinha. Chegou de táxi, com as lanternas e as luzes
internas acesas e os faróis apagados. Parou na rua 2, perto do largo do
Boiadeiro, o centro do comércio da comunidade. Dali seguiu a pé pelas
vielas, acompanhado por um cicerone.
Um menino de uns 13 anos o levou à parte alta do morro, onde estava
a cúpula formada pelos traficantes mais conhecidos do Rio em 1987:
Naldo, Cassiano, Brasileirinho e Bolado. A imagem dos donos da Rocinha
era familiar a Mentiroso. Por isso, foi direto falar com Bolado, já o
conhecia pelas fotos dos jornais.
- Aí, comandante. Estou na missão do Carlos da Praça - disse Mentiroso.
- Avião do Da Praça?
- Avião, olheiro, depende do dia.
- Aí, conhece esse bichão aqui? - perguntou Bolado, mostrando uma
arma com aspecto de nova.
Era um fuzil de fabricação americana, versão civil do fuzil de guerra
M-16, a coqueluche dos soldados do tráfico, o AR-15. Mentiroso nunca
tinha visto nada igual nem parecido, mas para mostrar que era merecedor
de confiança, tangenciou a resposta.
- Lá no quartel eu vi muita coisa parecida. Servi um ano e meio.
- Então tu sabe atirá de fuzil?
Mentiroso novamente nada respondeu. Atento à demonstração feita
por Bolado, não teve dificuldades para repetir os procedimentos básicos.
Primeiro, o engate de uma barra de ferro retangular, o carregador de munição
com vinte cartuchos. Depois, um movimento brusco, o puxa-empurra
de uma manivela, para levar a bala até a agulha que desencadeia o
disparo.
- É isso, não é? Tá engatilhado - disse Mentiroso.
- É isso. É isso. Tem um pouco de munição aqui também. No automático
tem que maneirá. Melhor usá essa posição aqui, disparo.
- E munição pesa demais na mochila - complementou Mentiroso.
- Avisa lá no Recreio que vô manda a carga grande de munição direto
para o pico do morro, numa Kombi. Vai chegá lá pela subida de Laranjeiras.
Não esqueça, Kombi branca.
Juliano estava ansioso com a demora, quando Mentiroso chegou de
volta ao sítio do Recreio dos Bandeirantes. De repente, os jovens que até
então só eram notados por causa dos pêlos pintados de loiro tornaram-se
o centro das atenções por causado AR-15. Queriam conhecer a novidade
e alguns homens, impressionados, perguntavam se eles eram chefes de
algum morro. Mentiroso e Juliano aproveitaram para ganhar pontos com
os veteranos. Apresentaram a arma aos curiosos como se fosse de uso
rotineiro deles.
- Setenta e cinco disparos por minuto - disse Mentiroso.
Juliano exagerou ainda mais.
- Por minuto, não. No automático bate 300 por minuto!
O sucesso da apresentação do AR-15 entusiasmou Juliano, que não
desgrudou dela até a hora em que o chefão chegou ao sítio para organizar
a partida do bonde. O visual de Cabeludo era especial para a guerra.
Os cabelos foram cortados, mas continuavam longos, cobrindo as orelhas
e parte do pescoço. Vestia jeans, bota de cano curto e duas faixas
de couro cruzadas sobre o peito nu, carregadas de projéteis. Levava a
minimetralhadora presa ao cinto. Desceu apressado de uma Brasília e
imediatamente foi cercado pelos homens que estavam aglomerados em
frente à entrada do sítio. Ele abriu o capô dianteiro do carro para mostrar
o material de ferro enviado pelos amigos dos morros Turano, Salgueiro
e Borel.
Juliano percebeu que as armas começariam a ser distribuídas e se
aproximou de Cabeludo com o AR-15 nas mãos, manifestando sua pretensão.
- Eu já tô com a minha pronta, chefe. Pode sê?
- Aí ô cara, ó! Tu ainda tem que comê muito feijão, moleque. Me dá
esta jóia aqui!
Juliano não teve tempo de se lamentar. Logo que tirou o AR-15 de
suas mãos, Cabeludo prestou uma homenagem aos traficantes que enviaram
a arma, disparando com o novo fuzil para o alto.
- Viva a Rocinha!
Cabeludo passou o AR-15 para um guerreiro experiente, parceiro inseparável
de seus grandes assaltos, o mulato de cabelos castanhos encaracolados,
que era nordestino, mas tinha o apelido de Paulista.
- Conheço melhor guerreiro, não. Senta o pipoco neles, Paulista. É a
arma secreta, caralho!
Uma espingarda calibre 12, cano curto, duplo, foi parar nas mãos suadas
de Mendonça, que jamais havia empunhado, sequer visto, arma tão
pesada. O suor frio das mãos e do rosto revelaram o seu desespero.
- Aí, Juliano, vê se descola um revólver. Qualqué um, vô me adaptá
melhor.
Juliano compreendeu o desespero de Mendonça, e ofereceu a ele sua
pistola em troca da espingarda.
- Pega essa aqui. Sem arma não dá para ficá. E se cruzá com os
homi?
Du e Claudinho receberam um revólver. Flavinho ganhou quatro cilindros.
- Manjam? Granada americana. É só puxá este pino e atirá no meio
do Zaca - explicou Cabeludo.
Os homens estavam posicionados nos carros enquanto aguardavam
a ordem de partida do comandante, que na última hora resolveu reunir
alguns deles atrás da casa de alvenaria do sítio, à margem de uma piscina,
para os rituais religiosos de guerra. Cabeludo acendeu três velas e rezou
para pedir proteção a São Jorge, o santo dos guerreiros.
- Vambora. Deus nos espera lá no morro!
Eles partiram em fila, mantiveram uma distância não superior a cinco
metros entre os veículos. Eram dez carros e duas Kombis, com mais de
50 homens armados. No mínimo um fuzil ou metralhadora estava como
parceiro sentado no banco da frente de cada veículo. Eram duas da madrugada.
Avançaram devagar pela avenida à beira-mar. “Puxava” o bonde
o carro onde estava Mendonça, na função de escudo do chefe Cabeludo,
sentado no meio deles, no banco traseiro. O segundo carro era chefiado
por Paulista, que tinha Du em sua companhia. No terceiro, estavam Mentiroso
e Juliano, sentados no banco traseiro, com Flavinho ao volante e,
ao lado dele, Orlando Jogador. No carro de trás, Claudinho era o auxiliar
de Maldição. Todos estavam tensos, preocupados com a possibilidade de
cruzar com a polícia no caminho. Entraram no viaduto construído junto
ao paredão da montanha, sobre o oceano Atlântico, cenário que impressionou
Juliano.
- O Rio de Janeiro à noite é a segunda cidade mais linda do mundo!
- ele disse.
- Qual é a primeira? - perguntou Jogador.
- O Rio de Janeiro em dia de sol!
Passaram pelo lado da Rocinha. Seguiram pela avenida Niemeyer,
um caminho estreito e sinuoso que cortava a beirada do morro do Vidigal
a 50 metros do nível do mar. Chegando ao mirante, eles viram lá embaixo
uma viatura da polícia, na calçada da praia do Leblon. Embora de mão
dupla, a avenida era estreita para uma manobra de retorno. Era provável
que a caravana já tivesse sido vista. O jeito era seguir em frente e se
preparar para um possível confronto. Jogador pôs o bico do fuzil para
fora da janela. O primeiro carro, o de Cabeludo, também mostrou o cano
da metralhadora. Atrás dele, estava Paulista, já com o alvo inimigo, um
fusca azul e branco, na mira da sua AR-15. Flavinho reduziu a marcha do
Santana para ganhar maior aderência no asfalto.
O fúsca da Polícia Militar estava estacionado sobre a calçada, à esquerda
de quem estivesse descendo a avenida Niemeyer. Dentro dele,
a dupla de soldados que observava a aproximação da caravana armada
ligou o motor do carro, e se afastou de ré, para não enfrentar o bando com
muito mais homens e armas. Deu uma ré para se proteger atrás de um
paredão do posto, na área de lavagem de carros. Com o caminho livre, o
bonde passou direto e aumentou a velocidade rumo à guerra.
- É o bonde sinistro! - grita juliano ao perceber que o perigo havia
passado.
No barraco da família de Juliano, a mãe, Betinha, e as duas irmãs,
Zuleika e Zulá, estavam preparadas para a guerra. Foram instruídas por
ele a reforçar com móveis a segurança da porta e das duas janelas de
madeira, e à noite apagar as luzes, ficar em silêncio. As irmãs não deram
importância às recomendações. Assistiam televisão enquanto discutiam a
opção que Juliano fizera na guerra, a de lutar no exército de Cabeludo.
- Ele está certo.O morro está bem graças ao Cabeludo-disse Zuleika.
- Bem por quê? Só tem festa cheia de bandido. O resto é a mesma
miséria, um lixo só, rato, piolho, mosquito... - protestou Zulá.
- Pelo menos o dinheiro está começando a chegar. Não só nas festas,
não. Veja o movimento na birosca do papai.
- Graças ao Zaca, que está dando a maior força aos nordestinos. E
agora vem o Juliano e vai lutar logo contra quem, o Zaca! Papai vai ficar
uma fera!
A discussão acabou quando as irmãs ouviram o som dos primeiros
tiros.
- Meu Deus! Será que acertaram o meu irmão? - perguntou Zuleika
pra mãe.
- Se acertaram, melhor. É bom para aprender a não se meter onde não
deve - retrucou Zulá.
A mãe também ouviu os tiros, mas não acreditou que a guerra estivesse
começando.
- Pra mim, isso é barulho de fogos. Tem alguém comemorando atrasado
a festa de São João.
O grupo de Juliano tinha acabado de sofrer uma emboscada quando
avançava em direção ao pico. O exército de Cabeludo dividiu-se em dois.
Uma parte chegou à Santa Marta pelo bairro de Laranjeiras, subindo de
carro a rua de paralelepípedos que levava direto ao pico sem passar pela
favela. Os outros invadiram por baixo, pelo lado de Botafogo, espalhados
em cinco bondes com dez homens ou mais.
No comando de cada grupo, guerreiros experientes. Os voluntários
que vieram de outros lugares eram conduzidos pelos becos escuros da
Santa Marta por um cria, adolescentes e jovens que nasceram ou se criaram
na favela, como Juliano VP, Mentiroso, Du, Mendonça e Claudinho.
Era o cria que puxava o bonde.
Mentiroso seguiu à frente do grupo de Paulista. Além de orientar quais
os melhores becos de subida, levava uma mochila cheia de carregadores
de AR-15. Também era dele a tarefa de abastecer Paulista de munição na
hora dos combates.
Juliano era o cria do bonde de Orlando Jogador. Além de Jogador, estavam
com ele Du e mais sete voluntários da Rocinha. Entraram na favela
pela escadaria, pelo lado de Botafogo, e seguiram pelas vielas. Avançaram
devagar para não serem surpreendidos pelo inimigo. Os caminhos da
favela eram íngremes, cheios de curvas e em alguns pontos tão estreitos
que não dava para passar mais de duas pessoas lado a lado. Por isso, na
maioria dos becos, durante o dia, o campo de visão não ia além de cinco
metros. À noite a visibilidade era quase zero. Naquele ano de 1987 havia
apenas doze pontos de iluminação pública na favela de 10 mil habitantes.
Menos de um ponto de luz para cada mil moradores. Numa madrugada
de guerra, esses raros pontos iluminados, como no botequim Salgadinho,
eram vulneráveis para quem parasse embaixo deles. Juliano ainda tentou
se prevenir.
Atirou-se ao chão para cruzar a área se arrastando. Todos do seu bonde
fizeram a mesma coisa. Mas no meio da travessia foram surpreendidos
por uma rajada de metralhadora, seguido de tiros de muitas armas diferentes.
Era a emboscada de Zaca.
- Acerta a lâmpada, a lâmpada!
A ordem veio de Orlando Jogador, que conseguiu se arrastar até a
escada de alvenaria de um barraco. Juliano, que estava a uns três metros
do poste de iluminação, tentou acertar a lâmpada com tiros de espingarda.
Errou, trocou de arma, pediu ajuda a Du, que estava paralisado, de
bruços, tentando proteger a cabeça com as mãos.
- Atira também, Du, senta o dedo! - gritou Juliano.
Juliano girou duas vezes o corpo e parou junto ao poste. De costas
para o chão, com os dois braços esticados à frente para melhorar a ponta
ria, ele disparou a pistola com as duas mãos. Conseguiu quebrar o vidro
da lâmpada de mercúrio, mas ela continuou acesa, com o miolo intacto.
Claudinho, que já estava ao lado da grande pedra, tentou dar cobertura.
Disparou o revólver para cima, pois não tinha a menor idéia de onde vinham
os tiros. Ao ver Juliano em apuros, Du se arrastou para o lado dele,
com a pistola automática. Mesmo disparando juntos não conseguiram
atingir o miolo da lâmpada, que acabou estraçalhado pelo tiro de Orlando
Jogador.
A área do Salgadinho, a birosca que em dias normais vendia refrigerantes
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