Nessa procura pelo sentido e pela manifestação da vida nos seus elementos da verdade, novos caminhos devem ser desbravados e descobertos: Depois de tudo, / aprendi que o caminho / se nivela / entre a fivela / e o velar / das sepulturas. / Aprendi que meu caminho / é sempre raso, / no mero acaso / e profundezas das alturas. Ao percorrer essa estrada austera, marcada pelo rigor das situações difícies, o “eu” lírico vai aos poucos se convencendo dessa ação dura e resistente, e que é preciso moldar-se ao mundo. Percebe ainda mais seu natural isolamento, e que a vida é feita de incerteza e solidão: Por ser incerto,/é um deserto o meu caminho/de multidão –/se mais não fica,/tanto acredita/no seu caminho de solidão!
Esses caminhos tortuosos provocam angústia e a consciência de aniquilamento e descrença absoluta. O poema “Que de Tão Surdo” (p. 33) manifesta esse estado de grande inquietude do ser: Pus meu canto no meu enterro/e suas figueiras de alumínio, /sabendo que a Vida/(além do Tempo)/viaja em seu tormento.//Embora sempre vivo, /pus meu canto/(quase torto)/entre a cova e seu morto.
Essa angústia, ou atitude do homem em face de sua situação no mundo, apresenta-se como um “Funeral de um Corpo Vivo” (p.39):
Encaixotado
no casulo de si,
meu corpo
faz o horto
a cantiga
de um sofrê
que de tanto
estar morto
só é vida
num funéreo
canto aéreo
de viver!
(p. 39)
O sentido filosófico do termo angústia foi introduzido por Kierkegaard (1813-1855) em Conceito de angústia (1844). A raiz da angústia é a existência como possibilidade e, ao contrário do temor e de outros estados análogos, que sempre se referem a algo determinado, a angústia não se refere a nada preciso: é um sentimento puro da possibilidade. O homem vive da probabilidade, uma vez que está continuamente debruçado no futuro. Porém, aquilo que pode ser, não garante nada e o futuro pode ser uma ilusão, com exceção da morte, que sempre será líquida e certa. Daí, o homem viver sempre num contínuo funeral de um corpo vivo, marcado por angústia, possibilidade, sonho, realidade e morte.
Por outro lado, Sartre assinala que “o homem se descobre na angústia” (1973, p.17). Por esse motivo, surge a necessidade do “eu” poético admitir seu canto angustiado e nele realizar a presentificação de sua dura realidade, travando, para isso, uma luta consigo mesmo. Nessa luta corporal, mais do que exteriorizar os problemas reais, a arte desse vate conquista a essência da poesia, atravessando a espinhosa passagem para o poético.
Livro das Denúncias
No centro deste novelo poético encontramos três livros: “O Livro das Denúncias”, “O Livro dos Dias” e “O livro da Esphinge”. O primeiro livro, com o subtítulo “Flautins do Desencanto”, sugere o tom pessimista dos versos e é composto por sete poemas: “Tanto bate até que pedra” (p.43), “Canção americana” (p.47), “Face de fel” (p. 51), “Poema rosado” (p.53), ”Um homem” (p.55) e “País do carnaval” (p.57), em cujos poemas, o verbo poético defende, antes de tudo, a vida e denuncia “A fome comendo bocas desesperadas/ crianças nas ruas assassinadas: tudo pode, / quando basta o destino: a pátria usurpada. (p.34/44). A “Canção americana” anuncia que Alguma flor / liberdade triunfal / morre na América. / (...) Algum direito/e por que não justiça / e por que não amor / morre na América. Este texto põe em evidência a face dos poderosos e a espora do Cawboy! (p.50). E os versos de “Face de fel” concluem: A face, / essa mesma face de sempre / face e (al) face da dor, / põe-se à mesa de sua face / acesa: fel! (p.51/52).
Já foi dito que a obra de arte possui dupla face, uma que designa a si mesmo, enquanto discurso literário, interrogando-se à presença material de discurso; outra, que interroga o mundo tornando presente uma realidade, uma ação como foi poetizada em “Tanto Bate até que Pedra”. Neste poema o arco e a lira seguem a mesma direção: noticia, desvelando os secretos sons agudos das desilusões. Como martelo, o pensamento vai batendo nas pedras do espírito. Cada verso do poema representa uma batida aguda e dolorida nas dificuldades da existência:
A cada dia amanheço desesperado;
e no peito o fogo
infunde o medo: estuporado.
A cada dia
o dia se me torna turvo, laminado:
e da lâmina fulge fosco
o desespero: cromado.
Vislumbro na paisagem
o suicida e seu corpo cacosmil: tanto fura
quanto bate,
nestas águas,
a miséria do Brasil (p.43)
Os versos seguem o ritmo do martelo que, metafisicamente, alerta para uma triste realidade: A fome comendo bocas desesperadas,/crianças nas ruas assassinadas: tudo pode,/quanto besta o destino: a pátria usurpada./A cada dia amanheço,/com a insônia e o tropeço,/“une saison em enfer”,/nestes brasis,/neste poço,/desse político que, quanto muito/mais quer: tanto bate e sempre USA,/“une saison em enfer”.//E no peito o fogo infunde o medo,/no seu jeito flagelado/das quimeras: tudo pode a cada dia o labor,/.na paisagem das favela.
Otávio Paz em O Arco e a Lira (1982) expõe sobre a propriedade que tem o discurso literário no desvelamento das dores do homem: “A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente” (p. 15). Este texto em estudo também explicita que: Tudo pode a palavra, / bem mais pode, no falar, o som de ser; / a cada dia me penso mais perdido / no achado de viver.
De fato, o poema martela sobre o sentido. Com seu rio de signos abre visão, música, símbolo e, “é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. (...) Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana” (Otávio Paz, 1982, p. 15/16). O poema, de fato, desperta, anima, aviva e excita os sentidos e o raciocínio, “bate tanto até que pedra”, isto é, até que uma ideia seja fixada na memória da humanidade:
A cada dia a moenda,
o martelo,
são libelos (cogumelos),
pátria-mil: tanta água até que bate,
e sempre pedra: nunca acaba
a miséria do Brasil.
Nunca acaba, nunca rompe,
sequer da trama desenlaça
um fio seu: tudo pode, nesta pátria, o achado
do que nunca se perdeu!
(p.44)
Como foi representado na alegoria da Caverna em A República de Platão, este mundo que é como uma caverna, onde os homens se encontram acorrentados de modo a não ver os objetos projetados nas paredes: a única realidade que conhecem, continuidade de vagas imagens e de palavras escolhidas ao acaso para designá-la. Mas, se um prisioneiro conseguir escapar, ele verá que há objetos para além de suas sombras, perceptíveis por meio de sentidos e sobre os quais se podem formular opiniões. Um pouco, o fugitivo já pode ver a claridade da luz que vem da entrada da caverna, que o ofusca no início, mas que, aos poucos, lhe permite conhecer melhor a realidade. A última etapa situa-se fora da caverna, onde o sol brilha em todo o seu esplendor, eliminando a verdadeira realidade formada de ideias, das quais a mais importante é o Bem. Mas a viagem do fugitivo não termina: ele não pode deixar de praticar o Bem. Por isso, deve voltar à caverna, a fim de organizar os que lá ficaram, de acordo com o modelo ideal, mesmo que seja incompreendido e, em última instância, ser até assassinado.( Cf. Platão s.d.)
O poeta corre tal perigo uma vez que, tendo convivido com o mundo ideal, sente o desejo de transmitir ao mundo de sombras o belo e o bem banqueteado na sua passagem pelo poético:
A pouca pátina do trigo,
sombra corrupta a todo lado
(e no Senado),
quem de lumen ofusca a vista,
quem dos olhos é ofuscado,
deixa sempre a cegueira
do insano e seu escuro: tanto bate
até que pedra o país, o futuro.
A cada dia amanheço
num diamante tão falso: pedra-pomes
de um brilhante, sua queda – cadafalso.
(...)
(p.45)
O artista da palavra é esse filósofo moderno que sai das sombras da realidade pétrea, severa e encontra a luz do poético. Depois do embate, entre a luz e as trevas, ele volta à superfície, à sombra do mundo real e dá seu grito, sua vitória verbal que é o seu poema. Seu texto literário valerá como um quadro, uma canção ou uma tragédia. Não interessa a forma e sim, a criação que se ergue iluminada. “O poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem. O poema é o organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma e substância são a mesma coisa”. (Otávio Paz, 1982, p. 17). Diante desta assertiva, pode-se afirmar que o poema em análise tem na sua origem uma multiplicidade de formas: épica, lírica, dramática que se consubstanciam num todo chamado poesia. Neste conjunto de formas, está o humano demasiadamente humano de um texto que mergulha no ser e exprime verdades que precisam ser ditas e consertadas e por isso grita: de muito pensar em seu conserto / me fiz pelo acerto de assestar: se tanto bate / até que pedra, alguma dor extinguirá? / Mais uma vez amanheço desesperado, / pendurado num inflacionar de pele e osso, / que de pedra tanta pedra até encena / a corda no pescoço! / (E era uma vez um país do futuro: / assim estava escrito no muro.).
Do espírito revolucionário, nasce a “Canção Americana” (p. 47 / 50): Alguma flor / liberdade triunfal / morre na América. / Algum sorriso / senão sorriso / se não viver / morre na América. / Alguém que não ditador / que não imperialista / morre na América. Esta canção ressoa, não morre na América, porque o poema é universal e seu canto percorre o mundo, não fica limitado num tempo ou espaço. O texto literário possui uma extensão tridimensional ilimitada ou infinitamente grande, que contém todos os seres e coisas e é campo de todos os eventos: seu lugar é um universo de símbolos e signos. O tempo do poema é um movimento contínuo, nunca pára de produzir sua “machine a emouvoir”, sua máquina de comover, que aciona seu movimento ininterrupto no processo de criação, que pode exprimir o próprio ser do discurso ou tornar presente, de forma poetizada, um mundo real. A poesia será reveladora de disfarces, de máscaras que patrocinam existências subumanas.
De posse de sua arma, a palavra poética, o poeta grita sua revolução e, como um condor, voa alto sobre as Américas do Sul, Central, sofridas Américas do Pinochet, do grito dos infantes argentinos / naufragados / e assassinados / nas Malvinas. (...) / E como morreu Tiradentes / e como morreu Victor Jará / o canto sublime de Victor Jará / morrem na América os lírios / e não mais que os lírios / o destino da Nicarágua / das aldeias / dos Andes / dos povos humildes da parte Central! O poético participa do termo ou cessão (tratados ou contratos) e faz da realidade, aparentemente desconhecida, uma manifestação, na qual a arte difunde luz para tirar o véu, a opacidade da não ficção.
O “Poema rosado” (p.53), além do engajamento social e político já apresentado nos outros textos, traduz também a metáfora drummondiana da poesia como a revelação da verdade e realização dos desejos do povo. É rosa, perfume, sensação, poesia e anseio popular. É a flor-palavra abrindo-se numa transfiguração do mundo feita de sinestesia, num calidoscópio de som, cor, perfume, tato, paladar, numa sucessão rápida e cambiante de impressões, sensações, num universo de sentidos e sensações; num cosmo de princípios filosóficos, históricos, psicológicos, reais e irreais, num jogo de ficção e realidade, criação e linguagem revestida de uma polissemia que reside nessa rosa/ palavra que põe à vista o quanto:
Uma rosa é uma rosa,
além da rosa
que Rosa veste.
(...)
Houve aqui (sim) esse tempo róseo,
feito de riso rosicler,
que se esgotou,
escoou,
sumiu,
quando das malditas raízes da Ditadura
e o atual collorido do Brasil.
(p.53)
A intertextualidade histórica das amarras da ditadura ou dos colloridos e raciocínios, feitos com intenção de enganar, muito comum em nosso sistema político, faz das esperanças um malogro sofístico, que nunca é cumprido, mas sempre, adiado. O tempo rosa, no sentido de alegria, bem-estar, contentamento, prazer, venturas permanece numa delonga, numa demora contínua que aceita com mestria o pensamento de William Shakespeare: “Tão fora de tempo chega àquele que vai depressa demais, como aquele que se atrasa”(www.encantosepaixoes.com.br/poesia1742.htm). Mas, enquanto nosso país se veste de verde-esperança, resta a ação do verbo literário que surge como a salvação deste estado de permanência.
A palavra poética é fecundadora, é manifestação divina do verbo que traz o germe da criação, colocado no despontar da gênese, como a primeira manifestação perfeita, se encontra nas concepções cosmogônicas de muitos povos. No pensamento grego, a palavra, o logos, significou não apenas o vocábulo, a frase, o discurso, mas também a razão e a inteligência, a ideia e o sentido profundo de um ser, o próprio pensamento divino.
Pelo exposto, a palavra, na essência ou condição própria de um ser, constitui um símbolo de sabedoria, manifestação da inteligência na linguagem, na natureza dos seres e na criação contínua do universo. Pode-se dizer ainda que a palavra tem uma estreita analogia com o mito de Palas Atena, símbolo de luta e sabedoria. A deusa Palas era vitoriosa, guerreira e representava luz, energia, técnica, trabalho, perfeição. Essa interpretação primitiva e pagã da mítica existência de Palas é uma metáfora para a gênese da palavra, principalmente se pensarmos que, embora no estudo de sua origem e formação, no seu étimo, consta a derivação do grego parábole, latim verbum, inglês Word, francês parole, alemão Wort, italiano parola. Contudo, o efeito sonoro e semiológico do termo Palavra sugere pala(s) lavra, a deusa que trabalha com as ideias, com a sabedoria em ação.
Diante do que foi apresentado, nota-se um princípio certo: em qualquer crença ou dogma, a palavra (o logos) exprime sempre a simbologia da mais pura manifestação do ser, do pensamento, da criação e da luta pela vida. Esta fonte de vida e de conhecimento materializa-se na poética dessa lírica. Aqui, cada verso lateja, com maior ou menor intensidade, a verdade da arte poética, da criadora, guerreira e revolucionária palavra, que trabalha como verbo, que dá vida, advoga e salva. Os poemas experimentam a transfiguração de uma realidade que fere algum direito humano: Algum direito / e por que não justiça / e por que não amor / morre na América. / Alguma vontade / ânsia de caminhar tão livre / de semear o trigo / de educar os filhos / de obter o pão / morre na América. / Morre e morre na América / a luz mediterrânea dos olhos / o vôo suave dos pássaros / sobretudo o do Condor.
A concepção de poesia, como verdade, começou com Aristóteles, que a considerou como tendência à imitação, inata em todos os homens, com manifestação da tendência e do conhecimento. Segundo Aristóteles, a imitação poética é superior à imitação historiográfica, porque a poesia não representa as coisas realmente acontecidas, mas “as coisas possíveis, segundo a verossimilhança e a necessidade” (Poética, 1996, p. 50). Por isso, ela “é mais filosófica e mais elevada que a história, porque exprime o universal, enquanto a história exprime o particular” (Idem., p. 50).
A palavra poética tece os fios do labiríntico novelo que é a vida e constrói, fio a fio, um tecido que tem força e influência sobre os poderosos. O texto literário é uma tecelagem que funciona como armadura contra a desumanidade. O poema “Fiandeira” (p. 58) expressa, na própria construção literária, as artes e manhas da edificação do poema; é um texto que reflete sobre a própria poesia, traduzindo metalinguisticamente a força do ofício da arte da palavra:
Fia no ofício
a fiandeira, confiante
no orifício do fiar.
Fia a figura fiandeira,
no feitio afilado do Tear.
O filho vive enfunado,
afilado, no espasmo da noite.
O filho, seu filho esfomeado.
No fio fiado, fia o destino
do pobre filho destinado
a perder-se na noite imunda
da cidade sem Deus.
Fia no ofício a fiandeira,
confiante no olho-físsil do fiar.
Fia!
(p.58)
Este poema tem como marca um jogo verbal e metalinguístico sobre o ato da criação poética na própria tessitura do poema. Ao desfiar seus fios/ versos, a composição realiza um processo estilístico determinado pela aliteração, ou seja, a repetição do som da consoante labiodental fricativa surda /f/. Ao desfiar a fricção do /f/, o poema tece seu fio-palavra, seu som-imagem nos versos sonoros cheios de significações. Seguindo o fio desse ofício, a partir dos sentidos e da percepção, o leitor pode desvendar os labirintos desse novelo da linguagem e do próprio ser do homem.
O Livro dos Dias
O livro dos dias, também denominado de “Rebanhos do Tempo”, traduz uma tonalidade filosófica embebida de grande lirismo. A escolha da epígrafe de Neruda, retirada do lírico Poema XV, do livro Veinte poemas de amor y Una canción desesperada, já convida o leitor para um tempo de amor e poesia. Este livro é composto por vinte e dois poemas:” Um sabiá’(p.61), “Nada” (p.62), “No que de beijo” (p.64), “Chopin” (p.65), En la bodega (p.67), “Se veneno” (p.70), “No tonel” (p.71), “Este mesmo susto de estar aqui” (p.72), “Grave” (p. 74), “Palavras” (p.75), “Senão Van Gogh” (p.76), “Brejo” (p.77), “Desordem” (p.79), “Da rebeldia dos anjos” (p.80), “Parece?” (p.85), “Perdição” (p.86), “A chave do mesmo achado” (p.87), “Diadema & poesia” (p.88), “E então me farei bem claro” (p.89), “Credu” (p.91), “Enigma” (p.95) e “Ana e sua flauta” (p.97).
O poeta vê o invisível. Percebe e cria relações entre as coisas que vê, imagina e pensa. Cria analogias, os pontos de semelhanças entre coisas diferentes. Assim, o poeta é um criador de metáforas, de contrastes e comparações e pela imagens metafóricas, o poeta diz o indizível e pensa o impensável, atribuindo novos sentidos à realidade, criando novas ideias e novos mundos. O poeta é antes de tudo um criador de mundos. Delermando Vieira é um dos melhores poetas desses ermos goianos. Lendo a lírica desse artista da palara encontramos, especialmente nestes “Rebanhos do Tempo,” o clímax, ou a essência, ou a usina que traduz toda a carga poética em sua obra. Os vinte e dois poemas desta secção “O livro dos dias”, inegavelmente, traduzem uma sinestesia embalada de música, cor, sensação, olfato e prazer. A poesia de “Chopin” está evidenciada nas imagens líricas dos seguintes versos:
Quando o verão chegou,
estávamos assim, a mão no peito,
doídos, amargos,
junto ao bosque de duendes vesgos,
olhando a carroça lentamente
se arrastando por entre os girassóis
da estrada e a máquina de colher
arroz enferrujada,
ali esquecida por mãos
de extremo abandono!
(...)
Quando o verão se foi
e o inverno chegou,
e a dor muito mais invadiu nossos peitos,
nossos corpos, nossas almas,
era Sonho de Amor pra Liszt,
muito embora no telhado
a chuva tocasse Chopin!
(p. 65/66).
No poema “En la bodega!” o artista da palavra trabalha com maestria a forma/espaço e a linguagem do texto. A construção literária oferece passagens como estes versos:
Do passado uma sombra se me chegava,
com seu rosto de bronze e o verde nos olhos,
olivais untados de carícia e verdume,
procriando-me à gestação do álcool, do amor
e do bálsamo da paixão.
Eu bebia,
bulia,
ia,
sugado por essa sombra.
(p.69)
O poeta é um inventor de quadros, de cenas e de palavras. Cria o inusitado. O poema “Este mesmo susto de estar aqui” exemplifica as imagens cheias de magia inventadas por Delermando:
Antes que a tarde se fosse,
peguei da chuva as vestes,
a flauta, os tíbios ossos
de sua cantiga azul,
(...)
Antes que a tarde se fosse,
e com ela o arrastar de seu coche sepulcral,
peguei da lágrima o sal, os aros
das libélulas esparramadas na praia,
no absurdo declive da brisa em vôo
e garças douradas; (p.72).
A poesia tem a propriedade de despertar o homem para sua humanidade perdida no deserto da modernidade. A arte da palavra tem o privilégio de levar o ser humano a sentir o deleite e a emoção de dizer versos como estes: Antes que ela se fosse tarde,/peguei da chuva as teclas do piano,/da lágrima e o sal que existem em mim,/mesmo sabendo que nunca mais!/nunca mais! serei capaz de apanhar/este instante, este mesmo/ susto de estar aqui.
Este instante, este susto de estar aqui manifesta o acontecimento, o fiat da descoberta da vida, das coisas, da própria poesia. Neste momento de desvelamento está a expressão da linguagem do ser, que exprime o humano ao refletir sobre a própria existência. Daí, a forte irmandade dessa poética em estudo com a filosofia.
O lirismo existencial de Delermando Vieira mostra o estar no mundo e a consciência da fugacidade das coisas e da vida. Por isso, o instante é sentido e sua poesia reflete as sensações do existir com seus conflitos, dores e finitude. Ao filosofar sobre a existência, o “eu” poético transfigura as mudanças e transformações como está expresso no poema “Palavras” (p.75):
No ombro
de quem passa pela rua,
de espanto enferrujado
um mosquete lacera o passado.
Passam-se ventos,
tormentos,
tempestades,
pelas (re)tinas
de Baco,
de Deus.
(...) (p.75)
Este poema manifesta a fragilidade das coisas e a força do movimento do tempo relativo. A passagem da medida de duração dos seres está distinguida em suas três concepções fundamentais: como ordem mensurável do tempo; como movimento intuído; como estrutura de possibilidades.
À primeira concepção, vinculam-se na Antiguidade o conceito do mundo e da vida do homem e, na época moderna, o conceito do tempo científico. Neste poema, o primeiro conceito está explicitado na passagem dos homens pela rua, que passam pelo tempo, pelos ventos, tormentos, tempestades, (re)tinas de homens, de deuses, de tudo. Esta concepção de tempo fundamentou a mecânica de Newton (1564-1642), que distinguia o tempo absoluto – do tempo relativo, mas ambos atribuíam ordem e uniformidade (Cf. Newton,1987, p.156). Neste primeiro tempo está a chamada duração, no segundo, reside o seu movimento. Entre a duração e o movimento tudo acontece:
Palavras ficaram,
palavras passaram,
palavras morreram –
criaram rugas,
fantasmas
de sombras nas sacadas,
nas varandas,
entre o metal das chuvas
e a saudade de cada um.
Palavras agora são cacos,
pedaços: almas no copo afogadas de rum!(p.75)
O poema exterioriza a fragilidade das coisas e a força do movimento do tempo relativo. Só a memória pode vivificar as lembranças despedaçadas, pedaços de almas afogadas num copo de rum! Apenas a reminiscência pode inverter a série temporal, “uma vez posto o estado precedente, o acontecimento deve seguir-se infalível e necessariamente” (p. 45), como defende Kant em sua ‘Doutrina Transcendental dos Elementos”, na primeira seção “Estética Transcendental” (1987). Portanto, “é lei necessária de nossa sensibilidade e, consequentemente condição formal de todas as percepções que o tempo precedente determina necessariamente o seguinte” (p. 45). Isso permite a distinção entre percepção real do tempo e imaginação, que poderia e pode inverter a ordem dos eventos, transformando a sucessão temporal em “único critério empírico do efeito em relação à causalidade da causa” (Crít. R. Pura 1987, Anal dos princ., cap. II, seç. III, 3. p. 26). Essa redução do tempo à ordem causal, assegurada por Kant, foi derivada da física de Newton e reapresentada a Einstein. Ao criar a Teoria da Relatividade, Einstein só negou que a ordem de sucessão fosse absoluta. E dentro desse princípio físico e metafísico, as palavras que agora são cacos, que morreram e viraram fantasmas de sombras nas sacadas, são renascidas num copo de rum, na lembrança e no desejo de voltar esse tempo que se foi, mas que na memória ele não é absoluto, é relativo, porque está na experiência de quem viveu, e esta não morre.
A visão da relatividade das coisas está também presente no poema “Senão Van Gogh” (p. 76), texto que traz à tona a questão da razão, da loucura e da criação:
Elevemos
(em nós)
a imagem do que sempre
desceu aos abismos da loucura.
Edifiquemos, enfim,
a tonta e lírica paisagem do louco pincel
no céu da pintura. (p. 76)
O “eu” lírico faz um convite para uma descida aos abismos da loucura. Nesse mergulho, as marcas do Impressionismo, Expressionismo paisagístico do pintor Holandês são contempladas, inclusive a explosão febril e criativa que lhe marcou os dois últimos anos e meio de vida, nos quais produziu os quatrocentos e sessenta e três quadros. Tamanho delírio criativo está na base de sua imortalidade e o levou à beira da insensatez, loucura que, hoje, é elogiada, uma vez que Van Gogh é reconhecido como um dos maiores artistas modernos.
O conceito de sanidade foi considerado por Platão como “boa loucura”, que não é doença e perdição e pode ser até interpretada como um dom divino, como ele defendia, ou como amor à vida e tendência a vivê-la em sua simplicidade, conceito que nega a sabedoria artificiosa e sombria, bem como a ciência de quem sabe tudo, menos viver e amar. Esta é a concepção pregada por Erasmos de Roterdã em sua obra O elogio da loucura. Todavia, este estudo não pretende aprofundar-se em tal campo, mas, apenas ressaltar a loucura de que fala Erasmo: a simplicidade da vida que se faz nutrindo ilusões e esperanças; ou no campo da religião, é a fé e a caridade contrapostas a cerimônias exteriores, aos ritos mecanizados e à hipocrisia dos grandes banquetes (Cf., WALTHER, Ingo F. 1998 p. 54). Insensatez que vai contra a ordem, os costumes e a lógica da sociedade e, talvez, nem seja uma inspiração divina, mas uma verdade humana demasiadamente humana.
E, sem dúvida, dentro dessa verdade, a arte de Van Gogh foi construída ao lado do mito de sua loucura. No avesso da chamada razão nasceram as telas que traduziam marcas da sandice ou genialidade do pintor dos Girassóis e dos auto-retratos. Seu estado de alma, em que os sentidos se desprendem das coisas materiais, absorvendo-o no enlevo e na contemplação interior, seu êxtase criador estão exemplificados, na carta 195 que o próprio Van Gogh escreveu ao seu maior amigo e irmão Teo: “Tentei dotar a paisagem do mesmo sentimento da figura, assentando as raízes da terra, frenética e apaixonadamente, e mesmo assim sendo quase arrastada pelas tempestades. Tanto na figura branca da mulher, como nas raízes pretas e retorcidas, eu quis exprimir alguma luta da vida. Ou, para ser mais exato: eu tentei ser fiel ao mundo natural que estava à minha frente, sem filosofar, nos dois casos, quase apesar de tudo algo dessa grande luta entrou” (Idem, p. 26).
O poema, ao mencionar poeticamente o pintor dos Girassóis mais famosos e caros do mundo, pretendeu trazer à luz não apenas o tema da loucura, mas também da imortalidade que reside na essência da arte: E dia de nos atermos à morte, / à tinia do esmalte esparramado / no sulco da terra, / do sangue e o gripho da garrucha / sobre a seda, os girassóis / e os gerânios / na varanda quase incendiada. / Mas, quem nos acompanhará / senão Van Gogh e seu tiro no ar?
O êxtase da criação brilha como o sol, o fogo, os girassóis, os gerânios que incendeiam a varanda do artista. O estado do Fiat Lux – faça-se luz – pode produzir uma forma contrária às leis do denominado lógico, e foi nesse senão, isto é, nesse outro modo de pensar a arte, que Van Gogh sulcou da terra, do sangue, da vida, toda a sua pintura e todo este senão Van Gogh e seu tiro no ar? No dia 27 de julho de 1890, Vincent admite ter disparado uma bala contra o peito e, ao morrer dois dias depois, mês foi imortalizado, e sua obra passou a ser reconhecida mais pela genialidade do que pela loucura. Na paisagem dos 16 versos livres desta composição, imagens, ideias e ritmos ponderam os fenômenos interiores considerados como ontológicos, neste “Senão Van Gogh”.
O jogo entre o real e o imaginário, entre a aparência e a essência e suas controvérsias e discussões que investigam a natureza da existência estão presentes no poema “Parece?” (p. 85) / Parece osso queimado, / vento chamuscado, / a falsafalavra / da lavrafalsa / falando na solidão / dos dias. / Muito parece / e, no entanto, cresce. / Cresce, feito língua, ferina / ferindo fera sibilina, / no falar e sua sina. / Muito cresce / e, no entanto, parece. Parece?
Filosoficamente, o termo “aparência” apresenta dois significados opostos: o de velar e obscurecer a realidade das coisas, de tal modo que esta só pode ser conhecida quando se transpõe tal ideia de semelhança, e o conceito que assevera: a aparência é o que manifesta ou revela a realidade, de tal modo que esta encontre no parecer sua verdade, sua revelação. Com base no primeiro significado, conhecer significa libertar-se das aparências e, pelo segundo sentido, conhecer significa confiar no que parece, deixar parecer.
O texto em análise segue o segundo conceito e, por isso, joga com as imagens osso queimado, / vento chamuscado / a falsalavra / da lavrafalsa que brinca com signos verbais e não verbais. O ludismo semiótico falsalavra / lavrafalsa produz uma imagem em forma de X grego, ou cruz de Santo André, ou sinal de multiplicação, ou sinal de cruzamento, formando uma figura de estilo denominada quiasma e, que, no sistema de leitura visual da forma (Gestalt do objeto), é conceituado nas categorias da simetria e do equilíbrio perfeito. Portanto, esse poema trabalha a analogia dos jogos verbais, como foi apresentado, além de outros procedimentos estilísticos motivados pela própria natureza do signo linguístico, como as aliterações construídas com a repetição dos sons / s / consoante constritiva, fricativa, alveolar, surda; e / c / que produz consonância e soa juntamente com as vogais. E ainda o / s / formando as aliterações chumasco, parece, cresce. O fonema / s / também é explorado na sonoridade das palavras osso, solidão, dos dias, sibila, sua sina. E o / f /, consoante fricativa, labiodental surda, faz um trabalho sonoro nos versos feito língua ferina / ferina sibilina, / no falar e sua sina.
O poema não é um conjunto aditivo de unidades isoladas. É um texto e um signo, por isso obedece a lei de identidades e, nesse sentido, é motivado. O poema “Parece” figura um signo motivado por semelhança e possui um significante e um significado que estão no interior de cada palavra, no íntimo da sintaxe invisível, onde mora a poesia – no espaço entre o significante (sequência de sons de um vocábulo, que só adquirirá significação se unida a um conceito que lhe dê determinada língua – imagem acústica) e significado (a ideia que se faz de um objeto, sugerido por sua imagem acústica ou significante – conceito abstrato).
Neste momento neutro, reside o enigma: do poético ou os labirintos do novelo, que começa a ser desvendado e a sair do grau zero da escritura, “do silêncio neutro / das palavras perdidas / na paisagem dos signos” (Gilberto, 1996, p. 490), instante que tanto pode ser o início da descoberta da ponta do novelo do mistério poético, quanto da revelação da vida, ou ainda a morte e o caminho para o nada. Pode ser o desvelamento de um mundo cheio de sentidos ou o vazio da existência. O poema “Enigma” (p. 96) pondera sobre esse tema: Não sabe a minha pele/a lã do carneiro emoldurado./Sabe, no encanto, o vento/a súbita sombra: pecado/de seu pecado./Sabe a falácia/(palavra surda / sonora)/o sabor: sangue d'amora.(...)/sabe a vida o enigma: a morte.
A travessia para o poético tem um caminho cheio de labirintos e enigmas e deve ser transposta através do mergulho nas profundezas do rio do discurso, onde tudo é silêncio. O silêncio conduz o indivíduo à sabedoria, à razão, está ligado à retórica. Por meio do silêncio o invisível se revelará. Daí, a necessidade de o artista da palavra submergir no reino da linguagem à procura das palavras que estão paralisadas, sem pressa de sair, como poetizou Carlos Drummond de Andrade, em “A Procura da Poesia”. No mundo das palavras com sua sintaxe invisível formada pelas combinações sintáticas e semânticas, está a resposta do “Enigma”. Porém, o poeta precisa conviver com as palavras ou até morrer e renascer em cada nova descoberta, em cada novo enigma desvendado e, se necessário, deverá saber ler as entrelinhas do livro da Esphige.
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