O paraíso é aqui



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CAPÍTULO II

Clara e Bob estavam assistindo a um vídeo no monitor de edição, para selecionar o que iria para o ar, quando Rosie apareceu segurando uma prancheta.

— Ouçam, um de nossos informantes telefonou para avisar que está acontecendo um protesto no parque Ashfield. O motivo é o de sempre: defensores da ecologia versus construtores. Dessa vez, o construtor é Rowlands. Ele quer construir um shopping no local. Alguns vizinhos são a favor, mas isso significaria ter de desmatar uma grande área de vegetação que abriga coalas.

— Mas algum conselho deve estar fazendo algo para pro­teger os animais, não? — Clara arqueou uma sobrancelha.

— Até certo ponto. Puxa, somos nós ou os coalas. Eles parecem estar por todo canto! Basta haver algumas folhas por perto e lá estão eles, fazendo moradia.

— Precisa ser um tipo específico de folha, Rosie. Como ho não bastasse tantas atrocidades, há muitos coalas mor­rendo atropelados nas estradas, por descuido de motoristas Irresponsáveis.

—- Você quer ou não quer a matéria? — perguntou Rosie. - Podemos mandar Pamela, se quiser.

— Pamela não consegue fazer matérias com muita com­petência. Nós iremos até lá — avisou Clara, desligando o monitor. — Se as pessoas estiverem dispostas a conversar, em vez de gritar, talvez até encontrem uma solução.

— Conheço Rowlands — afirmou Bob. — Ele nunca foi muito bom em ouvir as pessoas.

— Não acredito que ele estará no local — salientou Clara. — Com certeza, mandará algum representante.

Clara e Bob chegaram no parque Ashfield vinte minutos depois. Clara saiu do carro antes mesmo de o furgão da BTQ8 parar por completo.

— Oh-oh, acho que teremos problemas — disse Bob, ao alcançá-la. — Não imaginei que haveria tanta gente.

— Quanto mais melhor — respondeu ela. — Volte e pegue a câmara, Bob.

— As pessoas se tornam meio imprevisíveis quando estão diante da câmara, Clara. Vamos com calma, sim? Não quero ter mais nenhum equipamento quebrado.

— Olhem ali! — gritou alguém, em meio à multidão. — É Clara Cavanagh, da BTQ8! Conseguiremos ser ouvidos!

Quando Bob chegou com a câmara, Clara seguiu em direção às pessoas. Era a favor da permanência dos coalas, claro, mas não poderia demonstrar isso abertamente. Muitas pessoas pa­reciam ser a favor da construção do shopping, embora, segundo notaram, houvesse um a dois quilômetros, dali.

Clara começou a falar com as pessoas, obtendo opiniões variadas a respeito da questão. A maioria era de cidadãos preocupados com o meio ambiente, mas alguns queriam ape­nas fazer baderna.

— Esses desalmados não ficarão satisfeitos enquanto não acabarem com os coalas! — gritou uma mulher.

A representante de Rowlands, uma atraente mulher de meia-idade, vestida com discreta elegância, sorriu e tomou a mão de Clara.

— Sou Mary Stanton, srta. Cavanagh. É um prazer co­nhecê-la. Eu gostaria de dizer que nenhuma empresa se preocupa mais com o meio ambiente do que a Rowlands, e é disso que estou tentando convencer essas pessoas.

Bob manteve a câmara ligada todo o tempo, filmando o rosto de Mary com a multidão ao fundo. De súbito, ouviram um movimento entre as árvores. O instinto profissional fez Bob desviar a câmara para lá no mesmo instante.

Clara esperava ver algum coala comendo folhas, mas qual não foi seu espanto ao avistar um menino com cerca de nove ou dez anos de idade acenando para baixo, montado em um alto galho de árvore.

— É melhor descer daí, rapazinho — avisou ela.

De súbito, olhou para trás, surpresa. Tivera a nítida im­pressão de ouvir uma voz sussurrar algo em seu ouvido. Quan­do não viu ninguém próximo, voltou a chamar o menino.

— Desça, senão acabará se machucando.

Ninguém estava vendo que aquele galho era fino demais?

— Eu estou bem — respondeu o garoto, com um sorriso. Então começou a se arrastar para a ponta do galho.

— Os coalas serão mantidos em segurança... — continuou a falar a representante de Rowlands.

— De quem é esse menino? — perguntou Clara, sem prestar mais atenção à mulher.

Talvez a sensação tivesse algo a ver com a perda de seu irmãozinho, mas ela não gostou de ver o garoto se arriscando a cair daquele galho.

— Precisamos mesmo de mais um shopping aqui? — ques­tionou uma mulher corpulenta, em meio à multidão. — Há um a dois quilômetros de distância!

— Nem todos têm carro para ficar visitando shoppings, minha cara — respondeu uma senhora idosa que, pelo visto, era a favor da construção. — Adoro coalas, mas tenho de reconhecer que um shopping neste local traria muitos be­nefícios. Eu poderia passear mais e fazer novas amizades.

— E o senhor, o que acha? — perguntou Clara, voltando o microfone para um senhor usando medalhas militares so­bre a jaqueta.

— Acho que Rowlands deveria pegar suas coisas e ir para o lugar que merece! — bradou ele.

Mesmo enquanto conversava com as pessoas, de vez em quando Clara olhava para o garoto na árvore. Por que estava tão preocupada com ele?

Quando o galho se partiu de repente, seu corpo tremeu com um sobressalto. As pessoas a seu redor entraram em pânico e correram para os lados. Porém, algo manteve Clara no mesmo lugar. Sem dizer nada, ela estendeu os braços, esperando que o garoto caísse sobre eles.

Parecia impossível, mas foi exatamente isso que aconte­ceu. As pessoas ficaram boquiabertas, sem acreditar no que haviam acabado de testemunhar. O impacto fez Clara cam­balear para trás, até os dois caírem deitados sobre á relva, sem nenhum arranhão.

A multidão, que até então se mantivera em atônito si­lêncio, começou a aplaudir com entusiasmo, em meio a risos e palavras de admiração.

— Como diabos ela fez isso? — perguntou uma pessoa, pró­xima à câmara de Bob, que não perdera nem um lance da cena.

— Ela deve ter braços de ferro! — exclamou outra pessoa.

Ao ver que fora salvo pela famosa jornalista Clara Cavanagh, o garoto beijou-a no rosto e lhe pediu um autógrafo. Em seguida, todos quiseram apertar a mão de Clara.

— Não foi nada — disse ela, ainda sem entender como o garoto parecera tão leve em seus braços.

— Puro efeito da adrenalina — explicou um professor apo­sentado. — As vezes, sob o efeito da tensão, nós nos tornamos verdadeiros super-humanos. Foi maravilhoso, srta. Cavanagh. E o câmara registrou tudo!

Clara agradeceu e se dirigiu à representante de Rowlands.

— Há outro lugar aqui perto onde poderiam construir o shop­ping, sabia? Uma grande área livre com uma placa de venda.

Teria mesmo visto aquilo?, perguntou-se.

— Oh, deve ser a fazenda do velho Waverley — sugeriu o militar. — Ele não vai aceitar vendê-la para um dono de shopping center.

— Tentou falar com ele? — Clara perguntou a Mary Stanton.

— Sim, nossos advogados tentaram mas ele foi muito hostil.

— Por que você não tenta? — sugeriu Clara. — Ele está sentado dentro de um carro logo ali adiante. — Ela apontou.

Mary respirou fundo.

— Você o conhece?

— Nunca o vi na vida — respondeu Clara. — Mas tenho certeza de que é aquele senhor.

Deus, por que ela tinha tanta certeza? Se aquilo era algum sinal de paranormalidade, queria ser a primeira a saber!

— Não quero correr o risco de abordar um estranho — confessou Mary. — Você pode estar enganada.

— Está bem. Alguém aqui conhece o sr. Waverley? — perguntou Clara, em voz alta.

— O velho Jack? — inquiriu um homem próximo. — Está sentado no carro dele, observando nossa manifestação. A essa altura, já deve ter se arrependido por não ter vendido o terreno para a construção do shopping porque ninguém mais quer pagar o preço que ele está pedindo. Seria a melhor solução e todos nós concordaríamos.

— Está bem — anuiu Mary Stanton. — Verei o que con­sigo fazer. Obrigada, srta. Cavanagh. Apesar de... inusitada, sua presença foi de grande ajuda. Nunca vi uma jovem tão vibrante e forte.

— Mantenha-me informada — pediu Clara. Então, adiantou-se para pegar um pequeno pulso fugidio. — Espere um pouco, Archie.

O menino ficou boquiaberto.

— Como sabe meu nome? — perguntou ele, com um risinho.

— Você não me disse?

— Claro que não.

Archie continuou olhando-a com espanto, como se esti­vesse diante de alguma heroína de história em quadrinhos.

— Tenho o mesmo nome do meu avô — explicou ele. — Eu e minha mãe iremos morar com ele.

— Então espere para me contar os detalhes quando eu o levar para casa — pediu Clara. — Mas uma coisa de cada vez, Archie. Por que não está na escola?

— Não sentirão minha falta por lá — cochichou ele. — Os coalas são meus amigos e não quero vê-los indo embora.

Em volta deles, a multidão começou a se dispersar, diante da nova possibilidade de resolução do problema. Se o tal sr. Waverley decidisse vender o outro terreno, seria vanta­joso para todos.

"Clara Cavanagh é mesmo uma pessoa especial", foi o que todos saíram falando.

— Não consigo entender! — repetiu Bob pela décima vez, enquanto assistiam ao vídeo no monitor. — A parte em que você pegou o garoto, e cambaleou com ele até cair, simples­mente desapareceu da filmagem!

— A agitação das pessoas em volta não deve ter ajudado muito sua concentração, Bob — justificou Clara. — Tem certeza de que mirou a câmara em mim?

— Está maluca? — Bob se indignou. — Claro que mirei! Deveria se envergonhar por fazer uma pergunta dessa a um profissional como eu. Modéstia parte, sou um dos melhores do ramo, Clara.

— Pois acho que dessa vez você não teve sorte, meu caro Bob. — Clara deu tapinhas no ombro dele. — Depois do incidente, tudo que temos são alguns segundos de conversa entre mim e Archie. Esses acontecimentos não devem ser tão raros assim. Tenho um amigo que levantou um carro para salvar uma criança. A mãe da garotinha estava saindo de marcha a ré da garagem e não viu a menina. Ao avistar a cena, lan pulou a cerca de imediato e levantou o carro pelo pára-choque. A menina não teve nenhum arranhão.

— Eu diria que o anjo da guarda dessa garotinha foi bas­tante eficiente. — Bob passou a mão pelos cabelos. — Vamos passar a fita mais uma vez. Quero verificar se há algo errado.

— Sim, mas primeiro vamos tomar um café.

Os dois continuavam discutindo o assunto no corredor quando Gabriel passou por eles.

— Vocês dois estão bem? Parede até que voltaram de algum vôo espacial — falou, observando-os com curiosidade.

—Há certas coisas na vida, chefe, que simplesmente não têm explicação — respondeu Bob. — Eu e Clara estávamos cobrindo uma manifestação de protesto há duas horas...

— Ela não consegue mesmo perder o entusiasmo por esse tipo de trabalho — Gabriel o interrompeu, olhando para Clara com ar de divertimento.

— É eu não sei? — anuiu Bob. — Mas dessa vez a pre­sença dela foi imprescindível. Na verdade, aconteceu algo muito estranho.

— Conte-me — pediu Gabriel, curioso.

— Não foi nada — interveio Clara, tentando dissuadir Bob de falar.

— Nada? — Bob arqueou as sobrancelhas. — Havia um garoto com cerca de dez anos em cima do galho de uma árvore. Acerta altura, o galho se partiu. Precisava ter ouvido o barulho! As pessoas correram para os lados, apavoradas, exceto Clara. Quando todos pensaram que o menino iria parar direto no chão, Clara o segurou em pleno ar, parecendo uma espécie de Arnold Schwarzenegger de saias!

Gabriel não disse nada por um momento, mas não desviou a vista do rosto de Clara.

—- Parece que vocês dois voltaram faz pouco tempo do almoço — disse ele, por fim. — Não andaram bebendo vinho?

— Nunca bebo em serviço — declarou Clara. — Também não sei como fiz aquilo. E essa voz meio infantil no meu ouvido...

— Uma consulta com um médico talvez ajude — sugeriu Gabriel. — Filmou a cena, Bob?

— Bem, essa é a parte mais curiosa da história. Foi tudo registrado na filmagem, exceto o momento em que Clara salvou o menino. É como se a câmara houvesse ficado na pausa.

Gabriel riu.

— Vocês têm de me desculpar, mas as brincadeiras que vivem inventando estão cada vez piores.

— Não é brincadeira, chefe — falou Clara. — Eu real­mente segurei aquele garoto no ar.

Gabriel não pareceu muito convencido.

— Você? Clara, você deve pesar no máximo sessenta qui­los. Não agüentaria um impacto tão forte sem que nada mais grave acontecesse.

— Eu sei — anuiu ela. — Mas houve muitas testemunhas. — Posso conseguir uma declaração se quiser.

Gabriel riu novamente.

— Então você é mesmo especial como imaginei, srta. Cavanagh. Fazer milagres em público não é para qualquer um. Mas continuo achando possível vocês dois terem sonhado com tudo isso.

Bob pareceu chocado.

— Tenho muito respeito por você, McGuire. Não contaria algo insano para meu próprio chefe, se eu mesmo não tivesse visto. Você descreveu com precisão o que aconteceu: um milagre.

— Talvez — anuiu Gabriel, com indiferença. — Preciso ir andando porque já estou atrasado para uma reunião. Quero que estejam presentes quando o júri anunciar o veredicto sobre o caso Chandler. Ouvi dizer que isso poderá acontecer ainda esta tarde.

— Chefe, não acreditou mesmo no que contamos? — Clara insistiu.

Ele sorriu para ela.

— Vocês estão precisando é de uma boa noite de sono — disse e saiu.

— Então vamos esquecer essa história de uma vez por todas — ela disse a Bob. — Temos de nos concentrar no caso Chandler. Ele só pode ser culpado.

— Um veredicto é quase sempre uma surpresa, Clara.

— Bob suspirou.

— Só não no caso de McGuire — replicou ela. — Desde que você começou a contar sobre o que aconteceu, tive a impressão de que ele iria nos condenar. E foi justamente isso o que aconteceu.



CAPÍTULO III

Antes de sair da empresa, na sexta-feira, Cla­ra passou pelo escritório de Gabriel. Ele es­tava ao telefone e fitou-a com um ar de aviso: "Não me interrompa!"

— Muito bem, o que aconteceu? — perguntou a ela, depois de desligar.

Clara ainda não estava acreditando que aceitara o convite dele para levá-la à festa do sr. Llew.

— Eu... não tenho certeza se você sabe meu endereço.

— Sim, é fácil. Já passei em frente à sua casa várias vezes.

— Para quê?

Um sorriso se insinuou nos lábios dele.

— Gosto de saber o máximo possível a respeito de meus funcionários.. A casa é um pouco grande para você, não?

Tratava-se de uma bela construção em estilo colonial, que havia sido deixada para Clara como herança, depois do acidente com seus pais!

— Não consigo me imaginar morando em outro lugar — disse ela.

— É o que parece. Então nos veremos por lá.

— Está bem — respondeu Clara, saindo logo em seguida.

"Otimo! Maravilhoso!", resmungou em pensamento. Es­perava que Gabriel estivesse com um humor melhor no dia seguinte. Senão teria de apanhar um táxi.

Na manhã do sábado, Clara saiu para fazer as compras da semana. Nada muito exagerado. Vivia mais a base de frutas frescas e de saladas. Também comprou alguns itens práticos, que poderiam se transformar em uma rápida refeição, se fosse preciso. Não tinha tempo para preparar pratos elaborados.

Na verdade, não lhe restava mesmo era disposição. Não depois de muitas horas de trabalho. De vez em quando, costumava sair para jantar com os amigos, mas nem mesmo em tais ocasiões comia com extravagância.

Logo depois do almoço, passou algum tempo no jardim, cui­dando das plantas. Sua mãe adorava todo aquele verde e as flores raras que cultivava com carinho. Seu pai também gostava de ficar ali quando tinha tempo. Porém, aquela época se fora.

Um sentimento de perda fez seu peito se apertar, mas Clara tentou ignorar a tristeza. Nos primeiros dias depois do acidente, sofrera muito, sem conseguir se imaginar vi­vendo sem os pais. Entretanto, quando soubera do estado em que sua mãe ficaria, convenceu-se de que teria de lutar. Queria estar bem e por perto quando sua mãe despertasse novamente para a vida. Se é que isso aconteceria algum dia. Segundo os médicos, a possibilidade era muito remota.

Com os olhos cheios de lágrimas, admirou as margaridas, as petúnias e as azaléias. Tentava tratar de todas elas com o mesmo carinho com que sua mãe o fazia, mas não tinha muito tempo para dedicar às plantas. Por isso, contratara um jardineiro para cuidar delas uma vez por semana. Desejava manter o jardim como sua mãe gostaria que ele estivesse.

Às três horas da tarde, chegou à casa de repouso. Passeou com a mãe pelos jardins do lugar, empurrando a cadeira de rodas com cuidado. Parou à sombra de uma árvore e sentou-se na relva, segurando a mão de Delia.

Estranho, mas apesar de todas as evidências mostrarem o contrário, Clara nunca tivera a sensação de que a mãe não a reconhecia, embora seus olhos azuis permanecem au­sentes, como que contemplando um outro mundo.

Às vezes, Clara se perguntava se ela não estaria tendo visões, em meio àquele universo particular. Estaria sua mãe tendo acesso ao marido e ao filho que perdera? Quem poderia saber?

Clara nunca encarou a dedicação à mãe como um dever. Estar ali era simplesmente uma demonstração de seu amor. Como sempre fazia durante suas visitas, pôs-se a contar o que estava acontecendo em sua vida. Falava como se a mãe estivesse lúcida e interessada no que ela tinha a dizer. Como no passado, quando Delia era uma mulher cheia de vida e agradecida pela felicidade de sua família.

Clara contou sobre os desentendimentos com Gabriel e sobre as últimas reformas que mandara fazer na casa. Tam­bém lembrou-se de mencionar o estranho incidente do dia anterior, quando salvara aquele menino.

— Não tenho certeza de que o segurei de verdade con­fessou à mãe. — Senti o calor do corpo do menino junto de mim, e, no instante seguinte, a multidão já estava aplaudindo o gritando. Foi como se eu houvesse me transformado, mamãe. Gabriel pensou que eu e Bob havíamos inventado a história o disse que uma boa noite de sono resolveria o problema. Mas aconteceu de verdade. O que você acha que foi?

Então veio o choque.

— O quê?!

Clara estivera olhando para um lago próximo enquanto falava, mas olhou de repente para a mãe. A voz suave de Delia soara com clareza em sua mente!

Porém, a expressão dela continuava impassível. Clara sen­tiu um arrepio da cabeça aos pés. Estaria ficando maluca?

— Mamãe? — chamou-a, ainda lhe segurando a mão inerte.

Não houve nenhuma resposta.

— Oh, meu Deus... — murmurou, tentando conter as lagrimas.

Devia estar trabalhando demais. Ou talvez o trauma pelo acidente com sua família estivesse surtindo efeito. Ainda assim, poderia jurar que ouvira aquele sussurro. Pensando bem, que mal haveria em ter um pouco de esperança?

Ficou de pé e começou a empurrar a cadeira pela trilha que margeava o lago. Aquele era o caminho que elas sempre costumavam fazer. Estranho, mas a certa altura ela teve a impressão de que uma terceira pessoa as estava acompanhando.

Seria aquilo algum tipo de poder paranormal?, pensou, acariciando o ombro da mãe com carinho. Pelo visto, teria de voltar a pensar no sentido da vida e em quanto se afastara de Deus por causa de sua revolta. Se Deus era bom e per­feito, não poderia ser culpado pelo que lhe acontecera.

Clara nunca havia demorado tanto para se arrumar para uma festa. Nunca passara tanto tempo experimentando ves­tidos diferentes ou se olhando no espelho com um ar tão crítico.

Por fim, selecionara dois vestidos. Um de seda verde-escuro, longo e com gola alta, e outro de chiffon com uma discreta estampa floral, também com saia longa, mas sem alças. Cada um a deixaria com um estilo completamente diferente. Não eram novos, mas ainda estavam na moda. Não quisera gastar com mais vestidos, sendo que já mantinha uma boa coleção no guarda-roupa.

Talvez o estampado fosse a melhor escolha dessa vez. Ele a deixaria com um ar mais feminino. Depois de vesti-lo, calçou sapatos de salto alto do mesmo tom cor-de-rosa da estampa do vestido. Deixou os cabelos naturalmente soltos sobre os ombros, aplicou uma maquiagem discreta e olhou-se mais uma vez no espelho. Gostou do resultado, mas não pôde deixar de rir. Estava parecendo a fada da primavera de um desses contos infantis.

De súbito, sentiu uma onda de expectativa que havia muito não sentia. Estava ansiosa para ver o que Gabriel diria de seu visual. Mas desde quando passara a se inte­ressar pela opinião dele a esse respeito?

Seu coração acelerou quando ela ouviu o som da cam­painha. Ficara pronta em cima da hora!

Quando abriu a porta da sala, conteve o fôlego. Sabia que a festa seria a rigor, mas não imaginara que Gabriel ficaria tão magnífico de smoking.

— Olá — ele a cumprimentou, com um brilho de apre­ciação no olhar. — Está encantadora, fada da primavera — completou, como que lendo os pensamentos que Clara tivera segundos antes.

Ela se espantou, mas acabou rindo do comentário. Gabriel teve de se conter para não tomá-la nos braços e beijá-la com ardor. Nunca a tinha visto com um vestido longo antes o a surpresa fora mais do que encantadora.

— Obrigada — Clara agradeceu com um sorriso. Porém, logo voltou a ficar séria. Não poderia se esquecer de que aquele era Gabriel McGuire, cruel predador da es­pécie feminina.

— Quer entrar um pouco? — convidou-o por mera educação.

— Sim, quero. — Assim que entrou na sala, ele observou o aposento com ar de admiração. — Sua casa é mesmo magnífica, apesar de ser antiga.

— Eu a adoro. — Clara sorriu, ficando ao lado dele. — Venha conhecer o restante dos aposentos.

— Com prazer. A casa foi construída por seu avô, não é?

Clara olhou-o no mesmo instante.

— Quem lhe disse? Gabriel deu de ombros.

— Já disse que gosto de saber o máximo a respeito de meus funcionários. — Enquanto circulavam pelo andar de cima, ele disse: — Eu também iria gostar de morar em uma casa assim.

— É mesmo? Pensei que preferisse coisas mais modernas e arrojadas, com todos aqueles móveis retangulares e qua­dros esquisitos.

Gabriel riu.

— Prefiro estilos que integram o novo ao antigo. Mas, em termos de arquitetura, gosto muito desse estilo colonial com varandas feitas de ferro decorado e coisas desse tipo. É perfeito pura o clima subtropical. Também aprecio tetos altos e aposentos amplos. A pessoa que escolheu a decoração foi muito sensível.

Clara sentiu um aperto no peito.

— Minha mãe. — Foi tudo que conseguiu dizer. Andaram alguns segundos em silêncio, antes que Gabriel falasse:

— Deve ser consolador ter lembranças tão marcantes dela por toda a casa.

— As vezes é — admitiu Clara. — Mas de vez em quando isso se torna um verdadeiro tormento. — Indicou o andar de baixo. — Vamos até a biblioteca. É meu aposento favorito. Assim que abriu a porta do aposento, Clara teve a im­pressão de ver alguém sentado na cadeira de seu pai, pró­xima à lareira. Por um instante, a visão foi tão nítida que a fez conter o fôlego.

— Está tudo bem? — Gabriel perguntou.

— Sim, está.

Devia ter sido alguma ilusão de ótica, concluiu ela. Prin­cipalmente por ter parecido ser alguém tão pequeno. Seu pai era tão alto quanto McGuire, mas a visão que ela tivera pa­recera ser a de uma criança. De fato, coisas estranhas andavam lhe acontecendo ultimamente. Não poderia admiti-las por com­pleto, mas sentia que não conseguiria ignorá-las.

— Ficou um pouco pálida — observou Gabriel, quando ela acendeu a luz.

— Estou bem.

— Fica sempre nervosa mesmo sem nenhuma ameaça por perto? — brincou ele.

Clara sentiu vontade de discordar, mas se conteve. Afinal, ele era mais do que uma ameaça, e estava bem próximo.

— Quando sinto alguma ameaça, chamo meu anjo da guarda — respondeu, também em tom de brincadeira.

— Ainda bem. — Gabriel estudou cada detalhe da bi­blioteca. — Deve ter gostado de crescer aqui.

— Sim. E você? Onde cresceu? — perguntou ela, com gentileza.

— Em uma pequena cidade fora de Sidnei. — Virando-se para ela, acrescentou: — Obrigado por me mostrar sua linda casa. Gostaria de ficar mais algum tempo, mas é melhor irmos andando.

— Sim, claro. Quando Clara passou por ele, dirigindo-se à porta, Gabriel a deteve por um momento e lhe acariciou o rosto.

— Agora sei por que se parece tanto com uma fada. É alguém muito especial.

Clara sentiu o rosto esquentar. Felizmente, Gabriel a soltou e ela pôde se afastar antes que fosse tarde demais. Os dois saíram em seguida.

— Eu não sabia que você tinha um Jaguar — disse, ao ver o carro dele.

— Desde criança, prometi a mim mesmo que algum dia eu teria um. — Ele sorriu.

— Também gosto desse modelo de carro.

— Ainda bem. Achei que não seria lá muito emocionante vir apanhá-la com o mesmo carro com que costumo trabalhar.

— Eu não me importaria.

— Sei disso, Clara.

— Ei, está me chamando pelo primeiro nome! — falou ela, em tom de protesto.

— E você não está me chamando de nada — observou Gabriel. — Pelo menos na minha frente, porque, pelas mi­nhas costas, sei muito bem como me chama.

— Oh, por favor. Não acredite no que as pessoas falam — Clara se defendeu, embaraçada. — Estamos indo a uma festa, lembra-se?

— Então diga logo.

— Dizer o quê?

— Meu nome.

— Sr. McGuire...? — arriscou ela. Ao receber um olhar fuzilante, emendou: — Gabriel, o mensageiro de Deus. Tem de admitir que não combina muito com seu temperamento autoritário.

Ele arqueou uma sobrancelha.

— Acha que tenho mais a ver com Lúcifer? Clara riu alto.

— Também não precisa exagerar. Até mesmo para você isso seria cruel demais. Que tal fazermos um trato? Eu o chamarei de Gabriel durante esta noite, se você continuar me chamando de Clara. Então voltaremos ao tratamento de sempre na segunda-feira.

— Por mim, tudo bem. — Estreitando o olhar, ele perguntou: — Consegue mesmo nos imaginar como amigos? Clara conteve o riso.

— Segundo dizem por aí, tudo é possível...

— Não acho que você vá agüentar isso, srta. Cavanagh. Gabriel olhou-a de soslaio. Deus, como ela era linda!

— Voltou a me tratar por senhorita?

— Apenas para não perder o hábito. Mas continuo com uma dúvida: o que exatamente a deixa apreensiva com re­lação a mim?

"Tudo!", Clara quase gritou. "Sua beleza, sua força de caráter, sua masculinidade..."

— Gabriel, não tenho nenhum problema com relação a você.

— Tem sim. E não ria.

— Bem... Tenho de admitir que seu maior defeito é ter o dom de me provocar.

Ele pensou um instante.

— Sim, eu admito.

— Deve ter seus motivos para isso.

— Tenho — confirmou Gabriel. — Mas quero o melhor para você, Clara. Posso ser um pouco duro, às vezes, mas minhas intenções são dignas. O problema é que você fazia tudo que queria quando estava sob as asas de seu outro chefe, e não posso admitir isso profissionalmente.

Clara reconheceu que ele tinha razão.

— Clive deixou o cargo muito antes do que deveria — disse a ele.

— Está sendo preconceituosa. Caso não saiba, estamos do mesmo lado, Clara. Mesmo que nosso relacionamento não seja lá dos melhores.

— Clive não gritava comigo.

— E o que acha que devo fazer? Aceitar que falte às reuniões e não me importar quando você entra no meu es­critório sem bater?

Clara enrubesceu.

— Isso não é verdade. Eu sempre bato à porta da sua sala.

— Quando se lembra — salientou Gabriel. — De qualquer maneira, tudo isso é superficial. Acho que o problema prin­cipal é físico.

Clara deu graças por estarem na penumbra do carro porque tinha certeza de que, àquela altura, seu rosto devia estar vermelho feito um tomate.

— Bem, de fato, você tem muita... presença — admitiu.

— Acha mesmo? Está me fazendo sentir feito Conan, o Bárbaro.

— Por que se importaria com minha opinião a seu res­peito? —- inquiriu ela.

— Ei, eu estou fazendo as perguntas.

— Tudo bem, continue, chefe. Estou apenas tomando cui­dado com minhas respostas. Se isso lhe serve de consolo, conheço pelo menos vinte mulheres naquele prédio que o consideram muito atraente.

— Vinte e duas, segundo o último levantamento — cor­rigiu ele.

Ignorando a ironia, Clara continuou:

— Não entendo por que ainda não se casou.

Deus, ela dissera mesmo aquilo? Não era possível! Al­guém a hipnotizara!

Gabriel olhou-a de soslaio.

— Se eu a pedisse em casamento, você aceitaria?

— Só pode estar brincando.

— Não, não estou — ele respondeu. — Há muitas carac­terísticas a seu favor. É bonita, elegante, inteligente, co­nhece meu ramo de trabalho e não ficaria me questionando a todo instante...

Clara balançou a cabeça, aturdida.

— Não, não seria uma boa idéia. Não consigo imaginar nós dois casados.

— Tudo bem, Clara. Eu estava brincando. Mas, falando sério, você não confia em nenhum homem o suficiente para se casar?

— Não.

— Pois eu acredito no amor.



Ela olhou-o com surpresa. Aquilo era a última coisa que ela esperava ouvir de Gabriel McGuire!

— Não tenho motivos para isso — continuou ele —, mas acredito.

Poderia contar muitas desilusões sobre esse sentimento, depois de haver tido um pai violento e uma mãe dominada pelo medo.

— Tive uma infância muito difícil e só pensava em fugir da vida e das pessoas. Com o tempo, percebi que isso não é sábio. Temos de aproveitar a vida ao máximo e nos relacionarmos bem com as pessoas para conseguirmos acreditar no amor.

Clara estava chocada.

— Gabriel, lamento pelo que lhe aconteceu.

Ele sorriu.

— Também já lamentei, mas isso faz parte do passado. Entende o que quero dizer, Clara? Se eu tivesse ficado preso às dores do passado, guardando mágoas destrutivas, não teria conseguido ser quem sou hoje. O melhor é saber que devo isso ao meu próprio esforço.

Clara também sorriu.

— Sabendo desse detalhe, é realmente admirável.

Gabriel revelara um lado maravilhoso, que ela nunca pen­sou que ele tivesse. Mais uma vez, a vida a surpreendera. De súbito, uma brisa agradável soprou seus cabelos.

O amor é capaz de mudar as pessoas...

Quem dissera aquilo?, pensou ela, olhando depressa para trás.

— O que foi? — perguntou Gabriel.

— Você ouviu?

— O quê?

— Uma voz falando sobre o... Oh, deixe para lá. Deve ser coisa da minha imaginação.

Seria mesmo?


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