Há 82 anos morria Mário de Sá-Carneiro, escritor português,
contemporâneo de Fernando Pessoa e autor de uma obra que inclui
poesia, romance, contos, teatro. Com Pessoa e outros nomes como
José Almada Negreiros, Raul Leal, Santa-Rita Pintor, Luís de
Montalvor e Ronald de Carvalho, ele criou a revista Orpheu, que
teve importância capital na inauguração e consolidação do Moder-
nismo Português.
Embora tenha vivido tão curto tempo, Sá-Carneiro deixou-nos
uma obra coerente em sua amargura e em sua busca por um significado
maior para a arte. Foi daqueles que recusou veementemente a perda de
uma espécie de superioridade que a arte deveria guardar diante da nor-
malidade burguesa do mundo.
Conhecido basicamente pela sua poesia, cuja expressão apre-
senta traços do Decadentismo do fim do século XIX, Sá-Carneiro é
igualmente criador de uma prosa bastante interessante e medular-
mente lírica. É A confissão de Lúcio, sem dúvida, sua obra-prima
como ficcionista. Tal narrativa traz-nos de algum modo o teor trágico
da sua existência, tendo o poeta morrido sem completar os 26 anos.
Nesta narrativa, Lúcio, personagem principal, narra os aconte-
cimentos que antecederam o crime do qual foi acusado e pelo qual
passou preso os últimos dez anos, sendo que logo no início da obra
desenvolve uma ambigüidade em seu relato ao afirmar que deseja
fazer uma exposição clara de fatos, declarando mais adiante, porém,
que a sua confissão resultará decerto a mais incoerente, a mais
perturbadora, a menos lúcida.
Ora, mesmo distanciado dez anos dos fatos que culminaram com
a sua prisão, Lúcio ainda titubeia diante daquilo que seria a verdade,
sendo que esta pode ser inverossímil como nos adverte o personagem.
Assim, a narrativa instaura-se sobre o signo da razão - “exposição
clara dos fatos” - e da loucura - “confissão mais incoerente, mais
perturbadora, menos lúcida”, o que se confirmará no decorrer desta,
especialmente quando se forma o triângulo amoroso Lúcio, Ricardo e a
misteriosa Marta.
Num jogo de espelhos, esta obra traz-nos, entre outras coisas, o
desejo de invenção de um outro, desdobramento narcísico do eu, uma
espécie de heteronímia sem o artifício, sem o lúdico fingimento
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
74 pessoano. Tal desdobramento apresenta-se também em muitos de seus
poemas, como no de n.º 7: “Eu não sou eu nem sou o outro,/ Sou
qualquer coisa de intermédio;/ Pilar da ponte do tédio/ Que vai de
mim para o Outro.”
Oscilando entre estas imagens, o poeta representa, talvez, a
indefinição do próprio país que revia desde o século anterior a sua
imagem de nação desbravadora de mares e continentes, e constitui-
se numa espécie de síntese trágica de um processo de autognose
inaugurado por escritores portugueses do século anterior.
Sujeito de existência trágica, Sá-Carneiro inscreve-se em suas
obras, e n‘A confissão de Lúcio em particular, e sublinha as tênues
fronteiras entre a sanidade e a loucura, resultantes de sua inadaptação
à vida cotidiana. Tal experiência, como se sabe, o levará ao suicídio
na distante Paris, como se fora um dos seus personagens.