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Ouviu a advertência e a esqueceu, mas ela passou a ser sua
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səhifə | 59/88 | tarix | 03.01.2022 | ölçüsü | 1,42 Mb. | | #47502 |
| Ouviu a advertência e a esqueceu, mas ela passou a ser sua
preocupação subliminar nas incursões que fazia. Ele, que buscava,
antes de tudo, talvez mesmo sem saber, a tranqüilidade, via-se ante
uma situação sempre iminente, que não sabia quando, como ou mes-
mo se aconteceria, mas que poderia ser fatal.
Passou a alternar visitas esporádicas ao campo a sua rotina de
homem burocrático. Cultivou o hábito de anotar em uma caderneta
as impressões que colhia. Registrava fatos, rascunhava paisagens,
traçava perfis de quem eventualmente encontrasse e julgasse digno
de ingressar na sua memória.
Tudo transcorria naturalmente até que houve um encontro es-
pecial: o homem do campo cruzou seu caminho. Movido por uma
curiosidade implacável, que só os mais simples possuem, o homem
do campo foi puxando da caderneta de memórias do homem da
cidade o fio que revelava experiências quase íntimas, nunca antes
reveladas, porque pessoais.
Ao perguntar o motivo de tais visitas a lugares tão ermos, o
homem da cidade, valendo-se da honestidade dos que ignoram, la-
conicamente apontou razões simples, aparentemente sem importân-
cia alguma. O homem do campo, vendo-se na necessidade de tam-
bém revelar algo de si, disse-lhe que ele também, que nunca saíra
dali, onde nascera, tinha vontade de conhecer outros lugares, uma
cidade grande de verdade e ver o mar de perto, mas disse também
que achava que jamais conseguiria realizar o desejo, porque tinha
medo do que poderia encontrar além do que buscava. Tinha medo
da violência que via pelos noticiários, da quantidade de pessoas que
cruzavam as ruas, da velocidade que imperava em tudo por lá.
O homem da cidade, não percebendo naquelas situações que
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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vivenciava quotidianamente um perigo real, argumentou, lembran-
do-se da advertência que ouvira na sua primeira vez no campo,
tentou argumentar que ali sim é que havia perigo. Mas o homem do
campo sorriu e disse:
– Cascavel não é perigo, basta não passar perto dele! Ouvindo
o chocalho, pule para trás. Em último caso, é só matar.
Naquele momento, o homem da cidade entendeu que não havia
jeito: a vida era mesmo, de uma forma ou de outra, como havia lido
um dia, realmente muito perigosa.
Psicanálise e Nosso Tempo
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