O poder terapêutico da criança
Marco Antonio Coutinho Jorge
Para o teatrólogo Jerzy Grotowsky, a força de uma grande obra
reside em ela poder abrir-nos portas que nos permitam “transcender a
nós mesmos, para descobrir o que está oculto em nós e consumar o
ato de ir ao encontro dos outros”. Em sua obra Amor, ódio e separa-
ção, Maud Mannoni cita Grotowsky e eu leio nessa sua citação pala-
vras que podem se aplicar a ela mesma. Com uma obra personalíssima,
cuja influência cresceu entre nós cada vez mais desde a década de 70,
a obra de Maud Mannoni ocupa um lugar singular na psicanálise.
Uma das discípulas de Jacques Lacan mais atuantes, ela sempre
buscou traduzir a teoria em sua prática com crianças e adolescentes
severamente perturbados, fazendo com que seu texto não fosse lido
como um manual de receitas clínicas ou dogmas teóricos, mas inci-
dências e reflexos da teorização rigorosa na prática clínica. Seu texto
assume assim um tom diferente das produções psicanalíticas corri-
queiras, e eu diria até mesmo que ele se aproxima do de Freud nesse
aspecto, ele não está preocupado em citar ou recitar, mas em passar
alguma experiência ao leitor, em falar dela e transmiti-la. Assim sen-
do, trata-se de um texto que apresenta uma força discursiva extrema-
mente grande e consegue nos evocar aquilo que em nós está, parado-
xalmente, mais atuante e mais oculto, a nossa própria infância.
Poder fazer o sujeito deparar-se continuamente com o novo é
uma das funções mais primordiais de um psicanalista em sua práti-
ca. Alain Didier-Weill contou que Freud em uma de suas reuniões
com o grupo de psicanalistas que o cercava inicialmente pôde certo
dia ouvir Rank falar sobre sua concepção do trauma do nascimen-
to. Ao terminar sua exposição, os discípulos de Freud alvejaram-no
de críticas, considerando suas idéias como absolutamente contrári-
as às teorias de Freud. Como Freud estivesse silencioso, calado,
sem dizer uma única palavra, os mesmos discípulos pediram a ele
que também se pronunciasse sobre o que acabava de ouvir. Freud
disse, então, que precisaria de um certo tempo para refletir sobre o
que acabara de ouvir, pois achara-se surpreso diante de algo tão
novo. Alain Didier-Weill comenta a esse respeito que os discípulos
de Freud responderam a Rank a partir de Freud, mas que Freud, ele
mesmo, estava implicado no processo da experiência: Freud não
tinha Freud para responder a partir dele, mas sim a experiência
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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psicanalítica como referência maior.
Nesse congresso, cujo tema geral parafraseia o texto freudiano
“bate-se numa criança”, minha intervenção se resumirá em evocar
o poder terapêutico que a criança pode apresentar para cada um de
nós, adultos. Esse poder terapêutico da infância, que justifica que
se denomine essa mesa-redonda de “A infância necessária”, quero
ilustrá-lo por meio de um exemplo cinematográfico recente, o
belissimo filme Central do Brasil, de Walter Salles Jr., um filme
que foi feito, igualmente ao texto de Maud Mannoni, com os senti-
mentos e as palavras absolutamente articulados. Em Amor, ódio e
separação, Maud Mannoni diz que há dois tipos de educação que
se opõem: “uma, fundamentada na aparência e no sucesso a qual-
quer preço, levando em conta unicamente a realidade, e a outra,
deixando ao indivíduo o tempo de se buscar, de descobrir seu cami-
nho, segundo um trajeto em que o importante é conseguir garantir a
qualidade das relações humanas. Nesse espaço há lugar para a ale-
gria e a fantasia”. Com essa assertiva, Mannoni parece estar co-
mentando o filme Central do Brasil. Aliás, falar da infância en-
quanto necessária é o mesmo que dizer, quase que de modo
interpretativo, que o mundo de hoje, com seus ideais imediatistas,
recalca a criança. Os efeitos mais imediatos disso têm sido a obser-
vação cada vez mais crescente de crianças envolvidas com armas e
crimes, drogas e até mesmo assassinatos, unindo-se aos adultos no
que estes têm de pior; ou, então, sendo alvo de estupro, pedofilia e
toda forma de exploração.
O filme é a história de Dora e do menino Josué e mostra a trans-
formação operada na mulher pelo menino. Dora, a personagem femi-
nina principal, é uma mulher sem escrúpulos. Ela vive de escrever
cartas para os nordestinos analfabetos que vivem no Rio de Janeiro e
desejam manter contato com seus entes queridos no nordeste. Mas
Dora não envia a seus destinatários as cartas que escreve; ela as guar-
da numa gaveta ou simplesmente as rasga e embolsa o dinheiro do
correio. Ela representa, assim, a falsa possibilidade de comunicação
daquelas pobres e solitárias pessoas vivendo num mundo inóspito e
diferente do de onde vieram. Assim agindo, Dora iludia os pobres
coitados analfabetos que acreditavam ter enviado sua mensagem para
pessoas queridas. Ela era a encarnação da farsa, da mentira; sua vida,
era apenas uma sobrevivência cotidiana. Como o menino Josué diria
várias vezes para ela, ela não valia nada.
Josué perde sua mãe, morta atropelada por um ônibus, atrope-
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