Todas as Marias
Marina Machado Rodrigues
Maria, metáfora do chamado sexo frágil, é um nome emblemático.
A primeira era já significante de sofrimento.
Contemporaneamente, este sentido foi ampliado e passou a abar-
car também a condição de subserviência delegada às mulheres na soci-
edade; haja vista a acepção moderna e popular do antropônimo, empre-
gado com valor de substantivo comum -como sinônimo de serviçal.
Embora o movimento de emancipação feminina tenha eclodido
na década de 60, o conceito de alguns homens sobre as mulheres
não evoluiu muito, a mentalidade retrógrada ainda pode ser consta-
tada nas ruas. Para estes, o sentido contemporâneo do termo – com
valor de adjetivo - ainda é a sua mais perfeita tradução. Quantas de
nós, no trânsito, imotivadamente ou não, não teve atirada ao rosto a
famosa frase: “Vai para o fogão e/ou tanque, D.Maria?
A autonomia proporcionada pelo automóvel às mulheres repercu-
tiu no espírito masculino como algo semelhante a uma insurreição. Elas
passaram a ocupar um espaço que era privativo deles - a rua. Talvez
por isso se explique a agressividade aludida.
O lugar da maioria das mulheres foi durante muito tempo o
fogão ou o tanque, o que trouxe ao chamado sexo forte uma dupla
segurança - a clausura dificultava deslizes e o condicionamento cul-
tural imposto a ambos os sexos fazia com que a elas coubessem
somente as tarefas menores, domésticas e cotidianas, quase sem-
pre. A projeção da síndrome de Maria se opera também ao nível do
mercado de trabalho, desde o século passado. Por este motivo, a
conquista de posições pelas mulheres não chegou a se configurar
como problema para os homens, pelo contrário, não havia competi-
ção e as mulheres deixavam de ser um peso morto, proporcionando
ao orçamento doméstico uma folga maior. Pesquisas atuais mos-
tram que a força de trabalho feminino tem sido considerada merca-
doria de primeira classe, embora seus salários não sejam compatí-
veis com esta condição.
A posição de retaguarda ocupada pelas “Marias”, introjetada
pelo imaginário popular, cunhou a frase lapidar: “Por trás de um
grande homem há sempre uma grande mulher”. E o pior é que isto
serviu de consolo e ainda serve a muitas de nós. Marias, em termos
absolutos, temos sido todas, vez por outra, em algumas situações, é
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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verdade. Para a maioria, contudo, o complexo de inferioridade tem
dado lugar a atitudes mais saudáveis, refletidas no desempenho
satisfatório da classe em todos os campos de atividades, e na cres-
cente afirmação da autonomia.
O temperamento multifacetado das mulheres se traduz melhor
pela metonímia do que pela metáfora. Tanto assim que o perfil fe-
minino pode assumir as características portadas por cada um dos
compostos que o nome compreende, mesmo ao longo de um único
dia. Todas temos nossos momentos de Maria da Anunciação quan-
do, não podendo nos conter, precisamos “espalhar a última” para a
vizinha ou para a amiga. Ou de Maria do Socorro, oferecendo o
ombro amigo àquela que perdeu o namorado e está inconsolável.
Ou de Maria Pia quando somos capazes de jurar que somente os
maridos das outras traem. Todas temos nosso dia de Maria das Gra-
ças, dia de produção, com direito a cabeleireiro e roupa nova, esban-
jando charme, ou jogando somente com as graças que Deus nos deu.
Quem não tem seu dia de Maria das Dores, quando nos ataca aquela
infalível dor de cabeça noturna? Marias, na acepção primeira, são
todas as mães, as dos homens, inclusive, que precisam de um colo de
vez em quando. Cada Maria é uma faceta do chamado sexo frágil,
mas, paradoxalmente, cada Maria é um todo singular. Nisto reside o
enigma não decifrado inteiramente pelos homens.
Antepondo a expressão “com licença da má palavra” ao nome -
como o fazia o poeta Antero de Quental todas as vezes em que se
referia ao seu - Marias somos. Todavia, o sexo forte não tem cansa-
do de nos celebrar ao longo dos séculos. Já imaginaram o que seria
da poesia lírica sem todas as Marias?
Psicanálise e Nosso Tempo
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