A glória da velha senhora
Sérgio Nazar David
Quem nunca chorou em final de novela não vai me entender.
Mas confesso que chorei quando vi na TV que José Saramago ga-
nhou o Nobel de Literatura. Gosto muito de alguns romances deste
escritor: Jangada de pedra, Memorial do convento, Ensaio sobre a
cegueira. Gosto menos de outros: O ano da morte de Ricardo Reis
e História do cerco de Lisboa. Mas isso não vem lá muito ao caso.
Muitos devem ter pensado que é um escritor português. Estes
talvez tenham dado de ombros, considerando talvez que cabe a eles,
portugueses, o júbilo, o orgulho (besta) patriótico. Outros talvez tam-
bém tenham pensado que tudo bem, merecido, é um bom escritor, em-
bora seja português. Sim, porque há aqueles que pensam que é da na-
tureza do português ser assim ou assado.
Mas eu, eu fiquei chorando diante de uma matéria gélida feita
pelo Jornal Hoje, sem fundo musical, sem voz pausada ao fundo,
sem imagem em câmara lenta. Fiquei pensando na língua portugue-
sa, em D. Dinis, em Camões, em Vieira, em Machado de Assis, em
Fernando Pessoa, em Guimarães Rosa, em Clarice Lispector... Fi-
quei pensando em todos aqueles que estão e estiveram na língua,
que fizeram e fazem da língua o modo mais particular de se consti-
tuir enquanto sujeito, fiquei pensando naqueles que, para não serem
boi de presépio, tiveram que escrever. E escreveram.
Não pensei nos que escrevem pensando nos outros. Não pensei
nos que escrevem para encher o bolso de dinheiro. Não pensei nos
estudiosos da obra de Saramago. Acho que nem no Saramago pensei
muito. Preciso dizer isso, sob o risco de, não dizendo, trair a maior de
todas as vitoriosas, hoje: a língua portuguesa, esta velha senhora, que
já beira os novecentos anos. Com este mundo tão em desconcerto,
com os grandes cada vez querendo mais e mais, alguma desordem
atmosférica, algum erro de juízo, amnésia, loucura, desvario, deve ter
ocorrido para que este ateu, comunista não arrependido, protetor dos
fracos e dos desvalidos, escritor da língua portuguesa, ganhasse o
mais importante prêmio da literatura mundial.
Psicanálise e Nosso Tempo
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