Impasses da cultura do individualismo
Claudia Maria Amorim
No último feriado, fui assistir ao filme A vida é bela, de Roberto
Benigni, e, de fato, não me surpreendi com o sucesso que vem fazen-
do junto à opinião pública. O filme é uma fábula, como nos adverte o
narrador, sobre a história de uma família judia italiana que, durante o
nazi-fascismo europeu, vai para o campo de concentração. Estranha
proposta esta de se tratar tal temática como fábula. Mas, aberta às
propostas, acompanhei atenta o desenrolar da trama.
Algo, porém, soava estranho, incompatível. Será plausível, para
não entrar no campo da ética, haver espaço para a fábula, para o
riso, ante uma situação profundamente dramática como aquela? Se
lembrarmos que o riso é muitas vezes corrosivo, sarcástico,
demolidor e, portanto, crítico, tudo parece se explicar.
No entanto, a sensação de inquietude permanece e é agravada
em algumas cenas iniciais, como aquela em que o menino, ao ler
uma tabuleta numa loja da cidade, pergunta ingenuamente ao pai o
porquê da proibição da entrada de judeus e cachorros na tal loja.
Indagado, o pai (inocente?) responde ao filho que também na sua
loja ficaria vedada a presença de visigodos e aranhas. Atrás do ab-
surdo da resposta, o preconceito, o desrespeito às diferenças. A
intolerância parece ser algo “normal”. Tudo é uma questão de tabu-
letas. Seria engraçado, mas não é.
Se o riso pode ser corrosivo, neste filme tenuemente adquire
essa função. A cena em que o então garçom invade a escola pública
para conquistar a professora por quem está apaixonado e exibe o seu
corpo magro e frágil é interessante porque desconstrói, pelo avesso, o
discurso da raça ariana. Entretanto, tudo se perde à medida que os
acontecimentos se sucedem e restam apenas os esforços patéticos do
pai que tenta convencer o filho de que o campo de concentração é o
lugar de uma grande gincana da qual sairá um vencedor.
O mundo não é um grande jogo em que todos fingem a intole-
rância. Ela existe de fato. Está hoje na guerra da Iugoslávia, nos
massacres ruidosos e silenciosos de milhares de pessoas em vários
lugares deste planeta. Àquela época, é responsável pelo maior
genocídio da história da humanidade. Mesmo desejando salvar o
próprio filho dos horrores da guerra, inconcebível é a maneira pela
qual tenta fazê-lo. A vida só pode ser bela quando excluímos os
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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outros, a dor, o sofrimento (nosso e alheio) dos nossos corações e
mentes? Apela-se para a célula familiar, para o amor paterno e tudo
se resolve? Os outros, os que estão à nossa volta, não importam
porque simplesmente não sabem jogar?
A nossa contemporaneidade fim-de-século parece querer provar
que tudo é uma questão de criatividade individual. Ao fim e ao cabo,
o que conta é a grandiosa imaginação do homem, capaz de fazê-lo
sobreviver até ao holocausto. Basta não se render à tristeza. Sobrevi-
verão os imaginativos, os criativos, aqueles que, apesar de tudo, ain-
da acreditam que a vida é bela.
Ledo engano. Não há salvação possível fora da realidade, fora
do coletivo. Não se pode fechar os olhos para o que acontece em
torno. Tampouco é permitido ser ingênuo, inocente. Num tempo
partido, é preciso tomar partido.
Enquanto o pai fingia jogar e fazia o filho acreditar neste jogo,
o nazismo não brincava. As conseqüências deste terrível momento
continuam na nossa memória e não se pode, sob o risco de se bana-
lizar as atrocidades, encarar um genocídio como uma fábula. As
fábulas fantasiam o nosso imaginário e constroem um final feliz.
O menino se salva, acredita que venceu. Mas os crimes da nossa
História permanecem e não podemos mudar-lhes o final.
Psicanálise e Nosso Tempo
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