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Psicanálise e Nosso Tempo

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lamento que é um símbolo do atropelo urbano e da violência da

cidade grande que mata em segundos. Josué fica só na gare da Cen-

tral do Brasil e Dora se aproveita disso para vendê-lo para um poli-

cial que trafica crianças com o objetivo de comprar uma televisão

nova com controle remoto!... Vende-se uma criança para ter o aces-

so ao prazer medíocre da TV, outro signo de uma cultura que, inte-

ressada no prazer imediato e no consumo, é capaz de vender seus

mais importantes valores.



Contudo, Dora tem uma amiga, Irene, que, ao saber do ocorri-

do, repudia sua ação, adverte-a de que deve-se tratar de tráfico de

órgãos de crianças e termina sua repreensão com uma única e pre-

cisa frase: “Tudo tem limite!”. Dora se arrepende de seu ato, conse-

gue recuperar o menino e decide levá-lo até o nordeste para que ele

reencontrasse seu pai. Dora ainda não sabia, mas era a si mesma

que ela ia reencontrar ao ajudar Josué a buscar o pai. Esse pai,

motivo de toda a trama da história, é precisamente quem não apare-

ce em nenhum momento. Embora ausente, ele move os personagens

em sua direção. Por implicar a Lei, a busca desse pai é o que vai

produzir as mudanças subjetivas.



A viagem de Dora e Josué para o nordeste é cheia de percalços e

contratempos. Na verdade, Dora tenta várias vezes demitir-se dessa

função, ela ainda oscila entre abandonar o menino ao seu destino e

levá-lo até o pai. Mas a interrogação profunda de Josué sobre o pró-

prio pai vai, aos poucos, impondo-se a Dora como algo necessário,

vital. No ônibus, Josué pergunta a Dora qual daqueles homens ali

tinha cara de ser pai; em cada rosto masculino, Josué vislumbra a

possibilidade do pai...

Quando Dora e Josué ficam totalmente sem dinheiro, é do me-

nino que parte a idéia de Dora escrever cartas, só que desta vez do

outro lado, cartas daqueles que estando no Nordeste querem se co-

municar com os que partiram para o Rio, mas, desta vez, tendo ido

até o outro lado para o qual as cartas que redigia no Rio se dirigiam,

Dora não deixa de colocá-las no correio. Agora ela envia as cartas

que redige e restaura o vínculo entre os seres que ela própria havia

ajudado a romper.

Dora, por meio dessa travessia à qual o menino a conduziu,

passou a considerar os sujeitos em questão não mais como presas

que ela podia enganar, fingindo enviar suas cartas. Não, agora Dora

dá valor às histórias narradas nas cartas por aqueles homens e mu-

lheres tão sofridos e sozinhos, ela como que se sensibilizou com as




Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

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histórias humanas de todos os que buscam seu auxílio para escre-

ver, pois tudo se passa como se, de fato, no convívio com Josué,

Dora tivesse se humanizado ela mesma: é também um pouco de sua

história, de sua infância, que ela pôde rememorar com Josué. Dora

se redime com Josué, volta a ter algo da leveza e da alegria infantis.

Nesse sentido, uma das mais belas cenas do filme é aquela em

que, de forma semelhante à imagem de Nossa Senhora com o meni-

no Jesus no colo e em contraponto a ela, vê-se Dora deitada no colo

de Josué, mostrando que o conforto vem aí da criança e não da

mulher adulta, em que a criança mostra toda a sua força criativa.



Dora já estava amando aquele menino, ela já pensava em levá-

lo de volta consigo para o Rio quando, por acaso, eles encontram os

meio-irmãos do menino. Estes revelam ter uma vida organizada,

com trabalho e bem-estar material, e recebem acolhedores Josué.

Josué fica com eles e Dora parte de noite depois de ter sentido que

cumpriu sua missão. A separação de Dora e Josué é sofrida para os

dois, mas assim como Josué foi devolvido para sua história, com

seus irmãos, Dora nesse momento é igualmente devolvida a si mes-

ma, a seus sentimentos, a seu passado, a sua própria infância.



Já no ônibus de volta, sozinha, ela escreve uma carta para

Josué. Ela chora e ri ao mesmo tempo, e é notável que agora, pela

primeira vez, ela não mais esteja escrevendo as palavras que os

outros ditam para ela. São suas próprias palavras que ela põe no

papel, dirigidas ao menino de quem acaba de se separar. E o que ela

diz é muito simples, muito eloqüente e muito profundo: “No dia que

você quiser lembrar de mim, dá uma olhada na fotinho que a gente

tirou junto. Eu digo isso porque tenho medo que um dia você tam-

bém me esqueça. Tenho saudades do meu pai. Tenho saudades de

tudo... Dora”.

Em entrevista a Jurandir Freire Costa, Walter Salles Jr. fala da

“redenção trazida pela presença significativa do outro”. O que é
de chamar a atenção é que esse outro pode ser, para cada um de

nós, a palavra salutar da criança alegre e criativa que cada um

traz dentro de si.


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