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Quem é o dono da história?
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səhifə | 73/88 | tarix | 03.01.2022 | ölçüsü | 1,42 Mb. | | #47502 |
| Quem é o dono da história?
Maria Helena Sansão Fontes
A peça A dona da história de João Falcão, classificada como
comédia, realmente nos faz dar boas gargalhadas, mas, sobretudo,
cumpre a função primordial da arte, que é mexer com as pessoas,
causando até mesmo desconforto. Ela toca fundo na existência e
levanta o questionamento sobre o nosso destino, nosso livre arbítrio
e, acima de tudo, sobre os limites de uma geração.
Marieta Severo interpreta a personagem de 50 anos que, soli-
tária, busca sua própria história. É preciso ter uma para contar, que
seja interessante, que não seja banal. E a sua história é igualzinha à
da maioria das mulheres de sua geração. A lembrança dos seus 20
anos, personificada por Andréa Beltrão, insiste em lhe trazer a his-
tória que ela nega, que ela tenta mudar, no criativo jogo de hipóteses
que dá formato ao texto.
Em meio às risadas que nos escapam e que trazem a catarse
necessária à vida, fica alguma coisa incomodando, esse
questionamento sobre a falta de gratuidade da existência (ou a
gratuidade completa, quem sabe?). Um convite para uma festa, um
encontro, um simples gesto podem mudar tudo, podem nos levar da
acomodação à infelicidade, ou da descoberta ao gozo supremo. Na
vida, não podemos alterar um momento que se consagrou, não há
jogo de hipóteses. Não podemos resolver mudar um gesto que não
deu certo, é inexorável. A arte pode. Pode levantar hipóteses e brin-
car com o acontecido, desfazendo-o, pode refazer a história tornan-
do-a interessante, pode recriar o destino.
Os limites e valores da geração da personagem de Marieta é
que são, a meu ver, revisitados nessa comédia. As décadas de 60 e
70 foram marcadas por valores rígidos que se impunham no âmbito
social e no familiar. A transgressão a esses limites não era feita
impunemente, sem culpas ou cobranças pessoais, ainda que incons-
cientes. É muito comum nessa geração a constatação de que se hou-
vesse possibilidade não se escolheria o mesmo caminho, caso se
vivesse novamente o tempo da juventude.
A peça traz à tona a dificuldade de transgredir, de mudar o que o
jovem de hoje muda sem pensar muito. A geração que está agora com
20 anos talvez não tenha uma “história para contar” quando tiver 50
anos, mas também não estará preocupada com isso, porque faz e des-
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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faz quando tem vontade, casa e descasa quando lhe convém e, sobretu-
do, pensa que descarta a infelicidade no momento certo, como se fosse
a dona da história.
Psicanálise e Nosso Tempo
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