As mulheres e a violência II
A coisa chamada mulher
Nadiá Paulo Ferreira
Se as mulheres, como representantes do Outro-sexo, permane-
cem incógnitas, o que fazer com o que não se sabe ou se sabe muito
pouco porque saber tudo é impossível? A reação que mais se repete
na história é dominar pela força o que escapa ao entendimento.
A tese, sustentada pelos teólogos medievais de que a mulher
devia ser governada pelo homem, tinha como referência os textos
da Sagrada Escritura. Nos séculos XI e XII, onde o poder da Igreja
invadia a privacidade dos homens, criando leis que regulamenta-
vam as relações íntimas entre os casais, os padres alertavam os
homens contra o perigo representado pelas mulheres. Elas eram
consideradas, em relação à força física, mais frágeis do que os ho-
mens, mas, em relação ao espírito, deviam ser temidas, porque usa-
vam a sedução e a mentira como armas para conduzir o homem ao
pecado, à destruição e à morte. Criaturas perversas e devoradoras,
incapazes de serem satisfeitas — eis a imagem que o cristianismo
medieval construiu, o que sem dúvida isentava e justificava os atos
de violência dos homens contra as mulheres. A função que a socie-
dade lhes reservava era a de esposa, tendo como lugar a casa e
como atribuição a educação dos filhos e a administração do espaço
doméstico. As mulheres só eram integradas à vida social quando
cumpriam o dever de esposas. A ausência de filhos no casamento
tinha sempre como causa a esterilidade feminina, o que permitia ao
homem recorrer ao poder clerical para anular o casamento.
O domínio dos homens tinha efeito apaziguador na medida em
que assassinavam as mulheres, enquanto representantes do Ou-
tro-sexo, para reduzi-las ao signo da maternidade.
O perigo só rondava as mulheres solitárias, aquelas que não
estavam sob o domínio dos homens. Então, a solução encontrada
foi a criação de novos espaços para aprisioná-las: os mosteiros, as
comunidades beguinas e os bordéis. As mulheres sozinhas, que
não estivessem enclausuradas nestes guetos, passavam à respon-
sabilidade do poder público. Uma das funções reais era a proteção
das viúvas e das órfãs. George Duby, em seu livro, Idade Média,
Idade dos homens, conta que o rei da Inglaterra, no início do século
XII, distribuiu as mulheres sem pais e sem maridos como presentes
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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para os seus vassalos. Sob a insígnia de proteger as mulheres, os
homens encontravam artifícios para tirar de cena o que permanece
como enigma sem decifração na diferença entre os sexos.
A existência das mulheres leva inexoravelmente à eterna ques-
tão: o que é a mulher? É quem porta a feminilidade. E o que é a
feminilidade? É alguma coisa que agrupa as mulheres em um con-
junto, diferenciando-as do homem. Cada resposta dada para “essa
alguma coisa” é sempre insatisfatória. Há sempre algo mais a ser
dito, a ser acrescentado, a ser discutido, a ser contrariado. Não há
em nenhuma língua a palavra conclusiva para significar a diferen-
ça sexual. Esbarramos com nosso próprio limite. Somos humanos
porque fomos introduzidos nas leis da linguagem. A partir daí,
estamos circunscritos ao universo simbólico e pisamos em terreno
movediço. Ao mesmo tempo que a palavra nos permite nomear a
diferença sexual, nos impede de conhecer seu significado, arre-
messando-nos aos equívocos, aos enganos e às surpresas. No im-
pério das palavras reina de forma soberana e absoluta o qüipro-
quó. Mas é com elas e a partir delas que nos defrontamos com a
diferença sexual e com a falta de palavras para decifrá-la.
A luta das mulheres para se libertar do domínio dos homens con-
seguiu vitórias, retrocessos e revanches. Vitórias, porque a mulher,
na maioria dos países ocidentais, livrou-se do confinamento a que era
submetida e conquistou o seu direito ao trabalho; adquiriu autonomi-
as financeira e jurídica. Retrocessos, porque assistimos, em algumas
culturas, ao retorno ou à manutenção de práticas ignóbeis contra as
mulheres. Revanches, porque a ciência, com suas técnicas e novas
descobertas, oferece a exclusão dos homens, tanto para o nascimento
dos filhos, quanto para o gozo sexual. Estes — veja-se o caso Madonna
— passam a ser reduzidos à função que as mulheres tinham na soci-
edade medieval: reprodutores sadios.
Como se pode ver, as conquistas não levaram ao progresso.
Permanecemos na Idade Média no que diz respeito ao haver da
diferença sexual, porque insistimos em negar o impossível: a pro-
dução de um saber sobre o Outro-sexo.
Psicanálise e Nosso Tempo
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