Afetos esquecidos voltam a incomodar
Nadiá Paulo Ferreira
Há inconsciente no ser falante. E, justamente por isto, ele — o
inconsciente — fala. Quando alguém procura um psicanalista, é
porque está sofrendo com seu corpo e com seus pensamentos. O
inconsciente faz com que alguma coisa da ordem do desejo venha
cutucar, incomodar, chatear mesmo, revelando que as coisas não
andam bem. É pela via do mal-estar, tomando conta do corpo, que
o sintoma do homem — como ser de linguagem — se revela.
Corre de boca em boca que a psicanálise não liga para os afe-
tos. É bom, então, perguntar: o que é um afeto? Sentir o disparar
das batidas do coração; um frio no estômago; as lágrimas corre-
rem pela face, porque as palavras ficaram engasgadas na gargan-
ta e a boca ficou muda; descarregar adrenalina num ataque de
cólera, não são sensações vividas com o próprio corpo?
Freud já nos ensinou que, quando um afeto vem nos afligir, nós
o jogamos para o alto. Isto é, por não querermos saber dele, o
retiramos de cena, fazendo com que seja deslocado da consciên-
cia. Mas o que é esquecido volta para ser lembrado. É a insistên-
cia do reaparecimento do que não se quer saber que aponta para a
existência do inconsciente. Como isto acontece? Nos sonhos, nos
equívocos que cometemos em nossa fala, quando dizemos alguma
coisa que não queríamos e não tínhamos a intenção de dizer. A
existência do inconsciente não aponta para uma caixinha de se-
gredos escondidos e sim para o dizer. Quando se fala mal, o corpo
fala pela boca. Os afetos ligados aos desejos, que não queremos
saber, nos fazem adoecer. Então, ficamos tristes, perdemos a von-
tade de comer, de existir, etc. Estamos, assim, afetados pelo dese-
jo. E, justamente por isto, o desejo recusado pela consciência rea-
parece cifrado nos sonhos e escrito na carne.
A psicanálise é um tratamento que se realiza pela via da pala-
vra. Retomaremos isto no próximo número.
Psicanálise e Nosso Tempo
27
Por que o Diabo tenta?
Nadiá Paulo Ferreira
Vou retomar o tema da existência do inconsciente e da prática
da psicanálise. Esta prática se sustenta na aposta de que há o
sujeito do inconsciente e que este haver afeta o corpo do homem.
Se o sujeito deseja, independente de sua vontade e de sua moral, é
preciso decifrar o que é desejado, não para que este desejo seja
realizado em toda a sua plenitude — até porque isto é o que é
verdadeiramente impossível — mas para tirar um “tasco” dessa
tal felicidade, para poder experimentar momentos evanescentes de
alegria. Enfim, correr o risco de estar vivo e passar seu tempo no
mundo, colocando-se na posição de sujeito desejante.
Mas para isso é preciso uma aprendizagem de dizer e de escu-
tar o que se diz. Este é o caminho a ser percorrido por uma análi-
se, não para encontrar a FELICIDADE, mas para experimentar o
próprio dizer do inconsciente. E, a partir daí, se libertar do peso
de uma cruz e se lançar ao mundo que, apesar dos dissabores e
das armadilhas, oferece também surpresas, às vezes, tecidas pelo
acaso, que podem ser deliciosamente experimentadas.
O poeta tem sempre lições a nos ensinar sobre o desejo e as
fantasias que o sustentam. Este é o tema do texto inédito de
Fernando Pessoa que se encontra na Biblioteca Nacional de Lis-
boa, publicado com o título A hora do Diabo.
Termino por aqui, deixando para os leitores alguns trechos da
fala do Diabo: Corrompo, é certo, porque faço imaginar.(...) Nun-
ca pensou no Príncipe Encantado, no homem perfeito, no amante
interminável? (...) O que se deseja e se não pode obter, o que se
sonha porque não pode existir - nisso está meu reino nulo e aí está
assente o trono que me não foi dado.
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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O presidente dos EUA e a psicanálise
Nadiá Paulo Ferreira
É verdadeiramente imperdível o filme Mera Coincidência, de
Barry Levinson. Dustin Hoffman representa um produtor de
Hollywood, Stanley Motss, e Robert de Niro, o publicitário Conrad
Brean, que é o responsável pela campanha de reeleição do Presi-
dente dos Estados Unidos.
Faltam, se não me falha a memória, apenas 11 dias para as
eleições, quando surge a denúncia de que o presidente molestou,
sexualmente, uma menina de mais ou menos 13 anos. Conrad Brean
não quer saber se o Presidente é culpado ou inocente. Imediata-
mente, vai procurar Stanley Motss para lhe propor a invenção de
uma guerra contra a Albânia. Quando é anunciado o fim da guer-
ra, voltam as acusações contra o presidente. Stanley Motss inven-
ta um refém americano. Um prisioneiro, condenado por estuprar
uma freira, é entregue para representar este papel. Entretanto, por
um descuido da equipe, este prisioneiro tenta estuprar uma velhi-
nha, sendo assassinado pelo marido dela. Melhor é impossível.
Morto, terá um funeral com todos os rituais dignos de um herói
nacional. O filme termina sem mostrar o rosto do presidente. O
grande espetáculo, que atingiu o coração do povo americano até
as lágrimas, está a serviço de um império de reis sem faces. A
autoria e o compromisso com o que se diz e o que se faz foram
substituídos pelo comércio das almas, cuja perversão exige o ano-
nimato. Em troca de uma grande quantia de dinheiro, é oferecido
um gozo que exige a renúncia à autoria. Mas Stanley Motss usu-
frui de todos os luxos que o dinheiro pode proporcionar no capita-
lismo. Ele quer a autoria do seu trabalho. O feitiço se volta contra
o feiticeiro. Assassinado, terá sua morte anunciada como se tives-
se tido um infarto fulminante. Nesta engrenagem há um preço a
pagar: renuncia ao desejo, excluindo, assim, a singularidade de
cada um, em torno da qual se constrói a ética da psicanálise.
Psicanálise e Nosso Tempo
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Diferenças entre o psicólogo e o psicanalista
Nadiá Paulo Ferreira
A psicanálise se diferencia da psicologia tanto em relação à práti-
ca clínica, quanto em relação à teoria. No Brasil, ao contrário de
outros países, o ofício de psicanalista não é reconhecido como profis-
são. Isto não acontece com a prática do psicólogo, que é regulamen-
tada por leis, que vão desde a exigência de fazer o curso de Psicologia
até o registro do Conselho Regional de Psicologia — CRP.
O fato de não haver uma legislação para a prática da psicanálise
não significa que não haja uma formação do psicanalista. Esta é feita
por instituições que, visando a essa finalidade, estabelecem não só as
condições de ingresso mas também o desenvolvimento de um ensino.
Ao psicólogo, para abrir um consultório, basta ter o diploma
do curso de Psicologia e o registro do CRP. Um psicanalista só
deve começar sua prática clínica depois de ter ocupado o lugar de
analisando. Ou seja, depois de ter passado pela experiência de
conviver com o saber produzido pelo inconsciente. Um saber que
não se sabe, um saber que comparece nos sonhos e em todas as
formas de tropeços com o dizer. Quantas vezes não escutamos o
que dizemos? Quantas vezes, em nossas falas, somos surpreendi-
dos, dizendo coisas que não queríamos e nem tínhamos a mínima
intenção de dizer? Sem essa experiência, a teoria que a psicanálise
construiu sobre o homem fica reduzida ao discurso universitário.
Isto é, fica reduzida a um conhecimento dessubjetivado, que está
sempre demandando mais saber.
A diferença entre essas práticas não se restringe a uma questão
jurídica. É fundamentalmente uma questão de formação que, por sua
vez, está diretamente articulada com a direção do tratamento. Paro
por aqui. Nos próximos artigos, continuarei desenvolvendo esse tema.
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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Freud explica a diferença
Nadiá Paulo Ferreira
Um amigo me disse a seguinte preciosidade: o médico pode
recorrer à técnica da psicanálise em sua clínica. É óbvio que esse
dito saiu da boca de um médico, colocando em cena o não reconhe-
cimento da prática da psicanálise. Esta questão é muito mais antiga
do que se possa imaginar e faz parte da história da psicanálise. Em
1926, precisamente há setenta e dois anos, Theodor Reik foi acusa-
do, em Viena, de prática ilegal da psicanálise. Freud, nesse mesmo
ano, escreve o artigo Análise Leiga (Psicanálise e Medicina) para
situar os fundamentos teóricos e o campo de ação da psicanálise,
demarcando a diferença entre os tratamentos analítico e médico. Eu
disse a diferença. Não se trata, em momento algum, de avaliação,
no sentido de privilegiar uma prática em detrimento da outra.
Quando alguém vai procurar um médico, é porque está sentin-
do algum mal-estar, localizado no corpo, ou está querendo se sub-
meter a exames preventivos. A prática clínica da medicina visa à
cura, a partir de um diagnóstico. As descobertas científicas, tanto
na área médica quanto em outras áreas científicas, possibilitam
novos recursos para a cura e a prevenção de doenças.
Por que alguém vai procurar um analista? Em primeiro lugar,
é porque está sofrendo de sintomas que afetam a sua subjetivida-
de, criando transtornos graves em suas relações afetivas, familia-
res e profissionais, provocando, inclusive, efeitos no próprio cor-
po. O que faz um psicanalista, ao contrário de um médico? É bom
lembrar o que Freud disse: O analista concorda em fixar um ho-
rário com o paciente, faz com que ele fale, ouve o que ele diz, por
sua vez conversa com ele e faz com que ele ouça.
O não reconhecimento da prática clínica da psicanálise implica
jogar no limbo a grande descoberta de Freud: há uma outra cena
chamada inconsciente. E, justamente por isto, é preciso saber escutá-
lo para libertar sua fala. Do contrário, ele continuará deslocando
para seu corpo o que não consegue dizer em palavras. Até porque
quando fala não escuta, fazendo com que o ficou dito não seja
integralizado em seu discurso.
Psicanálise e Nosso Tempo
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Em boca fechada não entra mosca
Nadiá Paulo Ferreira
O descontentamento com o trabalho, com a família ou com a
situação política tece uma fala que se desdobra em lamentos, apon-
tando para uma posição do homem em relação ao desejo. O mal-
estar é convertido em um rosário de queixas, circunscrevendo a
subjetividade ao sentimento da frustração.
Vestígios de corrupção ganham as manchetes dos jornais e do-
minam as notícias sobre o cenário político brasileiro no rádio e na
televisão: — “Este país não tem jeito, não. Tudo acaba em pizza”.
Conflitos entre pais e filhos adolescentes acabam em ressenti-
mentos, fazendo com que o amor seja substituído pelo ódio: —
“Meu filho é um aborrescente.”
As coisas no trabalho não andam bem, as relações se tornam
insuportáveis, sustentadas por uma teia de intrigas: — “O sistema,
os chefes, os governantes são os culpados. Eu não posso fazer nada.”
Se o inferno existe, o seu lugar é aqui na terra: o inferno é o
Outro. Fica-se de boca fechada na hora em que é preciso falar. Diz
o ditado popular: “em boca fechada, não entra mosca”. Entretanto,
no cafezinho, pelos cantos dos corredores, abre-se a boca, diz-se o
que se pensa. Mas é preciso o adendo: — “Se falar o que estou
dizendo para você, eu vou negar.”
O tempo passa e a queixa se infinitiza... Não é dessa forma que
o homem se isenta de qualquer compromisso subjetivo com o que
diz e com o que faz? Isto tem um nome para a psicanálise, chama-
se renúncia ao mais próprio de si mesmo. Esta desistência tem um
preço e um ganho. O sofrimento é o preço. O ganho é o gozo.
Quando se retira uma satisfação com o próprio sofrimento, verda-
deiramente, não há nada a fazer a não ser adoecer de corpo e alma
e ficar dormindo em sono esplêndido.
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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Por que esquecemos os nomes?
Nadiá Paulo Ferreira
Domingo é um dia sem muitas opções na tv. Os programas de
auditório dominam a programação da tarde. À noite, além do Fantás-
tico, temos alguns filmes ruins e entrevistas. No programa De frente
com Gabi, a entrevistada é a cantora Vanderléia. Depois de muito
blá, blá, blá, vem o bate-bola. Marília Gabriela diz: — Palavrão? E
Vanderléia responde: — Psicopatologia do Cotidiano, acrescentan-
do que este título do texto de Freud bateu em seus ouvidos como se
fosse um palavrão.
Além do significado mais conhecido, isto é, palavra obscena e
grosseira, palavrão tem o sentido de pachouchada: dito disparatado,
tolice, asneira. Imediatamente, pensei: a entrevistada só pode estar se
referindo ao termo psicopatologia. Se ela tivesse consultado o Auré-
lio, aprenderia que é o estudo das doenças mentais no tocante à sua
descrição, classificação, mecanismos de produção e evolução.
Trata-se de um texto que Freud escreveu entre 1900 e 1901,
com o objetivo de mostrar que o esquecimento, em nosso dia a dia,
é uma das formas de manifestação do inconsciente. Por exemplo:
estou falando de um filme e esqueço o nome do ator principal.
Então, vem a minha cabeça uma série de outros nomes que reco-
nheço como errados. Se, por acaso, alguém diz o nome certo, ime-
diatamente eu reconheço que este é o nome esquecido. Alguma
coisa que foi recusada por mim entrou em conexão com esse nome,
fazendo com que tenha esquecido o que não queria esquecer.
O inconsciente é um trabalhador incansável, ele não pára de
trabalhar, nem quando estamos dormindo. É justamente por isto
que sonhamos e esquecemos o que não queremos. Mesmo que se
faça força para esquecer o que não se quer lembrar, de uma forma
ou de outra, o que é esquecido reaparece sob a forma de enigma.
Psicanálise e Nosso Tempo
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A fuga de si mesmo via e-mail
Nadiá Paulo Ferreira
Início de um novo ano. Retomando um hábito antigo, telefono
para uma amiga. A distância geográfica impede um convívio mais
próximo, fazendo com que nossos laços sejam mantidos via e-
mail. Levo um susto, quando atende a companheira, que divide
com minha amiga o apartamento, e me informa que ela foi ao
médico, porque estava passando muito mal, nessas últimas sema-
nas. No fim da tarde, recebo seu telefonema e fico sabendo que,
há quase um mês, está sofrendo de insônias. Pergunto o que está
acontecendo e ela me responde que tudo vai bem e que acabou de
ser promovida no seu emprego. Mas, na hora de deitar, o sono não
vem, rola à noite toda na cama. Isto a está deixando esgotada e já
emagreceu alguns quilos.
A consulta não durou mais de quinze minutos. Muitos pedidos
de exames e um diagnóstico a ser confirmado pelos resultados
destes exames: estresse. O diagnóstico é ratificado. Por que
estresse? — pergunto. Ela me responde que está trabalhando mui-
to. Imediatamente, retruco: você sempre trabalhou muito, o pro-
blema é que você não está conseguindo dormir. Antes de continu-
ar falando, ela me interrompe, dizendo que o médico lhe receitou
um calmante. Acrescenta que já tomou o remédio, está caindo de
sono, e me manda um e-mail para continuarmos nossa conversa.
Sem se escutar e não querendo ser escutada, o e-mail é uma gran-
de opção, na medida em que elimina o aqui e agora da fala, onde o
sujeito pode se surpreender com o que acabou de dizer sem querer ter
dito. O médico e sua medicação são os grandes álibis para que minha
amiga permaneça na ignorância de seu sintoma. O mal-estar foi apla-
cado por soluções químicas que silenciam sua fala, calando seus de-
sejos. Dormir é preciso. Lá, na terra dos sonhos, o corpo se abandona
ao gozo. Desejar não é preciso. Assim caminha a humanidade...
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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A escolha de Rogéria
Nadiá Paulo Ferreira
Domingo, dia 17, o programa De frente com Gabi reprisa a
entrevista com Rogéria. Uma das questões colocadas pela entre-
vistadora se dirigia ao sexo do entrevistado(a). Além do nome
artístico indicar o sexo feminino, uma série de recursos foram
usados para a transformação do seu corpo: ingeriu hormônios para
que lhe nascessem seios e fez uso de eletrólise para eliminar os
pêlos do rosto. Rogéria conta que, antes de descobrir uma nova
marca de hormônios, ficou dois anos impotente e que o tratamento
eletrolítico doía muito.
Em seguida, afirma que o fato de se considerar uma mulher
não tem nada a ver com os caracteres masculinos de seu corpo. —
“É uma questão de cabeça, está dentro de mim.” É claro que qual-
quer espectador com certa argúcia pensaria: se o sexo é uma esco-
lha subjetiva, independente da anatomia corporal, por que, então,
Rogéria fez tantos sacrifícios para operar modificações no seu
corpo? A agudeza do espírito, às vezes, fica embotada pelos pre-
conceitos que herdamos. Ou, como nos ensina o poeta Fernando
Pessoa, através de seu heterônimo Alberto Caeiro, “trazemos a
alma vestida”, o que nos impede de pensar e nos impulsiona a
repetir frases feitas. É preciso “uma aprendizagem de desaprender”,
para que não nos tornemos prisioneiros dos sentidos que, embora
desgastados pelo tempo, continuam sendo repetidos toda vez que
nos defrontamos com a questão da diferença entre os sexos. Saber a
verdade sobre a diferença sexual é impossível. Isto nos ensina a
psicanálise. Mas não é preciso conhecer a obra de Freud e de Lacan
para saber que, quando nasce uma criança e lhe escolhemos um
sexo, baseados em particularidades corporais, não temos nenhuma
garantia? Rogéria quando nasceu teve o seu sexo escolhido pelos
pais. Um bebê que recebeu um nome, sustentado pela esperança de
vir a ser um homem. Mas Rogéria se identificou com as mulheres e
escolheu outro sexo para si mesma. Esta escolha não a libertou da
crença que estabelece uma correspondência unívoca entre sexo e
anatomia. Foi preciso se travestir. Isto é, escrever marcas em seu
corpo para ingressar na série das mulheres.
Psicanálise e Nosso Tempo
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O mandamento impossível
Nadiá Paulo Ferreira
No último fim de semana de janeiro, fui participar de um
simpósio de psicanálise, em Petrópolis, promovido pela Intersecção
Psicanalítica do Brasil. O tema escolhido para o encontro foi o
Nome-do-Pai. Esta expressão Lacan foi buscar na tradição cristã.
O Nome-do-Pai, como equivalente do Nome-de-Deus, nos leva a
duas questões primordiais: qual é a verdade? O que é um pai?
Nenhuma destas perguntas podem ser respondidas integralmente.
Alguma coisa em torno da verdade e da paternidade permanece
velada, reaparecendo sempre como um enigma sem decifração.
Este enigma nos é apresentado pelo discurso cristão sob a forma
do dogma da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. A
verdade do três em Um é obscura e inquestionável. É preciso ter
fé. É preciso, também, a submissão ao preceito fundamental do
cristianismo, que é o amor. O cristianismo é a religião do amor.
Deus ama, incondicionalmente, todos os homens e estes devem
amar seus semelhantes como amam a si mesmos.
Vocês, leitores, já pensaram o que isto significa? Como posso
amar o outro como se fosse eu mesmo? Em primeiro lugar, é
preciso eliminar a diferença do outro para, só depois, pregar a
tolerância com ele. Ingressamos, assim, no reino da Igualdade. Se
tenho alguns defeitos, o outro também pode ter os seus. Todos
podem cair em tentação. Mas existem princípios universais, ele-
vados à categoria de essência, que não podem ser violados. Todo
aquele que transgride esses princípios tidos como naturais não
pode ser considerado um semelhante. Um corpo “sem alma”
pode ter uma aparência humana mas não será aceito como tal.
Será sempre o Outro: a bruxa, o herege, o homossexual, o judeu,
o negro, o burguês, etc. O Outro, como diferente, deverá ser sub-
jugado ou exterminado. Alguns momentos da história possibilita-
ram a convocação ao extermínio, como foi o caso da Inquisição,
do Nazismo e do Stalinismo. Outros, através dos mecanismos de
impunidade, propiciam a violência contra o próximo. Moro em
Ipanema e estou assistindo aos efeitos cruéis desta impunidade.
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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Para que serve um pai?
Nadiá Paulo Ferreira
Retomando a questão da paternidade, lanço a pergunta: Qual
é a função do pai, no núcleo familiar, neste final do século? Não
há dúvida de que esta posição está cada vez mais em declínio, em
virtude da intervenção do Estado. Em Nome-do-bem, criam-se leis
que visam à proteção da criança, o que possibilita, em alguns
casos, o seu encaminhamento a instituições governamentais, fa-
zendo com que os maus tratos familiares sejam substituídos pela
brutalidade dos funcionários. Este contra-senso deixo em suspenso
para que vocês, leitores, reflitam sobre isto.
O avanço das pesquisas genéticas tem contribuído bastante não
só para a aplicação de leis, no que diz respeito ao reconhecimento
da paternidade, mas também para a “produção independente”.
Não existem mais, ao nível jurídico, filhos bastardos. Existem,
sim, filhos sem o nome do pai, na certidão de nascimento, até que
alguém resolva recorrer a análises do DNA. Comprovada a pater-
nidade real, a lei exige a inclusão numa linhagem familiar, sem
levar em conta uma escolha subjetiva desejante. Filhos do
espermatozóide são criações deste final do século. Além disto, a
causa desses processos coloca em cena, quase sempre, a reivindi-
cação de ser incluído numa grande herança. Quanto à “produção
independente”, existiria melhor exemplo para indicar o enfraque-
cimento da função do pai nas relações de parentesco?
O grande desafio é que quanto mais esta função entra em declínio,
mais se reivindica que alguém seja investido desta função. Não é por
obra do Acaso que estamos assistindo ao crescimento espantoso de
seitas religiosas, encabeçadas por gurus carismáticos, verdadeiros pais
imaginários. Se Ele deixar, todos vão cair na folia, que é o Carnaval.
Se não, vão para o Retiro pedir a bênção ao Pai espiritual de todos os
homens de fé...
Psicanálise e Nosso Tempo
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