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Amor cortês IV

O jogo sexual do trovador

Nadiá Paulo Ferreira

Falei das Leis do Amor com a função de interditar o objeto

amado e de tornar o amor impossível. Vou retomá-las como técni-

cas eróticas, na medida em que estão a serviço da retenção, da

suspensão, enfim do amor interruptus.

Freud, em Três ensaios para uma teoria da sexualidade, 1905,

afirma que todas as circunstâncias que dificultam ou afastam a

realização do fim sexual favorecem a tendência para permanecer

nos atos preparativos, convertendo-os em novos fins sexuais.

O trovador para atingir o grau de amador (Drut) tinha que pas-

sar pelos seguintes estágios: Aspirante (Fenhedor), o que se conso-

me em suspiros e Suplicante (Precador), o que ousa pedir. No ritual

provençal, quando a Dama aceitava a corte do trovador, oferecia-

lhe um anel de ouro e ordenava que se levantasse e lhe beijasse a

fronte. Daí em diante, os amantes estavam unidos pelas leis da cor-

tesia: inibição do sexual, a vassalagem e a consagração do amor.



Esses estágios não exerceriam a mesma função que os prazeres

preliminares têm no ato sexual, na medida em que acabam se trans-

formando num fim em si mesmos? O trovador, depois de conseguir

o grau de amador, iria fazer parte de uma Escola literária, cujas leis

visavam a impor barreiras ao próprio amor. Estamos diante de uma

versão sobre o amor que coloca em cena um jogo. Existe coisa que

mais explicite uma invenção pela palavra do que o jogo?



Naquele tempo, os trovadores sabiam jogar... E, justamente

por isto, sabiam amar o amor.


Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

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Amor Cortês V

Os prazeres preliminares

Nadiá Paulo Ferreira

Termino a série de artigos sobre o amor cortês, retomando os

prazeres preliminares. Lacan chama atenção para o seguinte pa-

radoxo: os prazeres preliminares sustentam o prazer e são experi-

mentados como desprazer, na medida em que aumentam o estado

de tensão. No amor cortês, esses prazeres têm a função de interdi-

tar o corpo da mulher amada, fazendo com que o sexual se con-

verta numa arte erótica sublimada. Assim, o impossível de um

amor vela o impossível de, de Dois, fazer Um.

A Dama, como representante do Outro-sexo, só pode ser no-

meada com valor de Coisa (Das Ding freudiano). O que isto quer

dizer? Trata-se de um amor cuja estratégia é apontar para um

vazio. Entre a nomeação e a aparição do objeto se abre uma hiância

para a qual não há palavras. A Coisa como significante é efeito da

existência da linguagem (Cantiga de Amor) e a Coisa como objeto

(a Dama) pertence ao registro do real. E, como tal, está para além

da linguagem e só pode ter como referência o impossível.

A sublimação não tem outra função senão permitir ao homem

se referir à Coisa, isto é, colocá-lo entre o real (impossível) e a

palavra (simbólico/linguagem). No centro desse intervalo, o que

permanece é um vazio. O objeto amado no amor cortês é aborda-

do para situar o desejo ao nível da visada da Coisa. Esta Coisa,

por sua estrutura, só pode ser representada por Outra Coisa. A

Outra Coisa é a Coisa. A Coisa não se procura, acha-se. A perso-

nagem de Angela Carter, no romance A Paixão da Nova Eva,

achou Tristessa: “linda como podem ser apenas as coisas que não

existem: o mais obsedante dos paradoxos, receita de eterna insa-

tisfação”. Mas é claro que esta busca só pode ser feita quando o

homem se torna um verdadeiro artesão da palavra. A Coisa é a

Dama que os poetas encontraram para trovar.


Psicanálise e Nosso Tempo

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O enigmático sorriso do parvo

Nadiá Paulo Ferreira

Recentemente, foi lançado em vídeo o filme Cubo, do diretor

Vicenzo Natali. Uma médica, uma matemática, um ladrão — que

já tinha escapado de prisões dotadas de sistemas especiais de se-

gurança — um policial e um técnico, que trabalhou no projeto que

deu origem à construção do Cubo, são algumas das personagens

que, ao acordarem, se dão conta de que estão enjaulados num

labirinto, que apresenta armadilhas mortais. Espectadores e per-

sonagens nada sabem sobre esse projeto maquiavélico e, paulati-

namente, todos percebem que cada um não foi escolhido de forma

aleatória, mas em função de uma habilidade ou conhecimento es-

pecífico que ajudaria a encontrar a saída. Passando de um qua-

drado a outro, os personagens vão se encontrando. Alguns mor-

rem de forma violenta pelas armadilhas. Um débil mental é encon-

trado. No desenrolar da trama, a matemática descobre que os nú-

meros primos, que aparecem em cada quadrado, são coordenadas

que indicam a trilha a ser seguida. É preciso fazer contas. Neces-

sita-se de uma calculadora. Aí surge a função do débil mental,

cuja habilidade é saber fazer de cabeça as contas necessárias, in-

dicando os quadrados que podem ser percorridos.



Resolvida a charada, todos encontrariam a saída. Seria assim se

não fosse a reação de cada um diante do perigo, do medo, da morte,

dos desejos não nomeados e dos gozos inconfessos. O recalcado

reaparece sob a forma de horror e a grande armadilha, para a qual

não há coordenadas matemáticas, está dentro de cada um. Assim,

os que restaram matam-se uns aos outros. O filme termina com um

único sobrevivente: o alienado e seu sorriso parvo.



Alegoria do mundo em que vivemos, um corpo vivo e contente,

imerso no gozo idiota, caminha em frente, esperando novas ordens

para serem cumpridas. Os autores do projeto permanecem no ano-

nimato. Deles, só ficamos sabendo do Cubo e de suas vítimas.


Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

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Melanie Klein I

A guerra de Klein X Freud

Nadiá Paulo Ferreira

Melanie Klein (1882-1960), austríaca (Viena), de origem judai-

ca, afastando-se dos fundamentos freudianos, elaborou uma teoria

e uma prática psicanalíticas para o tratamento de crianças, que deu

origem a novos princípios para a formação de analistas (análise

didática). Além do livro, em quatro volumes, A psicanálise de cri-

anças, traduzido em quinze línguas, sua produção abrange, aproxi-

madamente, cinqüenta artigos.



Aos 21 anos, casa-se com o engenheiro Arthur Klein e, sete

anos depois, muda-se com o marido para Budapeste, onde entra

em contato com a obra de Freud e começa a fazer análise com

Ferenczi. Em 1918, ao participar do V Congresso da International

Psychoanalytical Association (IPA), realizado em Budapeste, as-

siste à apresentação do trabalho de Freud, “Os novos caminhos da

terapêutica psicanalítica”. Em 1919, a convite de Ferenczi, apre-

senta, na Sociedade Psicanalítica de Budapeste, seu primeiro tra-

balho sobre o tratamento de crianças, que deu origem ao seu pri-

meiro artigo publicado, “O desenvolvimento de uma criança”. Com

o recrudescimento do anti-semitismo, sendo recomendada por

Ferenczi a Karl Abraham, instala-se como psicanalista, em 1921,

na cidade de Berlim. Três anos depois, começa a fazer análise

com Abraham. No VIII Congresso da IPA, em Salzburgo, seu

trabalho apresenta marcantes divergências, tanto em relação à te-

oria de Freud quanto à concepção de sua filha, Anna Freud, em

relação ao tratamento psicanalítico com crianças. É apoiada tan-

to por Abraham quanto por Ernst Jones. Este último, tenta, inclu-

sive, intervir junto a Freud, tentando atenuar seu desagrado. A

partir daí, Melanie Klein e Anna Freud irão se tornar opositoras

sem tréguas. Com a morte de Abraham, em dezembro de 1925, e

a adesão do meio psicanalítico às idéias de Anna Freud, Melanie

Klein, que já estivera, em julho de 1925, dando uma série de confe-

rências em Londres, muda-se definitivamente para esta cidade,

onde vem a morrer de câncer do cólon.




Psicanálise e Nosso Tempo

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Melanie Klein II

Golpe de mestre de Klein

Nadiá Paulo Ferreira

O caso Dick, como ficou conhecido na literatura analítica, apon-

ta para a diferença radical entre as teorias kleiniana e lacaniana,

em relação à precedência simbólica. Para Melanie Klein, o imagi-

nário é a fonte das primeiras identificações simbólicas, determi-

nando a primeira relação do homem com o mundo exterior e com

a realidade. Já para Jacques Lacan, o simbólico, identificado com

a linguagem e suas leis, é quem possibilita a estruturação do ima-

ginário. É a entrada no simbólico que humaniza um corpo vivo

recém-chegado ao mundo. Só depois dessa inscrição simbólica é


que se constitui o eu, onde irão se organizar as relações do sujeito

com a sua imagem. Um bebê, quando se diverte com sua imagem

no espelho, só identificará esta imagem como sendo a sua e não a

de um outro semelhante, porque quem o segura diz, insistente-

mente — “Olha lá o Pedro”. É a repetição desta cena, cercada por

palavras, que possibilitará o reconhecimento de uma imagem cor-

poral como sendo a própria imagem.

Exemplifiquemos com o caso Dick. Trata-se de um menino de

quatro anos de idade, que é levado por seus pais a Melanie Klein,

com os seguintes sintomas: pobreza de vocabulário; ausência de

reações emocionais à presença da mãe e da babá; pronúncia de sons

ininteligíveis e repetição de certos ruídos; insensibilidade à dor; au-

sência de angústia; indiferença à maioria dos brinquedos e jogos;

preferência em suas brincadeiras por trens, estações rodoviárias e

maçanetas de portas.

Melanie Klein escolherá os trens para começar seu tratamento,

equacionando que o imaginário dessa criança estava estagnado, o

que a impossibilitava de desenvolver a formação de símbolos. Vere-

mos, no próximo artigo, a intervenção genial desta psicanalista,

fazendo com que esse menino, pela primeira vez, saísse de sua indi-

ferença e fizesse um apelo, perguntando pela babá e, depois, cha-

masse Melanie Klein pelo nome. Veremos, também, como este ato

será interpretado de forma radicalmente diferente por Lacan.


Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

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Melanie Klein III

Tratamento entra nos trilhos

Nadiá Paulo Ferreira

Dick chega ao consultório, Melanie Klein pega dois trens de

tamanhos diferentes e diz “Trem- papai” (para o grande) e “Trem-

Dick” (para o pequeno). O menino responde “Estação”. A partir

daí, trava-se o seguinte diálogo:

M.K. — Está escuro dentro da mamãe. Dick está dentro da

mamãe-escura. Dick — A ama? A ama? M.K. — A ama vem

logo. Dick — A ama vem logo.



Na próxima sessão, Dick corre da sala em direção ao vestíbu-

lo, que estava escuro, encontra o pequeno trem e insiste em deixá-

lo ali. Em seguida, pergunta a Melanie Klein: — “A ama vem

vindo?” Na sessão seguinte, repete o que tinha feito na sessão

anterior e, depois de se esconder atrás de uma cômoda, cheio de

angústia pronuncia pela primeira vez o nome de Melanie Klein,

chamando-a. A partir daí, se desencadeia o tratamento.



Não há dúvida de que a intervenção desta psicanalista provoca

uma virada, criando, assim, as condições para o início de um trata-

mento analítico. Depois de seu ato, vem a reflexão, onde irá desen-

volver uma teoria sobre a estrutura da subjetividade, na qual o ima-

ginário antecede o simbólico. A causa da inibição do desenvolvi-

mento de Dick está no fracasso dos mecanismos primitivos do ego.

A função mais arcaica do ego é a produção de um imaginário, de-

senvolvendo fantasias sádicas de devoração em relação ao corpo da

mãe. A não constituição deste imaginário impediu a formação de

símbolos, desencadeando uma incapacidade para tolerar a angústia

e para estabelecer uma relação com a exterioridade que o cerca.



Se o ego não pôde ser utilizado como instrumento para a

estruturação do mundo exterior, tudo se apresenta como indife-

rente e indistinto, fazendo com que Dick não responda e não faça

nenhum apelo. Veremos, no próximo artigo, como Lacan irá se

contrapor à interpretação de Melanie Klein, apontando para o fato

de que não houve nenhum fracasso do ego, porque, simplesmente,

ele não foi constituído.




Psicanálise e Nosso Tempo

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Melanie Klein IV

Excesso de realidade

Nadiá Paulo Ferreira

Para Melanie Klein, como vimos, nos artigos anteriores, Dick

estabeleceu uma relação “excessivamente real com a realidade”,

porque o desenvolvimento precoce de seu ego fez com que fosse

interrompida a constituição de seu imaginário (fantasias), o que

afetou não só as suas relações com o mundo exterior, mas também

impossibilitou-o de simbolizar.

Lacan, indagando-se sobre o que significa essa relação “ex-

cessivamente real com a realidade”, afirma que o ego de Dick não

pôde ser utilizado “de forma válida como aparelho na estruturação

desse mundo exterior” (Seminário 1, Os Escritos Técnicos de

Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 106), simplesmente, porque

não estava constituído. O simbólico — mundo da palavra — não

foi introduzido. E, conseqüentemente, não poderia haver nem uma

organização do imaginário nem uma constituição do real, introdu-

zindo a falta pela via do não. Justamente por isto, tudo para Dick é


igualmente real e indiferente (caráter uniforme da realidade).

Para Melanie Klein, os objetos fazem parte de um jogo ima-

ginário, que se organiza por expulsão, introjeção, projeção e ab-

sorção. É preciso lembrar que, para Lacan, a projeção é um meca-

nismo do ego, portanto da ordem do registro imaginário, cujo re-

gime é o da relação dual, da relação de especularidade. Já a

introjeção é um mecanismo do superego, pertencendo à ordem do

registro simbólico. Neste sentido, introjeção deve ser definida como

a incorporação de palavras. Assim, em vez de um imaginário cons-

tituído, o que vamos encontrar é um esboço de “imaginificação”


do mundo exterior, já que Dick tem alguma coisa de linguagem e

dispõe de um número reduzido de signos para exprimir o dentro e

o fora, o continente e o conteúdo.


Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

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Melanie Klein V

A escuridão de um garoto

Nadiá Paulo Ferreira

O leitor deve estar lembrado de quando Dick escapa correndo

da sala de Melanie Klein e se dirige para o vestíbulo de entrada,

que estava escuro. Lá, ele encontra o pequeno trem e insiste em

deixá-lo ali. Melanie Klein interpreta o escuro, onde Dick se refu-

gia, como sendo a representação do interior do corpo da mãe,

repleto de objetos. Lacan, discordando, afirma que o escuro re-

presenta o corpo da mãe como um interior vazio e o que Melanie

Klein não consegue ver é que há uma parte da realidade, que é
imaginada, e há outra parte, que é real. A referida pobreza imagi-

nária de Dick nada mais é do que a impossibilidade de entrar numa

relação efetiva com os objetos enquanto estruturas. Dick tem seu

sistema de linguagem, mas não faz nenhum apelo, isto é, não faz

uso da linguagem para se comunicar e sim para se expressar.

Dick se serve da linguagem de “uma forma negativista” (Seminá-

rio 1, Escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979,

p.101), portanto não responde e não demanda. O modo pelo qual

Dick se situa na linguagem está interrompido ao nível da palavra.

Ele usa a linguagem para estabelecer uma equivalência entre real

e imaginário, porque a palavra não chegou até ele.



Aqui, é importante frisar a diferença que Lacan estabelece en-

tre linguagem e palavra. A linguagem se caracteriza pelos meca-

nismos de combinação e de seleção, os quais podem ser realizados

mecanicamente por qualquer falante. Mas a palavra, a palavra

falada, aponta para o momento em que o sujeito se situa na estru-

tura da linguagem, ou seja, o momento em que irá se estabelecer

uma relação efetiva entre o sujeito e o outro pela via do apelo. Diz

Lacan (Seminário 1, id. ibid., p.106): “(...) vocês devem compre-

ender a virtude da palavra, na medida em que o ato da palavra é


um funcionamento coordenado a um sistema simbólico já esta-

belecido, típico e significativo”.




Psicanálise e Nosso Tempo

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Melanie Klein VI

Diferença entre Lingüística e Psicanálise

Nadiá Paulo Ferreira

Depois de ter enfatizado a diferença entre a palavra e a lingua-

gem, vamos estabelecer uma das diferenças entre a lingüística e a

psicanálise. A função da linguagem no campo da palavra, para a

psicanálise, ao contrário da lingüística, não é a comunicação mas

o apelo, o que mais tarde Lacan irá denominar de evocação. Qual

é a implicação do apelo? É a possibilidade de recusa, introduzindo

as relações de dependência entre o sujeito e o outro.



A intervenção de Melanie Klein, fazendo com que Dick responda

“estação” é um momento crucial, porque esboça a junção da lingua-

gem e do imaginário do sujeito pela via da palavra. É a partir daí que

tudo se desencadeia, que o tratamento da criança progride. Dick se

coloca dependente da babá, para depois, em seguida, se colocar de-

pendente de Melanie Klein.

O que Melanie Klein fez sem saber? Introduziu a verbalização e

o simbólico, possibilitando que um ser fosse nomeado por outro.

Quando Dick pergunta por sua babá, verbaliza um apelo, realizan-

do sua primeira comunicação.

Melanie Klein deu a Dick “uma pequena célula de simbolismo”,

“abriu as portas do seu inconsciente”. Não há inconsciente nato. É o

discurso de Melanie Klein que enxerta o simbólico em Dick, permi-

tindo-lhe as primeiras simbolizações da situação edipiana. Dick ain-

da não tinha tido acesso à realidade humana, por isso não esboçava

nenhum apelo. É a introdução desta criança no simbólico que permi-

tir-lhe-á fazer articulações com o imaginário e com o real. É, neste

sentido que, do ponto de vista do sujeito, se pode falar de precedência

simbólica. É a entrada no Simbólico que constitui o sujeito.




Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

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Melanie Klein VII

Convocado para o reino da palavra

Nadiá Paulo Ferreira

Finalizando a série de artigos sobre Melanie Klein e o caso

Dick, vamos tecer algumas considerações. Para Lacan, não há
dúvida de que esta psicanalista enfia simbolismo “com a maior

brutalidade no pequeno Dick” (Seminário 1, Os escritos técnicos

de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 83). A leitura de Lacan,

discordando da interpretação kleiniana, tem como ponto de parti-

da, como já vimos, a precedência do simbólico sobre o imaginá-

rio. Não podemos esquecer que, logo depois da morte de Freud,

passou a vigorar uma prática clínica que se baseava na teoria do

ego. Acreditava-se que existia um imaginário já estruturado, que

precisava ser trabalhado em uma análise para que se desencade-

asse a proliferação de identificações simbólicas.



A prática clínica de Melanie Klein não pode ser dissociada de

sua construção teórica. A brutalidade a que se refere Lacan está
diretamente articulada à noção kleiniana de ego, que confunde duas

estruturas, radicalmente, diferentes: a estrutura do sujeito e a estru-

tura do ego. Justamente em função desse equívoco, a grande contri-

buição da psicanalista, para a prática clínica com crianças, se situa

no lado do sujeito e não no do ego.

As intervenções de Melanie Klein, no tratamento de Dick, in-

troduziram essa criança no simbólico, o que possibilitou a consti-

tuição do seu eu e, portanto, a estruturação do seu imaginário.

Dick, que era um sujeito imerso no real, recebeu uma injeção de

simbólico. A partir desta inscrição no simbólico, Dick poderá vir

a se constituir como um sujeito, humanizando-se. Dick é convoca-

do para existir no reino da palavra e para iniciar sua viagem pelo

mundo. Dick se torna um ser de linguagem e, como tal, terá como

destino uma aprendizagem que se tece fio por fio na trama do

desejo que se sustenta em uma falta radical.


Psicanálise e Nosso Tempo

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Desculpas esfarrapadas das almas

Nadiá Paulo Ferreira

O livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, publicado

em 1963, acaba de ser reeditado pela Companhia das Letras. Jorna-

lista, de origem judaica e nacionalidade alemã, exila-se nos Estados

Unidos, em 1941. O nazismo não é uma história dos antepassados,

mas uma experiência que não pode ser esquecida. E, justamente por

isso, em abril de 1961, na cidade de Jerusalém, lá estava Hannah

para assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, o oficial da SS que

comandou o assassinato em massa dos judeus na câmara de gás e,

em maio de 1960, é seqüestrado por um comando israelense em

Buenos Aires. Eichmann, um homem que entrou para a SS e fez

carreira, não é diferente dos outros que ofertaram o saber da ciência

ou o saber-fazer da arte para dar sustentação teórica e estética ao

extermínio étnico, como foi demonstrado no documentário sueco,



Arquitetura da destruição, dirigido por Peter Cohen, em 1989.

Terminada a guerra, com raríssimas exceções, todos os que

participaram dessa barbaridade sem limites se apresentam como

belas almas inocentes. Hannah Arendt fica perplexa diante de

Eichmann, quando diz que nada tem contra os judeus e que sim-

plesmente estava cumprindo a lei. A fala de Eichmann inaugura a

nova postura ética do final do século XX e início do século XXI.

Hannah, tentando dar conta dessa transformação ética, cria a teo-

ria da banalização do mal. Hoje, a lei do Outro, encarnada na

pessoa do Führer, despersonalizou-se nos liames burocráticos que

rondam a nova face das corporações econômicas, universitárias e

de serviços de informações. Hoje, sem o Führer, oferece-se o anoni-

mato em Nome-da-Lei. Aprimoraram-se os meios de proteção à
implicação do sujeito com seus atos. A ética do desejo é jogada no

lixo. Quem não ouviu o dizer das belas almas: — Eu também não

concordo, mas esta é a lei”? Alienado na lei (Outro), o não concor-

dante tomará todas as medidas necessárias para a sua aplicação...




Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

58

1 Os nomes são fictícios.

2 Agalma em grego significa ornamento, enfeite. Jacques Lacan, no

Seminário 8, A transferência, publicado por Jorge Zahar, em 1992,

comentando um dos episódios de O Banquete de Platão, que é a chega-

da inesperada de Alcebíades, define agalma como jóia, objeto precio-

so, ou seja, como alguma coisa que remete para uma riqueza interior.

É exatamente neste sentido que uso o termo agalma.


Psicanálise e Nosso Tempo

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NOSSO TEMPO


Psicanálise e Nosso Tempo

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Nosso tempo ...

É preciso acreditar nele

Mário Bruno

De certo, é preciso encontrar instrumentos para compreender

este fim de século, com sua materialidade, seu espírito e seus dis-

cursos. Por que não afirmar que precisamos acreditar no nosso

tempo? Talvez, necessitemos de crenças legítimas para o próximo

milênio. Dir-se-ia que temos, na artéria do povo brasileiro, a nos-

sa memória e a do primeiro mundo – com seus erros e acertos. E,

em meio a tantas crises, idas e retornos, é fundamental acreditar

no instante em que vivemos. Urge que re-inventemos nossas uto-

pias, o nosso modo de pensar, viver e sentir. Re-criemos o nosso

povo, na sua alegria e beleza.

Há que ter sonhos. É nesse clima de apostas no porvir que

situaremos alguns dos textos de Marina Machado Rodrigues. Ela

nos fala de uma sentença de morte para a demagogia, para o cinis-

mo e vê no espírito do carnaval a oxigenação da capacidade de

sonhar. Marina reflete com elegância, humor e leveza sobre ques-

tões sérias como a perda da fantasia, a discriminação social, a

repressão e a misoginia.



Num tom crítico e grave, Cláudia Amorim, em seus artigos,

conduz as matrizes e os desenvolvimentos de suas formulações.

Ora percebendo a situação daqueles que perderam o direito à voz

e à vida; ora, localizando, entre o real e o fingimento, a intolerân-

cia que “existe de fato”. Assim, com clareza, procura possibilida-

des de espaços, em meio à razão cínica hodierna, para o desejo e

para a invenção do outro: direito à diferença e à dignidade.



O leitor mais atento perceberá a fina abordagem de As Crôni-

cas de Viagem, de Cecília Meireles. Leodegário Amarante de Aze-

vedo Filho vai direto aos interstícios do texto, dando maior visibi-

lidade à experiência poética da autora para quem “todos os dias


Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

62

são novos e antigos e todas as ruas são de hoje e da eternidade”.

Talvez não seja excessivo declarar que Iremar Maciel de Brito

vê no teatro e na arte popular a grande celebração da vida. É isso

que nos encanta em seus artigos: o entusiasmo pela beleza da rusti-

cidade no aparentemente óbvio e simples. Iremar nos conduz a

viajar atravessando mundos mágicos, habitados por poéticos ato-

res de circo e cantores de embolada.

Saliento ainda o que nos diz Cláudio Cézar Henriques, ao ana-

lisar criticamente o uso abusivo, nos dias de hoje, da língua oral

em contextos diferenciados. Cláudio defende, sem dogmatismo,

um conhecimento maior da língua não coloquial e da materialidade

dada às palavras pelos grandes autores.



O que há de fascinante nos textos de Maria do Amparo Tavares

Maleval é a facilidade com que nos reconduz a períodos tão re-

motos e nos mostra o quanto são atuais. Por outras palavras, traz

para a ordem do saber formulável, em nosso tempo, valores, hábi-

tos, poesias, “cousas de folgar”, ... pertencentes a épocas distan-

tes e próximas.

Dois grandes temas são abordados com nitidez e estilo por Ma-

ria Helena Sansão Fontes: o leitor e a história. Sublinhando os im-

perativos do mundo atual, Maria Helena aponta falsos e verdadeiros

dilemas com os quais nos deparamos em nosso cotidiano. Muito

oportunamente, seus textos falam de uma compreensão après coup



da história e da paixão pela escritura como marcha na contramão.

O texto de Darcília Simões é com certeza instigante: ao anali-

sar a comercialização (fast food) do ensino, percebe, como fenô-

meno convergente, o descaso do poder em relação à pesquisa

universitária. Darcília encontra um fio bem humorado para fazer

entrar, no tratamento desses temas, problemáticas fundamentais

em nossos dias.

São diversas as questões apontadas por Cláudio de Sá Capuano,

assim como o âmbito de suas irradiações: a divulgação da literatura

lusófona, o risco de estar vivo, o choque entre o velho e o novo,

erros de interpretação que podem modificar uma vida ... Sublinhe-

se à clareza de seus argumentos e a poeticidade de sua escrita.



Entre tantas coisas que povoam a cultura dos anos 60 aos 90,

tem razão Ceila Ferreira Brandão em ressaltar a importância do

Sabadoyle. Quase um enigma: – como, durante anos, Plínio Doyle

conseguiu congregar tão diversas tendências? Evidentemente, este

artigo nos convida a uma laboriosa pesquisa.




Psicanálise e Nosso Tempo

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A partir de uma referência à peça Arte, de Yasmine Reza,

Robson Lacerda Dutra aborda dois temas controversos: as difi-

culdades de valoração da arte e a definição dos limites de interferên-

cia na prática interpretativa.

Torna-se sugestivo verificar que, no início do século XX, um

mulato, homossexual, tenha conquistado, numa vida vertiginosa,

popularidade ( acompanhada, é claro, de muitos desafetos) . Mari-

ângela Monsores Furtado Capuano ressalta com justiça a impor-

tância de João do Rio, que despertado agora de seu silêncio, reve-

la-nos faces pouco conhecida de nossa “frívola city” .

É impossível refazer aqui o percurso apaixonante a que Marco

Antônio Coutinho Jorge nos convida. Poder-se-á dizer que nos

deu um belo artigo de crítica aos ideais imediatistas que recalcam,

no mundo moderno, o que há de virtual numa criança. Partindo de

duas obras, Amor, ódio e separação, de Maud Mannoni, e Cen-

tral do Brasil, filme de Walter Salles Jr., Marco Antônio, na abor-

dagem de seu tema, fala da beleza que pode surgir de um simples

encontro ao acaso.

Por fim, informaremos que os artigos, aos quais já nos referi-

mos, foram publicados anteriormente na coluna “Nosso Tempo”,

do jornal O Correio. Desejamos que estes escritos venham a ser,

dentro da diversidade de itinerários e abordagens, portadores de

mudanças e que, em toda a sua vitalidade mobilizadora, inspirem

novos sentimentos e idéias.


Psicanálise e Nosso Tempo

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