Os Lusíadas, de Luís de Camões Texto-base



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Canto IV

DESPOIS de procelosa tempestade,

Nocturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,

Esperança de porto e salvamento;

Aparta o Sol a negra escuridade,

Removendo o temor ao pensamento:

Assi no Reino forte aconteceu

Despois que o Rei Fernando faleceu.


«Porque, se muito os nossos desejaram

Quem os danos e ofensas vá vingando

Naqueles que tão bem se aproveitaram

Do descuido remisso de Fernando,

Despois de pouco tempo o alcançaram,

Joane, sempre ilustre, alevantando

Por Rei, como de Pedro único herdeiro

(Ainda que bastardo) verdadeiro.


«Ser isto ordenação dos Céus divina

Por sinais muito claros se mostrou~

Quando em Évora a voz de üa minina,

Ante tempo falando, o nomeou.

E, como causa, enfim, que o Céu destina,

No berço o corpo e a voz alevantou:

- «Portugal, Portugal (alçando a mão,

Disse) polo Rei novo, Dom João!»


«Alteradas então do Reino as gentes

Co ódio que ocupado os peitos tinha,

Absolutas cruezas e evidentes

Faz do povo o furor, por onde vinha;

Matando vão amigos e parentes

Do adúltero Conde e da Rainha,

Com quem sua incontinência desonesta

Mais (despois de viúva) manifesta.


«Mas ele, enfim, com causa desonrado,

Diante dela a ferro frio morre,

De outros muitos na morte acompanhado,

Que tudo o fogo erguido queima e corre:

Quem, como Astianás, precipitado,

Sem lhe valerem ordens, de alta torre;

A quem ordens, nem aras, nem respeito;

Quem nu por ruas, e em pedaços feito.


«Podem-se pôr em longo esquecimento

As cruezas mortais que Roma viu,

Feitas do feroz Mário e do cruento

Cila, quando o contrário lhe fugiu.

Por isso Lianor, que o sentimento

Do morto Conde ao mundo descobriu,

Faz contra Lusitânia vir Castela,

Dizendo ser sua filha herdeira dela.


«Beatriz era a filha, que casada

Co Castelhano está que o Reino pede,

Por filha de Fernando reputada,

Se a corrompida fama lho concede.

Com esta voz Castela alevantada,

Dizendo que esta filha ao pai sucede,

Suas forças ajunta, pera as guerras,

De várias regiões e várias terras.


«Vêm de toda a província que de um Brigo

(Se foi) já teve o nome derivado;

Das terras que Fernando e que Rodrigo

Ganharam do tirano e Mauro estado.

Não estimam das armas o perigo

Os que cortando vão co duro arado

Os campos Lioneses, cuja gente

Cos Mouros foi nas armas excelente.


«Os Vândalos, na antiga valentia

Ainda confiados, se ajuntavam

Da cabeça de toda Andaluzia,

Que do Guadalquibir as águas lavam.

A nobre Ilha também se apercebia

Que antigamente os Tírios habitavam,

Trazendo por insígnias verdadeiras

As Hercúleas colunas nas bandeiras.


«Também vêm lá do Reino de Toledo,

Cidade nobre e antiga, a quem cercando

O Tejo em torno vai, suave e ledo,

Que das serras de Conca vem manando.

A vós outros também não tolhe o medo

Ó sórdidos Galegos, duro bando,

Que, pera resistirdes, vos armastes,

Àqueles cujos golpes já provastes.


«Também movem da guerra as negras fúrias

A gente Bizcainha, que carece

De polidas razões, e que as injúrias

Muito mal dos estranhos compadece.

A terra de Guipúscua e das Astúrias,

Que com minas de ferro se ennobrece,

Armou dele os soberbos moradores,

Pera ajudar na guerra a seus senhores.


«Joane, a quem do peito o esforço crece,

Como a Sansão Hebreio da guedelha,

Posto que tudo pouco lhe parece,

Cos poucos do seu Reino se aparelha;

E, não porque conselho lhe falece,

Cos principais senhores se aconselha,

Mas só por ver das gentes as sentenças,

Que sempre houve entre muitos diferenças.


«Não falta com razões quem desconcerte

Da opinião de todos, na vontade;

Em quem o esforço antigo se converte

Em desusada e má deslealdade,

Podendo o temor mais, gelado, inerte,

Que a própria e natural fidelidade.

Negam o Rei e a Pátria e, se convém,

Negarão (como Pedro) o Deus que têm.


«Mas nunca foi que este erro se sentisse

No forte Dom Nuno Álveres; mas antes,

Posto que em seus irmãos tão claro o visse,

Reprovando as vontades inconstantes,

Àquelas duvidosas gentes disse,

Com palavras mais duras que elegantes,

A mão na espada, irado e não facundo,

Ameaçando a terra, o mar e o mundo:


- «Como? Da gente ilustre Portuguesa

Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?

Como? Desta província, que princesa

Foi das gentes na guerra em toda parte,

Há-de sair quem negue ter defesa?

Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte

De Português, e por nenhum respeito

O próprio Reino queira ver sujeito?


«Como? Não sois vós inda os descendentes

Daqueles que, debaixo da bandeira

Do grande Henriques, feros e valentes,

Vencestes esta gente tão guerreira,

Quando tantas bandeiras, tantas gentes

Puseram em fugida, de maneira

Que sete ilustres Condes lhe trouxeram

Presos, afora a presa que tiveram?


«Com quem foram contino sopeados

Estes, de quem o estais agora vós,

Por Dinis e seu filho sublimados,

Senão cos vossos fortes pais e avôs?

Pois se, com seus descuidos ou pecados,

Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,

Torne-vos vossas forças o Rei novo,

Se é certo que co Rei se muda o povo.


«Rei tendes tal que, se o valor tiverdes

Igual ao Rei que agora alevantastes,

Desbaratareis tudo o que quiserdes,

Quanto mais a quem já desbaratastes.

E se com isto, enfim, vos não moverdes

Do penetrante medo que tomastes,

Atai as mãos a vosso vão receio,

Que eu só resistirei ao jugo alheio.


«Eu só, com meus vassalos e com esta

(E dizendo isto arranca meia espada),

Defenderei da força dura e infesta

A terra nunca de outrem sojugada.

Em virtude do Rei, da pátria mesta,

Da lealdade já por vós negada,

Vencerei não só estes adversários,

Mas quantos a meu Rei forem contrários!»


«Bem como entre os mancebos recolhidos

Em Canúsio, relíquias sós de Canas,

Já pera se entregar quási movidos

À fortuna das forças Africanas,

Cornélio moço os faz que, compelidos

Da sua espada, jurem que as Romanas

Armas não deixarão, enquanto a vida

Os não deixar ou nelas for perdida:


«Destarte a gente força e esforça Nuno,

Que, com lhe ouvir as últimas razões,

Removem o temor frio, importuno,

Que gelados lhe tinha os corações.

Nos animais cavalgam de Neptuno,

Brandindo e volteando arremessões;

Vão correndo e gritando, a boca aberta:

- «Viva o famoso Rei que nos liberta!»


«Das gentes populares, uns aprovam

A guerra com que a pátria se sustinha;

Uns as armas alimpam e renovam,

Que a ferrugem da paz gastadas tinha:

Capacetes estofam, peitos provam,

Arma-se cada um como convinha;

Outros fazem vestidos de mil cores,

Com letras e tenções de seus amores.


«Com toda esta lustrosa companhia

Joane forte sai da fresca Abrantes,

Abrantes, que também da fonte fria

Do Tejo logra as águas abundantes.

Os primeiros armígeros regia

Quem pera reger era os mui possantes

Orientais exércitos sem conto

Com que passava Xerxes o Helesponto;


«Dom Nuno Alveres digo: verdadeiro

Açoute de soberbos Castelhanos,

Como já o fero Huno o foi primeiro

Pera Franceses, pera Italianos.

Outro também, famoso cavaleiro,

Que a ala direita tem dos Lusitanos,

Apto pera mandá-los e regê-los,

Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos.


«E da outra ala, que a esta corresponde,

Antão Vasques de Almada é capitão,

Que despois foi de Abranches nobre Conde;

Das gentes vai regendo a sestra mão.

Logo na retaguarda não se esconde

Das Quinas e Castelos o pendão,

Com Joane, Rei forte em toda parte,

Que escurecendo o preço vai de Marte.


«Estavam pelos muros, temerosas

E de um alegre medo quási frias,

:Rezando, as mães, irmãs, damas e esposas,

Prometendo jejuns e romarias.

Já chegam as esquadras belicosas

Defronte das imigas companhias,

Que com grita grandíssima os recebem;

E todas grande dúvida concebem.


«Respondem as trombetas mensageiras,

Pífaros sibilantes e atambores;

Alférezes volteiam as bandeiras,

Que variadas são de muitas cores.

Era no seco tempo que nas eiras

Ceres o fruto deixa aos lavradores;

Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto;

Baco das uvas tira o doce mosto.


«Deu sinal a trombeta Castelhana,

Horrendo, fero, ingente e temeroso;

Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana

Atrás tornou as ondas de medroso.

Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana;

Correu ao mar o Tejo duvidoso;

E as mães, que o som terríbil escuitaram,

Aos peitos os filhinhos apertaram.


«Quantos rostos ali se vêm sem cor,

Que ao coração acode o sangue amigo!

Que, nos perigos grandes, o temor

É maior muitas vezes que o perigo.

E se o não é, parece-o; que o furor

De ofender ou vencer o duro imigo

Faz não sentir que é perda grande e rara

Dos membros corporais, da vida cara.


«Começa-se a travar a incerta guerra:

De ambas partes se move a primeira ala;

Uns leva a defensão da própria terra,

Outros as esperanças de ganhá-la.

Logo o grande Pereira, em quem se encerra

Todo o valor, primeiro se assinala:

Derriba e encontra e a terra enfim semeia,

Dos que a tanto desejam, sendo alheia.


«Já pelo espesso ar os estridentes

Farpões, setas e vários tiros voam;

Debaxo dos pés duros dos ardentes

Cavalos treme a terra, os vales soam.

Espedaçam-se as lanças, e as frequentes

Quedas co as duras armas tudo atroam.

Recrecem os imigos sobre a pouca

Gente do fero Nuno, que os apouca.


«Eis ali seus irmãos contra ele vão

(Caso feio e cruel!); mas não se espanta,

Que menos é querer matar o irmão,

Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta.

Destes arrenegados muitos são

No primeiro esquadrão, que se adianta

Contra irmãos e parentes (caso estranho),

Quais nas guerras civis de Júlio [ e ] Magno


«O tu, Sertório, ó nobre Coriolano,

Catilina, e vós outros dos antigos

Que contra vossas pátrias com profano

Coração vos fizestes inimigos:

E se lá no reino escuro de Sumano

Receberdes gravíssimos castigos,

Dizei-lhe que também dos Portugueses

Alguns tredores houve algüas vezes.


«Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,

Tantos dos inimigos a eles vão!

Está ali Nuno, qual pelos outeiros

De Ceita está o fortíssimo lião

Que cercado se vê dos cavaleiros

Que os campos vão correr de Tutuão:

Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso,

Torvado um pouco está, mas não medroso;


«Com torva vista os vê, mas a natura

Ferina e a ira não lhe compadecem

Que as costas dê, mas antes na espessura

Das lanças se arremessa, que recrecem.

Tal está o cavaleiro, que a verdura

Tinge co sangue alheio; ali perecem

Alguns dos seus, que o ânimo valente

Perde a virtude contra tanta gente.


«Sentiu Joane a afronta que passava

Nuno, que, como sábio capitão,

Tudo corria e via e a todos dava,

Com presença e palavras, coração.

Qual parida lioa, fera e brava,

Que os filhos, que no ninho sós estão,

Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,

O pastor de Massília lhos furtara,


«Corre raivoso e freme e com bramidos

Os montes Sete Irmãos atroa e abala:

Tal Joane, com outros escolhidos

Dos seus, correndo acode à primeira ala:

- «O fortes companheiros, ó subidos

Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,

Defendei vossas terras, que a esperança

Da liberdade está na nossa lança!


«Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro,

Que entre as lanças e setas e os arneses

Dos inimigos corro e vou primeiro;

Pelejai, verdadeiros Portugueses! »

Isto disse o magnânimo guerreiro

E, sopesando a lança quatro vezes,

Com força tira; e deste único tiro

Muitos lançaram o último suspiro.


«Porque eis os seus, acesos novamente

Dua nobre vergonha e honroso fogo,

Sobre qual mais, com ânimo valente,

Perigos vencerá do Márcio jogo,

Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente;

Rompem malhas primeiro e peitos logo.

Assi recebem junto e dão feridas,

Como a quem já não dói perder as vidas.


«A muitos mandam ver o Estígio lago,

Em cujo corpo a morte e o ferro entrava.

O Mestre morre ali de Santiago,

Que fortìssimamente pelejava;

Morre também, fazendo grande estrago,

Outro Mestre cruel de Calatrava.

Os Pereiras também, arrenegados,

Morrem, arrenegando o Céu e os Fados.


«Muitos também do vulgo vil, sem nome,

Vão, e também dos nobres, ao Profundo,

Onde o trifauce Cão perpétua fome

Tem das almas que passam deste mundo.

E por que mais aqui se amanse e dome

A soberba do imigo furibundo,

A sublime bandeira Castelhana

Foi derribada òs pés da Lusitana.


«Aqui a fera batalha se encruece

Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;

A multidão da gente que perece

Tem as flores da própria cor mudadas.

Já as costas dão e as vidas; já falece

O furor e sobejam as lançadas;

Já de Castela o Rei desbaratado

Se vê e de seu propósito mudado.


«O campo vai deixando ao vencedor,

Contente de lhe não deixar a vida.

Seguem-no os que ficaram, e o temor

Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.

Encobrem no profundo peito a dor

Da morte, da fazenda despendida,

Da mágoa, da desonra e triste nojo

De ver outrem triunfar de seu despojo.


«Alguns vão maldizendo e blasfemando

Do primeiro que guerra fez no mundo;

Outros a sede dura vão culpando

Do peito cobiçoso e sitibundo,

Que, por tomar o alheio, o miserando

Povo aventura às penas do Profundo,

Deixando tantas mães, tantas esposas,

Sem filhos, sem maridos, desditosas.


«O vencedor Joane esteve os dias

Costumados no campo, em grande glória;

Com ofertas, despois, e romarias,

As graças deu a Quem lhe deu vitória.

Mas Nuno, que não quer por outras vias

Entre as gentes deixar de si memória

Senão por armas sempre soberanas,

Pera as terras se passa Transtaganas.


«Ajuda-o seu destino de maneira

Que fez igual o efeito ao pensamento,

Porque a terra dos Vândalos, fronteira,

Lhe concede o despojo e o vencimento.

Já de Sevilha a Bética bandeira,

E de vários senhores, num momento

Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa,

Obrigados da força Portuguesa.


«Destas e outras vitórias longamente

Eram os Castelhanos oprimidos,

Quando a paz, desejada já da gente,

Deram os vencedores aos vencidos,

Despois que quis o Padre omnipotente

Dar os Reis inimigos por maridos

As duas Ilustríssimas Inglesas,

Gentis, fermosas, ínclitas princesas.


«Não sofre o peito forte, usado à guerra,

Não ter imigo já a quem faça dano;

E assi, não tendo a quem vencer na terra,

Vai cometer as ondas do Oceano

Este é o primeiro Rei que se desterra

Da pátria, por fazer que o Africano

Conheça, pelas armas, quanto excede

A lei de Cristo à lei de Mafamede.


«Eis mil nadantes aves, pelo argento

Da furiosa Tétis inquieta,

Abrindo as pandas asas vão ao vento,

Pera onde Alcides pôs a extrema meta.

O monte Abila e o nobre fundamento

De Ceita toma, e o torpe Mahometa

Deita fora, e segura toda Espanha

Da Juliana, má e desleal manha.


«Não consentiu a morte tantos anos

Que de Herói tão ditoso se lograsse

Portugal, mas os coros soberanos

Do Céu supremo quis que povoasse.

Mas, pera defensão dos Lusitanos,

Deixou Quem o levou, quem governasse

E aumentasse a terra mais que dantes:

Ínclita geração, altos Infantes.


«Não foi do Rei Duarte tão ditoso

O tempo que ficou na suma alteza,

Que assi vai alternando o tempo iroso

O bem co mal, o gosto co a tristeza.

Quem viu sempre um estado deleitoso?

Ou quem viu em Fortuna haver firmeza?

Pois inda neste Reino e neste Rei

Não usou ela tanto desta lei?


«Viu ser cativo o santo irmão Fernando

(Que a tão altas empresas aspirava),

Que, por salvar o povo miserando

Cercado, ao Sarraceno se entregava.

Só por amor da pátria está passando

A vida, de senhora feita escrava,

Por não se dar por ele a forte Ceita.

Mais o público bem que o seu respeita.


«Codro, por que o inimigo não vencesse,

Deixou antes vencer da morte a vida;

Régulo, por que a pátria não perdesse,

Quis mais a liberdade ver perdida.

Este, por que se Espanha não temesse,

A cativeiro eterno se convida!

Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto,

Nem os Décios leais, fizeram tanto.


«Mas Afonso, do Reino único herdeiro,

Nome em armas ditoso em nossa Hespéria.

Que a soberba do Bárbaro fronteiro

Tornou em baxa e humílima miséria,

Fora por certo invicto cavaleiro,

Se não quisera ir ver a terra Ibéria.

Mas Africa dirá ser impossíbil

Poder ninguém vencer o Rei terríbil.


«Este pôde colher as maçãs de ouro

Que somente o Tiríntio colher pôde.

Do jugo que lhe pôs, o bravo Mouro

A cerviz inda agora não sacode.

Na fronte a palma leva e o verde louro

Das vitórias do Bárbaro, que acode

A defender Alcácer, forte vila,

Tângere populoso e a dura Arzila.


«Porém elas, enfim, por força entradas

Os muros abaxaram de diamante

Às Portuguesas forças, costumadas

A derribarem quanto acham diante.

Maravilhas em armas, estremadas

E de escritura dinas elegante,

Fizeram cavaleiros nesta empresa,

Mais afinando a fama Portuguesa.


«Porém despois, tocado de ambição

E glória de mandar, amara e bela,

Vai cometer Fernando de Aragão,

Sobre o potente Reino de Castela.

Ajunta-se a inimiga multidão

Das soberbas e várias gentes dela,

Desde Cáliz ao alto Perineu,

Que tudo ao Rei Fernando obedeceu.


«Não quis ficar nos Reinos occioso

O mancebo Joane, e logo ordena

De ir ajudar o pai ambicioso,

Que então lhe foi ajuda não pequena.

Saiu-se, enfim, do trance perigoso,

Com fronte não torvada, mas serena.

Desbaratado o pai sanguinolento,

Mas ficou duvidoso o vencimento;


«Porque o filho, sublime e soberano,

Gentil, forte, animoso cavaleiro,

Nos contrários fazendo imenso dano,

Todo um dia ficou no campo inteiro.

Destarte foi vencido Octaviano,

E António vencedor, seu companheiro,

Quando daqueles que César mataram

Nos Filípicos campos se vingaram.


«Porém, despois que a escura noite eterna

Afonso apousentou no Céu sereno,

O Príncipe que o Reino então governa

Foi Joane segundo e Rei trezeno.

Este, por haver fama sempiterna,

Mais do que tentar pode homem terreno

Tentou, que foi buscar da roxa Aurora

Os términos, que eu vou buscando agora.


«Manda seus mensageiros, que passaram

Espanha, França, Itália celebrada,

E lá no ilustre porto se embarcaram

Onde já foi Parténope enterrada:

Nápoles, onde os Fados se mostraram,

Fazendo-a a várias gentes subjugada,

Pola ilustrar, no fim de tantos anos,

Co senhorio de ínclitos Hispanos.


«Polo mar alto Sículo navegam;

Vão-se às praias de Rodes arenosas;

E dali às ribeiras altas chegam

Que com morte de Magno são famosas;

Vão a Mênfis, e às terras que se regam

Das enchentes Nilóticas undosas;

Sobem à Etiópia, sobre Egipto,

Que de Cristo lá guarda o santo rito.


«Passam também as ondas Eritreias,

Que o povo de Israel sem nau passou;

Ficam-lhe atrás as serras Nabateias,

Que o filho de Ismael co nome ornou.

As costas odoríferas Sabeias,

Que a mãe do belo Adónis tanto honrou,

Cercam, com toda a Arábia descoberta,

Feliz, deixando a Pétrea e a Deserta.


«Entram no Estreito Pérsico, onde dura

Da confusa Babel inda a memória;

Ali co Tigre o Eufrates se mistura,

Que as fontes onde nascem têm por glória.

Dali vão em demanda da água pura

(Que causa inda será de larga história)

Do Indo, pelas ondas do Oceano,

Onde não se atreveu passar Trajano.


«Viram gentes incógnitas e estranhas

Da Índia, da Carmânia e Gedrosia,

Vendo vários costumes, várias manhas,

Que cada região produze e cria.

Mas de vias tão ásperas, tamanhas,

Tornar-se fàcilmente não podia.

Lá morreram, enfim, e lá ficaram,

Que à desejada pátria não tornaram.


«Parece que guardava o claro Céu

A Manuel e seus merecimentos

Esta empresa tão árdua, que o moveu

A subidos e ilustres movimentos;

Manuel, que a Joane sucedeu

No Reino e nos altivos pensamentos,

Logo como tomou do Reino cargo,

Tomou mais a conquista do mar largo.


«O qual, como do nobre pensamento

Daquela obrigação que lhe ficara

De seus antepassados, cujo intento

Foi sempre acrecentar a terra cara,

Não deixasse de ser um só momento

Conquistado, no tempo que a luz clara

Foge, e as estrelas nítidas que saem

A repouso convidam quando caem,


«Estando já. deitado no áureo leito,

Onde imaginações mais certas são,

Revolvendo contino no conceito

De seu ofício e sangue a obrigação,

Os olhos lhe ocupou o sono aceito,

Sem lhe desocupar o coração;

Porque, tanto que lasso se adormece,

Morfeu em várias formas lhe aparece.


«Aqui se lhe apresenta que subia

Tão alto que tocava à prima Esfera,

Donde diante vários mundos via,

Nações de muita gente, estranha e fera.

E lá bem junto donde nace o dia,

Despois que os olhos longos estendera,

Viu de antigos, longincos e altos montes

Nacerem duas claras e altas fontes.


«Aves agrestes, feras e alimárias

Pelo monte selvático habitavam;

Mil árvores silvestres e ervas várias

O passo e o trato às gentes atalhavam.

Estas duras montanhas, adversárias

De mais conversação, por si mostravam

Que, dês que Adão pecou aos nossos anos,

Não as romperam nunca pés humanos.


«Das águas se lhe antolha que saíam,

Par'ele os largos passos inclinando,

Dous homens, que mui velhos pareciam,

De aspeito, inda que agreste, venerando.

Das pontas dos cabelos lhe saíam

Gotas, que o corpo todo vão banhando;

A cor da pele, baça e denegrida;

A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.


«D'ambos de dous a fronte coroada

Ramos não conhecidos e ervas tinha.

Um deles a presença traz cansada,

Como quem de mais longe ali caminha;

E assi a água, com ímpeto alterada,

Parecia que doutra parte vinha,

Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa

Vai buscar os abraços de Aretusa.


«Este, que era o mais grave na pessoa,

Destarte pera o Rei de longe brada:

- «Ó tu, a cujos reinos e coroa

Grande parte do mundo está guardada,

Nós outros, cuja fama tanto voa,

Cuja cerviz bem nunca foi domada,

Te avisamos que é tempo que já mandes

A receber de nós tributos grandes.


«Eu sou o ilustre Ganges, que na terra

Celeste tenho o berço verdadeiro;

Estoutro é o Indo, Rei que, nesta serra

Que vês, seu nascimento tem primeiro.

Custar-t'-emos contudo dura guerra;

Mas, insistindo tu, por derradeiro,

Com não vistas vitórias, sem receio

A quantas gentes vês porás o freio.»


«Não disse mais o Rio ilustre e santo,

Mas ambos desparecem num momento.

Acorda Emanuel cum novo espanto

E grande alteração de pensamento.

Estendeu nisto Febo o claro manto

Pelo escuro Hemispério somnolento;

Veio a manhã no céu pintando as cores

De pudibunda rosa e roxas flores.


«Chama o Rei os senhores a conselho

E propõe-lhe as figuras da visão;

As palavras lhe diz do santo velho,

Que a todos foram grande admiração.

Determinam o náutico aparelho,

Pera que, com sublime coração,

Vá a gente que mandar cortando os mares

A buscar novos climas, novos ares.


«Eu, que bem mal cuidava que em efeito

Se pusesse o que o peito me pedia,

Que sempre grandes coisas deste jeito,

Pres[s]ago, o coração me prometia,

Não sei por que razão, por que respeito,

Ou por que bom sinal que em mi se via,

Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave

Deste cometimento grande e grave.


«E com rogo e palavras amorosas,

Que é um mando nos Reis que a mais obriga,

Me disse: - «As cousas árduas e lustrosas

Se alcançam com trabalho e com fadiga;

Faz as pessoas altas e famosas

A vida que se perde e que periga,

Que, quando ao medo infame não se rende,

Então, se menos dura, mais se estende.


«Eu vos tenho entre todos escolhido

Pera üa empresa, qual a vós se deve,

Trabalho ilustre, duro e esclarecido,

O que eu sei que por mi vos será leve.»

«Não sofri mais, mas logo: - «Ó Rei subido,

Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,

É tão pouco por vós que mais me pena

Ser esta vida cousa tão pequena.

«Imaginai tamanhas aventuras

Quais Euristeu a Alcides inventava:

O lião Cleonéu, Harpias duras,

O porco de Erimanto, a Hidra brava,

Decer, enfim, às sombras vãs e escuras

Onde os campos de Dite a Estige lava;

Porque a maior perigo, a mor afronta,

Por vós, ó Rei, o esprito e carne é pronta.»


«Com mercês sumptuosas me agardece

E com razões me louva esta vontade;

Que a virtude louvada vive e crece

E o louvor altos casos persuade.

A acompanhar-me logo se oferece,

Obrigado d'amor e d'amizade,

Não menos cobiçoso de honra e fama,

O caro meu irmão Paulo da Gama.


«Mais se me ajunta Nicolau Coelho,

De trabalhos mui grande sofredor.

Ambos são de valia e de conselho,

D'experiência em armas e furor.

Já de manceba gente me aparelho,

Em que crece o desejo do valor;

Todos de grande esforço; e assi parece

Quem a tamanhas cousas se oferece.


«Foram de Emanuel remunerados,

Por que com mais amor se apercebessem,

E com palavras altas animados

Pera quantos trabalhos sucedessem.

Assi foram os Mínias ajuntados,

Pera que o Véu dourado combatessem,

Na fatídica nau, que ousou primeira

Tentar o mar Euxínio, aventureira.


«E já no porto da ínclita Ulisseia,

Cum alvoroço nobre e cum desejo

(Onde o licor mistura e branca areia

Co salgado Neptuno o doce Tejo)

As naus prestes estão; e não refreia

Temor nenhum o juvenil despejo,

Porque a gente marítima e a de Marte

Estão pera seguir-me a toda a parte.


«Pelas praias vestidos os soldados

De várias cores vêm e várias artes,

E não menos de esforço aparelhados

Pera buscar do mundo novas partes.

Nas fortes naus os ventos sossegados

Ondeiam os aéreos estandartes;

Elas prometem, vendo os mares largos,

De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos.


«Despois de aparelhados, desta sorte,

De quanto tal viagem pede e manda,

Aparelhámos a alma pera a morte,

Que sempre aos nautas ante os olhos anda.

Pera o sumo Poder, que a etérea Corte

Sustenta só co a vista veneranda,

Implorámos favor que nos guiasse

E que nossos começos aspirasse.


«Partimo-nos assi do santo templo

Que nas praias do mar está assentado,

Que o nome tem da terra, pera exemplo,

Donde Deus foi em carne ao mundo dado.

Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo

Como fui destas praias apartado,

Cheio dentro de dúvida e receio,

Que apenas nos meus olhos ponho o freio.


«A gente da cidade, aquele dia,

(Uns por amigos, outros por parentes,

Outros por ver somente) concorria,

Saüdosos na vista e descontentes

E nós, co a virtuosa companhia

De mil Religiosos diligentes,

Em procissão solene, a Deus orando,

Pera os batéis viemos caminhando.


«Em tão longo caminho e duvidoso

Por perdidos as gentes nos julgavam,

As mulheres cum choro piadoso

Os homens com suspiros que arrancavam.

Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso

Amor mais desconfia, acrecentavam

A desesperação e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.


«Qual vai dizendo: - «Ó filho, a quem eu tinha

Só pera refrigério e doce emparo

Desta cansada já velhice minha,

Que em choro acabará, penoso e amaro

Porque me deixas, mísera e mesquinha?

Porque de mi te vás, ó filho caro,

A fazer o funéreo enterramento

Onde sejas de pexes mantimento?»


«Qual em cabelo: - «Ó doce e amado esposo,

Sem quem não quis Amor que viver possa,

Porque is aventurar ao mar airoso

Essa vida que é minha e não é vossa?

Como, por um caminho duvidoso,

Vos esquece a afeição tão doce nossa?

Nosso amor, nosso vão contentamento,

Quereis que com as velas leve o vento?»


«Nestas e outras palavras que diziam,

De amor e de piadosa humanidade,

Os velhos e os mininos os seguiam,

Em quem menos esforço põe a idade.

Os montes de mais perto respondiam,

Quási movidos de alta piedade;

A branca areia as lágrimas banhavam,

Que em multidão com elas se igualavam.


«Nós outros, sem a vista alevantarmos

Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,

Por nos não magoarmos, ou mudarmos

Do propósito firme começado,

Determinei de assi nos embarcarmos,

Sem o despedimento costumado,

Que, posto que é de amor usança boa,

A quem se aparta, ou fica, mais magoa.


«Mas um velho, d'aspeito venerando,

Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente,

Cum saber só d'experiências feito,

Tais palavras tirou do experto peito:


- «Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Desta vaidade a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

Cüa aura popular, que honra se chama!

Que castigo tamanho e que justiça

Fazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentas,

Que crueldades neles experimentas!


«Dura inquietação d'alma e da vida

Fonte de desemparos e adultérios,

Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinas e de impérios!

hamam-te ilustre, chamam-te subida,

Sendo dina de infames vitupérios;

Chamam-te Fama e Glória soberana,

Nomes com quem se o povo néscio engana!


«A que novos desastres determinas

De levar estes Reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas,

Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reinos e de minas

D'ouro, que lhe farás tão facilmente?

Que famas lhe prometerás? Que histórias?

Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?


«Mas, ó tu, geração daquele insano

Cujo pecado e desobediência

Não somente do Reino soberano

Te pôs neste desterro e triste ausência,

Mas inda doutro estado mais que humano,

Da quieta e da simpres inocência,

Idade d'ouro, tanto te privou,

Que na de ferro e d'armas te deitou:


«Já que nesta gostosa vaidade

Tanto enlevas a leve fantasia,

Já que à bruta crueza e feridade

Puseste nome, esforço e valentia,

Já que prezas em tanta quantidade :

O desprezo da vida, que devia

De ser sempre estimada, pois que já

Temeu tanto perdê-la Quem a dá:


«Não tens junto contigo o Ismaelita,

Com quem sempre terás guerras sobejas?

Não segue ele do Arábio a lei maldita,

Se tu pola de Cristo só pelejas?

Não tem cidades mil, terra infinita,

Se terras e riqueza mais desejas?

Não é ele por armas esforçado,

Se queres por vitórias ser louvado?


«Deixas criar às portas o inimigo,

Por ires buscar outro de tão longe,

Por quem se despovoe o Reino antigo,

Se enfraqueça e se vá deitando a longe;

Buscas o incerto e incógnito perigo

Por que a Fama te exalte e te lisonje

Chamando-te senhor, com larga cópia,

Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.


«Oh, maldito o primeiro que, no mundo,

Nas ondas vela pôs em seco lenho!

Dino da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum, alto e profundo,

Nem cítara sonora ou vivo engenho

Te dê por isso fama nem memória,

Mas contigo se acabe o nome e glória!


«Trouxe o filho de Jápeto do Céu

O fogo que ajuntou ao peito humano,

Fogo que o mundo em armas acendeu,

Em mortes, em desonras (grande engano!).

Quanto milhor nos fora, Prometeu,

E quanto pera o mundo menos dano,

Que a tua estátua ilustre não tivera

Fogo de altos desejos, que a movera!


«Não cometera o moço miserando

O carro alto do pai, nem o ar vazio

O grande arquitector co filho, dando

Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.

Nenhum cometimento alto e nefando

Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração.

Mísera sorte! Estranha condição!»




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