Otto maria carpeaux



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definiu: "An acre in Middesex is better than a principality in Utopia". Bacon é contra as aparências e contra as estéticas também: "Houses are built to live in

and not to look on"; eis a declaração de guerra à fachada estética da aristocracia renascentista. A filosofia de Bacon é um "candelaio" antiideológico no que diz

respeito ao passado, e uma luz ideológica quanto ao futuro. Mas uma frase como esta: "It is as natural to die as to be born; and to a little infant, perhaps, the

one is as painful as the other" - revela o leitor de Sêneca e contemporâneo de Montaigne.

Um Gil Vicente, um Deloney representam as classes do passado; um Palissy, um Bacon representam as classes do futuro. Entre êles, no centro, está não apenas a aristocracia,

mas também alguns grupos fragmentados, constituindo uma espécie de "Intelligentzia": são os futuros jornalistas da "Ilustração", os futuros cientistas e heréticos

do Barroco; agora, na Renascença, perdidos entre as Igrejas e seitas, apóstatas do humanismo ou da sociedade medieval. Na Idade Média, foram goliardos. Um goliardo

assim, e ao mesmo tempo cidadão do mundo futuro, é Rabelais.

François Rabelais (lio), vigário e médico em combina

ção inédita, humanista erudito e humorista extragavantís

11O) François Rabelais, c. 1493/1494-1553.

Pantagruel, roi dos Dipsodes, restitué à son naturel (1532) ; La vie três horrifique du grand Gargantua, pêro de Pantagruel (1534) ; o romance completo, publicado

em 1552.

Edições por A. Lefranc, 7 vols., Paris, 1912/1936, e por J. Plattard, 5 vols., Paris, 1929. Edição do Pantagruel por V. Saulnier, Paris, 1946.

E. Gebhardt: Rabelais, Ia Renaissance et Ia Réforme. 2.a ed. Paris, 1896.

L. Thuasne: Études sur Rabelais. Paris, 19O4. J. Plattard: L:"oeuvre de Rabelais. Paris, 191O.

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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 595

êste método estava pronto antes de Bacon, e êle nunca pensou em aplicá-lo; e em vez de uma explicação teórica do mundo deu uma utopia do mundo futuro da ciência

e técnica. Mas essa utopia se realizou. Ninguém pode arrancar a Bacon a glória de ter criado - ou antes, pela primeira vez representado em sua plenitude - o espírito

prático, utilitário, pragmatista, dos inglêses, e de o ter expresso numa prosa que é também criação sua, uma prosa sóbria, sêca, sentenciosa, inconfundível: os Essays

de Bacon não são confissões como os de Montaigne; são notas, aperçus, lições, condensadas com uma energia espiritual extraordinária e resumidas em aforismos inesquecíveis:

"A crowd is not company; and faces are but a gallery of Pictures"; "God Almightie first planted a garden"; "It is the solecismo of power, to think to command the

end, and yet not to endure the mean". Mas Bacon não é apenas aforista, nem apenas o moralista dos ensaios sôbre Amizade, Verdade, Velhice, jardins e outros assuntos

permanentes; é mais importante a parte negativa da sua filosofia, que diz respeito aos assuntos perecíveis. "Men:"s thoughts are much according to their inclination",

diz o Lord; e é preciso aproximar essa observação psicológica de outra, de Maquiavel, do qual Bacon era grande leitor: "Costoro hanno un animo in piazza, e uno in

palazzo" - para compreender o alcance da teoria baconiana dos "idola" que impedem aos homens o reconhecimento da Verdade: os "Idola tribus" ou preconceitos dos homens

como.membros da espécie, os "Idola specus" ou preconceitos sugeridos pelo ambiente, os "Idola fori" ou preconceitos impostos pela opinião política, e os "Idola theatri"

Edição por J. Spedding, R. L. Ellis e D. D. Heath, 14 vols., Lon

don, 1857/1874.

Th. B. Macaulay: "Lord Bacon". (In: Criticai and Historical

Essays, 1837.)

M: Sturt: Francis Bacon. London, 1932. Ch. Williams: Francis Bacon. 1933.

ou preconceitos tradicionais. Bacon é o fundador da sociologia do saber; a sua saída do cepticismo é o realismo sólido, material ou quase materialista, que Macaulay

definiu: "An acre in Middesex is better than a principality in Utopia". Bacon é contra as aparências e contra as estéticas também: "Houses are built to live in

and not to look on"; eis a declaração de guerra à fachada estética da aristocracia renascentista. A filosofia de Bacon é um "candelaio" antiideológico no que diz

respeito ao passado, e uma luz ideológica quanto ao futuro. Mas uma frase como esta: "It is as natural to die as to be born; and to a little infant, perhaps, the

one is as painful as the other" - revela o leitor de Sêneca e contemporâneo de Montaigne.

Um Gil Vicente, um Deloney representam as classes do passado; um Palissy, um Bacon representam as classes do futuro. Entre êles, no centro, está não apenas a aristocracia,

mas também alguns grupos fragmentados, constituindo uma espécie de "Intelligentzia": são os futuros jornalistas da "Ilustração", os futuros cientistas e heréticos

do Barroco; agora, na Renascença, perdidos entre as Igrejas e seitas, apóstatas do humanismo ou da sociedade medieval. Na Idade Média, foram goliardos. Um goliardo

assim, e ao mesmo tempo cidadão do mundo futuro, é Rabelais.

François Rabelais (lio), vigário e médico em combina

ção inédita, humanista erudito e humorista extragavantís

11O) François Rabelais, c. 1493/1494-1553.

Pantagruel, roi dos Dipsodes, restitué à son naturel (1532) ; La vie três horrifique du grand Gargantua, père de Pantagruel

(1534) ; o romance completo, publicado em 1552.

Edições por A. Lefranc, 7 vols., Paris, 1912/1936, e por J. Plattard,

5 vols., Paris, 1929. Edição do Pantagruel por V. Saulnier, Paris, 1946.

E. Gebhardt: Rabelais, Ia Renaissance et ia Réforme. Paris, 1896.

L. Thuasne: Études sur Rabelais. Paris, 19O4. J. Plattard: L:"oeuvre de Rabelais. Paris, 191O.

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2.& ed.

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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 597

situo, é o autor do livro mais divertido e mais indecente da literatura francesa. Vidas, aventuras e façanhas de Gargantua, Pantagruel e Panurge são uma espécie

de epopéia herói-cômica em prosa, mistura de Pulci e Folengo, sátira contra a cavalaria, sem o equilíbrio de Cervantes, sátira contra os monges, sem a teologia de

Erasmo, sátira contra os burgueses de Paris, sem a poesia de Vilion, sátira contra tôdas as convenções desnaturais, sem a serenidade de Montaigne - mas suprimindo

essas falhas tôdas pelo fato estupendo de ter criado uma nova língua dentro da língua francesa, uma língua que é só de Rabelais, de combinações inéditas, de excessos

e monstruosidades, uma língua na qual o vocabulário excrementício e sexualógico ocupam o primeiro lugar. E assim nasceu um livro, afastado para sempre da escola

e das estantes dos bem-pensantes, e que é um clássico da literatura francesa.

Rabelais é clérigo, aluno da Universidade medieval; domina o trívio, o quadrívio, a filosofia, as sentenças e as sumas, e por tudo isso não dá nem um sou, porque

aprendeu, depois, coisa melhor: Cícero e Sêneca, Horácio, Virgílio e os gregos; e desde então o latim bárbaro dos escolásticos lhe causa verdadeira náusea, e para

lhes tapar a bôca inventou aquela língua que não é menos bárbara, pois é um francês bárbaro, e Rabelais é francês, ou antes, gaulês, com paixão e alegria. A sua

oposição aos monges não é só a oposição lingüística do humanista erudito; aborrecem-no também os costumes sujos, a devassidão clandestina atrás do celibato forçado,

pois Rabelais é partidário da

P. Stapfer: Rabelais, sa personne, son génie, son oeuvre. 5.a ed. Paris, 1918.

L. Sainéan: La Zangue de RabeZais. 2 vols. Paris, 1922/1923.

S. Putnam: François Rabelais. New York, 1929. Anat. France: Rabelais. Paris, 1931. J. Plattard: François Rabelais. Paris, 1932.

L. Febvre: Le problème de Pincroyance au XVIe Mcle. La religion de RabeZais. Paris, 1943.

J. Charpentier: Rabelais. Paris, 1944.

M. P. Willcocks: The Laughing Philosopher. London, 1951.

liberdade pública dos instintos. Nessa atitude contra a opressão dos instintos naturais pela disciplina clerical há qualquer coisa de oposição protestante, e Rabelais,

como outros humanistas de formação religiosa, não se oporia a uma Reforma integral da Igreja, na qual, no entanto, permaneceu; contudo, achou prudente fugir do país

depois da execução do humanista protestante Dolet. Mas não podia aderir à Reforma de Calvino, porque Rabelais é a encarnação do antipuritanismo. É um gaulês de formato

sobrenatural, de apetites enormes, bebendo lagos inteiros de vinho, comendo rebanhos inteiros de gado - o seu apetite é tão poderoso que chegaria à antropofagia;

e já se disse que todos os grandes satíricos são antropófagos. Tudo, em Rabelais, é de formato sobrenatural; pretende provar que "naturalia non sunt turpia" e exagera

êsses "naturalia" até verdadeiras orgias de falicismo e coprofilia. Reúne a grosseria do monge medieval à do médico de aldeia, acostumado a falar com gente inculta

e acabando por assimilarse ao costumes dessa gente. Rabelais é um humanista muito

especial: em vez de ficar entre os livros, sai para o ar livre, descobrindo o povo, a realidade. É um goliardo, saindo de escola e taverna para o novo mundo do humanismo.

Daí o seu interêsse apaixonado pela educação física e pela educação razoável em geral, à qual dedica os capítulos mais sérios da sua obra. Mas a sua goliarda revela-se

justamente no que parece mais moderno em Rabelais : o seu ideal de vida epicuréia, na abadia de Thélème, onde a gente passa a vida entre estudos e prazeres, em liberdade

absoluta, anarquista, admitindo só uma lei: "Fais ce que voudras!" Parece um ideal moderníssimo, mas não é; a existência ociosa e inútil em Thélème nada tem com

os utilitarismos futuros. É o sonho do "pays de Cocagne" do estudante medieval, de um país em que há comida, vinho e mulheres à vontade, e onde se estuda só o que

agrada, e em que não se trabalha. Rabelais é um homem medieval, mas da estirpe dos párias da Idade Média; por isso odeia

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os que ainda gozam dos privilégios medievais, os monges, os burgueses, as personagens grotescas do seu carnaval satírico, dança macabra sem morte e com muita vida.

Rabelais é um pária do clero, como Folengo, do qual é contemporâneo, superando o italiano na abundância da imaginação verbal; Rabelais é o gênio do macarronismo.

Por isso, nenhuma análise ou descrição poderia dar a mínima idéia dêsse livro do qual não existe pendant na literatura universal.

Mais uma qualidade que Rabelais tem em comum com Folengo: no fundo do barulho grosseiro contra o clero es

conde-se o sentimento religioso (111). Rabelais é irreve

rente, mas não ateu; não convencem as tentativas de erigi-lo em profeta de uma irreligião da Renascença. Se não cumpre com a perfeição desejável as obrigações doutrinárias

e disciplinares de um vigário de aldeia, é porque melhor estaria como cardeal da Cúria Romana, um cardeal da Renascença antes da Reforma; naquela época tal vez tenha

sido melhor prelado que muitos outros, falando bem latim - no resto, não teriam entendido em Roma seu francês rabelaisiano. Do secreto ideal religioso em Rabelais

poder-se-ia deduzir o fato de êsse homem - medieval em.muitos aspectos - ser, em outro sentido, mais moderno do que os seus contemporâneos mais avançados o seu ideal

da renascença dos estudos clássicos não é, de modo algum, classicista, livresco. Ao contrário, êsse dono de uma língua barrôca é um verdadeiro clássico: os estudos

apenas significam para êle o caminho da harmonia do desenvolvimento intelectual, espiritual, moral e físico da personalidade. O seu "stoicisme gai" aproxima-se da

pedagogia de Montaigne, sem os acessos de melancolia ligeira do grande ensaísta, e o ideal pedagógico de Rabelais seria realizado em Eton ou Harrow, onde se criam

os gentleman que sabem latim e grego e jogam críquete e gôlfe.

111) E. Gilson in: Reme das études franciscaines, 1924, I.

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 599

O gentleman rebelaisiano é tão pouco pagão quanto os gentleman inglêses; apenas desconhece o cant. As funções naturais, exerce-as com a maior ingenuidade, e aos

que pretendem inibi-las, mata-os pelo riso, para o qual a vida dos instintos fornece matéria tão abundante. Não é por acaso que a forma lingüística coloca a obra

de Rabelais num lugar especial na literatura universal; o próprio Rabelais ocupa, como defensor alegre da liberdade humana com-.- pleta, um lugar especial na história

da Humanidade.

O outro goliardo do século XVI é o autor anônimo do Lazarillo de Tormes; mas o meio é diferente. A Espanha da segunda metade do século resume os males da Renascença

e do Barroco: imperialismo econômico e inflação monetária, burocracia rigorosíssima com tôda a corrução . da administração feudal, desemprêgo e vagabundagem generalizada

de soldados reformados, aristocratas empobrecidos, clérigos vagantes, parasitos e ladrões de tôda a es

pécie (112). É o ambiente em que o acaso substitui o esfôr

ço, porque a inflação e a administração comem os frutos do trabalho honesto; então, ninguém quer trabalhar, mesmo morrendo de fome, preferindo-se os pequenos truques

que imitam os grandes truques da diplomacia. O ideal de política maquiavelista, transplantado para o meio dos mendigos e ladrões, eis o assunto do romance picaresco

(113).


O ambiente, por mais interessante que seja, não tem nada de extraordinário. O fato extraordinário é que, na época da solenidade aristocrática, alguém tivesse a franqueza

de dizer aquilo tudo, e, além disso, narrar os acontecimentos pouco edificantes na primeira pessoa, como se fôsse confissão autobiográfica - o que se tornou depois

lei de composição do romance picaresco. Mas por isso preferiu permanecer anônimo o autor do Lazarillo de

112) H. Hauser: La preponderante espagnole. Paris, 1933.

113) M. Bataillon: Le roman picaresque. Paris, 1931.

A. Valbuena Prat: La novela picaresca en Espana. Madrid, 1943.

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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 6O1

Tormes (114). Não é apenas o primeiro romance picares

co; é o primeiro romance da literatura universal que permaneceu legível até hoje, legível não como objeto de estudos históricos, mas como leitura divertida e como

"crítica da vida", o que constitui, segundo Matthew Arnold, a finalidade da literatura narrativa. A palavra "crítica", aplicada ao Lazarillo de Tormes, só se entende

como "crítica implícita". Porque Lazarillo, embora narrando a própria vida, fala com objetividade absoluta, sem se queixar e sem acusar ninguém, e particularmente

sem se envergonhar dos fatos: o "herói" é sucessivamente criado de um mendigo cego, de um padre, de um "fidalgo" orgulhoso e faminto, de um vendedor de indulgências,

de um capelão, de um alguazil - sempre maltratado, vingando-se como pode, e fazendo o seu caminho pelos bas fonds da sociedade até chegar o seu dia. A galeria dos

patrões de Lazarillo lembra Chaucer, mas o humor é diferente: é sêco, sem alegria, discreto como um cavaleiro que na pior humilhação guarda a compostura. O estilo

é coloquial sem familiaridade - o primeiro modêlo da prosa espanhola moderna - apresentando coisas desagradáveis ou vergonhosas como se tivesse de ser assim. OXLazarillo

de Tormes é uma obra-prima de realismo autêntico; a sátira social,

114) La vida dei Lazarillo de Tormes, y de sus fortunas y adversidades (1554).

A autoria do romance atribuiu-se, durante muito tempo, a Diego Hurtado de Mendoza (15O3-1575), erasmiano, poeta humanista, e autor da famosa Guerra de Granada (public.

1627), obra-prima da historiografia; a hipótese foi definitivamente afastada por A. Morei-Fatio.

A atribuição ao dramaturgo e erasmiano Sebastián de Horozco (c. 151O-158O) não é menos incerta. O anonimato do primeiro romance picaresco ficou bem guardado. Edições

por A. Bonilla y San Martín, Madrid, 1915, e por J. Cejador (Clásicos Castellanos, vol. XXV). A. Morei-Fatio: Etudes sur VEspagne. le série. Paris, 1895. J. Cejador:

Introdução à edição citada. B. Croce: "Lazarillo de Tormes". (In: Poesia Antica e Moderna,

2.1 ed. Bari, 1943.)

por si mesma incompatível com o realismo - encontra-se tão-sómente nas conclusões que o leitor tem de tirar. A obra, apesar de inacabada, está fechada como um cristal;

ficam, porém, os problemas ópticos da luz que entra e sai: de onde veio a inspiração, e como ela conseguiu impor-se ao espírito espanhol de maneira tão poderosa

que o Lazarillo saiu em três edições só no ano da publicação e criou um dos gêneros mais populares da literatura espanhola e européia.

O autor de Lazarillo de Tormes conheceu pela experiência própria o ambiente que descreve; mas pertence a êsse ambiente apenas pela metade, é superior aos seus personagens

e tira daí a objetividade superior do relato. Essa superioridade não é de ordem moral, e sim de ordem intelectual. Com efeito, o autor é humanista, conhece muito

bem Horário e Sêneca; foi até possível demonstrar que a composição do Lazarillo acompanha de perto, como se fôsse

paródia intencional, a composição da Eneida (115). Croce

chega a falar em "epopéia da fome". O autor do Lazarillo era um universitário faminto, um "goliardo", mas em ambiente totalmente diverso do ambiente medieval, num

ambiente de vagabundagem generalizada que pretendeu contudo guardar as aparências aristocráticas. O pícaro é um ladrão ou charlatão que tem, no entanto, a sua honra

de cavaleiro; e isso não é apenas um meio para manter-se numa sociedade na qual os valores aristocráticos continuam em vigor; é também um meio para se conformar

com uma ordem social hostil ao mendigo e a todos os pobres. Na sociedade espanhola continuam em vigor os valores aristocráticos; na estrutura social-econômica, os

valores em vigor são os do mercantilismo. O pícaro, vítima da ordem econômica, é conformista com respeito à ordem aristocrá

115) A. Marasso: "La elaboración dei Lazarillo de Tormes". (In: Bo

letin de la Academia de Letras de la Argentina, IX, 1941.)

A conclusão de Marasso quanto ao autor da obra - certo bacharel Pedro de Rhua - não é, porém, convincente.

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tica; é um representante legítimo da Espanha imperial decaída, do reinado de Filipe II e dos seus sucessores. O romance picaresco substituiu o estoicismo erudito

da Renascença pelo estoicismo popular, que sempre foi a filosofia popular da Espanha. No século XVII, a Europa inteira será hispanizada: aristocrática, empobrecida

e estóica. O romance picaresco será o gênero do futuro.

A última forma de "oposição" é a da própria aristocracia contra o internacionalismo aristocrático da Renascença: é a atitude nacionalista dos aristocratas e humanistas

da Alemanha.

À primeira vista, o humanismo alemão (116) parece um

ramo, e nem sequer um ramo muito importante, do humanismo italiano. Na segunda metade do século XV, universitários alemães que haviam estudado na Itália importaram

a paixão das letras clássicas. No comêço, experimentaramse em traduções: Albrecht von Eyb deu, em 1474, Menaechmi e Bacchides, de Plauto, e em 1499 saiu a tradução

das comédias de Terêncio; mas a língua alemã, dura e pouco polida, resistiu. O período latino do humanismo alemão .foi iniciado pela fundação de bibliotecas e centros

de estudos por grandes mecenas burgueses como Willibald Pirckheimer, em Nurenberg, e Konrad Peutinger, em Augsburg. Os mais famosos entre os humanistas alemães,

Conrad Celtis (1459-15O8) e Jacob Wimpfeling (145O-1528), são estudiosos pouco originais. Johannes Reuchlin (1455-1522) .tem importância na história da exegese bíblica,

como fundador dos estudos hebraicos; os seus trabalhos ajudaram a atividade do maior dos humanistas ao Norte dos Alpes, Erasmo de Roterdão, mas êste é holandês.

Os humanistas alemães do século XVI são poetas latinos de segunda ordem, que gostam de latinizar os seus nomes bárbaros: Cro

116) L. Geiger: Renaissance und Humanismus in Italien und Deutschland. Berlin, 1882.

A. Taylor: Problems in Literary History of the Fifteenth and Sixteenth Centuries. New York, 1939.

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 6O3

tus Rubianus, Eobanus Hessus, Petrus Lotichius. O humanismo não se popularizou muito entre os alemães, e teria desaparecido sem deixar vestígios, se não fôsse a

figura

arquipopular do aristocrata Ulrich von Hutten (117). As



Epistolas obscurorum virorum, que Hutten redigiu com a colaboração de vários amigos, são uma das sátiras mais mordazes da literatura universal: correspondência fictícia

entre monges alemães que, no latim bárbaro e ridículo dos últimos escolásticos, trocam notícias sôbre brigas nos conventos e escolas, aventuras amorosas e outras

infrações da disciplina clerical, revelando-se como "obscuri" em todos os sentidos; almas negras, obscurantistas, exprimindo a maior indignação contra todos os que

ousam falar em estudos clássicos ou reforma da Igreja, ameaçando êsses recalcitrantes com a fogueira. A repercussão das Epistolas obscurorum virorum na Alemanha

foi enorme: com elas Hutten ridicularizou os monges, especialmente os dominicanos da Inquisição em Colônia, humilhando-os peranté :a opinião pública. As Epistolas

eram uma das armas jornalísticas mais eficientes da Reforma luterana, da qual Hutten se tornou colaborador importante. Foi êle quem conseguiu a aliança entre os

reformadores eclesiásticos e a pequena aristocracia alemã, os "cavaleiros", a que êle mesmo pertenceu. Foram êle e Lutero que conferiram à Reforma o forte acento

nacionalista, de indignação alemã contra a intervenção dos prelados estrangeiros, italianos, nos negócios políticos da pátria. Pela atividade de Hutten e

117) Ulrich von Hutten, 1488-1523.

Epistolas obscurorum virorum (1517; entre os co-autores: Reuchlin e Crotus Rubianus, c. 148O-154O) ; Ad Príncipes Germaniae (1518); Gespraechbuechlein (1521). Edição

das Epistolas por E. Boecking, 2 vols., Leipzig, 1864/187O. W. Brecht: Die Verfasser der Epistolas obscurorum virorum. Strasbourg, 19O4.

D. F. Strauss: Ulrich von Hutten. 2" ed. por O. Clemen, 2 vols. Leipzig, 1927.

H. Holborn: Ulrich von Hutten. 2 â ed. Newhaven, 1937.

s

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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 6O5

dos seus, a Reforma tornou-se Reforma alemã, formando-se - o que não existia antes - uma consciência nacional da nação alemã, com a conseqüência de essa nação se

afastar, depois, não so da Igreja romana, mas também dos outros movimentos reformatórios, e enfim, de tôda a civilização

ocidental (118). O fato é de primeira importância para a

compreensão da história da Europa moderna. E, dêste modo, o humanismo alemão que tinha começado de maneira tão modesta, tornou-se grande acontecimento histórico,

do qual estamos ainda sofrendo as conseqüências.

O fato é tão importante que exige e encontrou nova interpretação. O aparecimento de Hutten e dos seus amigos aristocráticos sugeriu outrora aos estudiosos a opinião

de que o verdadeiro humanismo alemão teria sido movimento dos "cavaleiros", e o humanismo burguês dos Pirckheimer e Peutinger apenas um prelúdio. Essa opinião

já não pode ser mantida (119). O humanismo alemão é um

movimento da burguesia urbana. -Os primeiros centros encontram-se na Renãonia, entre Basiléia e Antuérpia, as cidades preferidas de Erasmo. Na mesma região, em Schlettstadt,


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